Esta é a nossa mais recente matéria sobre o novo coronavírus e seus impactos sobre as favelas e também da série LIVES Covid-19 nas Favelas.
No Dia do Trabalhador Rural, 25 de maio, o Grupo de Trabalho de Hortas e Reflorestamento da Rede Favela Sustentável (RFS)* apresentou a live interativa: “Comida Sem Veneno: Direito ou Privilégio? Soberania Alimentar na Favela em Tempos de Pandemia”. Os seis palestrantes do evento, todos envolvidos com ativismo e iniciativas em soberania alimentar em favelas ou com movimentos de pequenos agricultores, falaram sobre o impacto da pandemia em favelas e como, por sua vez, isso afeta o acesso a alimentos bons e saudáveis. No total, 110 pessoas participaram do encontro via Zoom, com mais de 1000 pessoas assistindo ao vivo pelo Facebook.
Os convidados especiais foram: Regina Tchelly, fundadora do Favela Orgânica e moradora da Babilônia, Zona Sul; Susana Padrão, nutricionista, presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA) e colaboradora no espaço comunitário de educação ambiental Espaço Formiga Verde, no Morro da Formiga, Zona Norte; Cristina Flores, membro do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA); Fernanda Savicki, agrônoma e pesquisadora em saúde pública na Fiocruz e vice-presidente da Associação Brasileira de Agroecologia, do Mato Grosso do Sul; Valdirene Militão, educadora e pesquisadora em economia dos setores populares no Campus Fiocruz Mata Atlântica em Jacarepaguá, na Zona Oeste, e originalmente da favela da Maré, Zona Norte; e Luis Cassiano, cuja iniciativa de telhado verde, Teto Verde Favela, diminui dramaticamente o calor em sua casa reunindo mais de cinquenta espécies em seu telhado no Parque Arará, Zona Norte.
Regina Tchelly deu início à mesa redonda enfatizando o valor da autocompaixão durante estes tempos difíceis, encorajando cada membro da audiência virtual a se dar um abraço: “Não poder abraçar, olhar dentro do olho, tá sendo um desafio muito grande”, disse Regina. “Trabalhamos com o ciclo da vida, se cuidar de dentro para fora.”
A troca foi delineada para falar sobre preocupações em torno do acesso, por moradores de favela, à nutrição saudável durante a pandemia. Com o início das medidas de quarentena ordenadas pelo governo e a iminente recessão nacional, muitos se viram sem trabalho e lutando para colocar comida na mesa.
Diante dessas questões, iniciativas populares têm encorajado o consumo de cultivos caseiros e o Aproveitamento Integral dos Alimentos. Alguns levam alimentos agroecológicos para populações de favelas e periferias urbanas. Os palestrantes da noite discutiram acerca desses movimentos no contexto da soberania alimentar, da agricultura familiar e da interconectividade urbana-rural, ao passo que denunciaram a indústria do agronegócio.
Acesso à Alimentos Saudáveis Ameaçados pela Pandemia e Bolsonaro
Susana Padrão, presidente do CONSEA, falou sobre como a segurança alimentar tem sido ameaçada desde o início da presidência de Jair Bolsonaro em 2019, bem antes da pandemia do coronavírus atingir o Brasil: “CONSEA é o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Existia desde o início do governo [Lula] de 2003-2012, ele foi extinto no primeiro dia de governo do Presidente Bolsonaro. Nós deixamos de ter um CONSEA aqui, que organize as ações de segurança alimentar no país”.
Cristina Flores acrescentou que o Brasil se encontra à beira da crise socioeconômica, com “o acirramento da luta de classes no Brasil, não só com o golpe da Dilma mas com a eleição de Bolsonaro, que tomou como [uma das suas] primeiras medidas a extinção do CONSEA e a retirada de recursos de projetos que levavam alimentos saudáveis para classes mais baixas”.
Tanto Cristina quanto Suzana apontaram que um caminho pelo qual essa comida saudável chegava às classes mais baixas era através de escolas e creches. Cristina acrescentou, contudo, que os governos estaduais e municipais nunca conseguiram gastar os requeridos 30% dos fundos recebidos para refeições de escolas e creches em itens vindos da agricultura familiar. Esse processo “se torna ainda mais difícil nessa situação de isolamento“.
Combatendo os Efeitos Prejudiciais do Agronegócio com Agricultura Familiar
Fernanda Savicki abordou outro desafio para a soberania alimentar: “Ultra processados, alimentos já prontos, não são comida de verdade, são produtos alimentícios fruto das indústrias agroquímicas farmacêutica e alimentar”.
Para combater o dano do agronegócio, apoiar a agricultura familiar é essencial e pode até influenciar políticas governamentais, assegurou Fernanda: “A minha escolha, o que eu estou colocando no prato, reflete o tipo de política que eu quero que o governo subsidie ou fortaleça. Se eu opto por comprar no supermercado e não na feira, eu estou conduzindo um tipo de política no Brasil. Se eu opto por comprar na feira, [o que vem da] agricultura familiar, sem agrotóxico, [produzido] pelas famílias, por produção agroecológica, que respeita questões de gênero e geração, que está organizado em rede, que tem capacidade de articular com outros grupos, isso tem repercussão nas políticas”.
Em um esforço para fortalecer a agricultura familiar e conectar os esforços de agricultores rurais com os de trabalhadores urbanos, Cristina afirmou que a iniciativa do Movimento dos Pequenos Agricultores, no Rio, deu início a “uma rede de solidariedade que mobiliza esses alimentos saudáveis, produzidos pelas classes rurais e da classe trabalhadora urbana, para as favelas”.
Alavancando Espaços Verdes e Mobilização Comunitária
Diante das perdas de trabalho e renda devido à pandemia, Luis Cassiano elogiou a ideia de iniciativas de alimentação saudável, mas lamenta que, agora, “pessoas estão no corre corre da fome”. Apontando para a urgência de famílias em receberem as cestas básicas que iniciativas locais começaram a distribuir no início da pandemia, ele adicionou que “é muito triste ver as favelas assim”.
Regina acrescentou que, enquanto as cestas básicas podem ajudar moradores de favela a curto prazo, “é preciso ter continuidade. Não [somente] o trabalho pra acabar com a fome hoje. Te dou marmita hoje, mas te dou receita pra você poder plantar”. A iniciativa de Regina, Favela Orgânica, procura conscientizar moradores de cada estágio do ciclo alimentar, criando, assim, uma cultura da utilização total da comida para combater a fome e o desperdício.
Diversos dos palestrantes discutiram sobre a importância da autonomia e da mobilização comunitária, constatando que moradores de favelas poderiam ter os recursos para proverem alimentos saudáveis para eles mesmos, suas famílias e suas comunidades. Alguns compartilharam as formas concretas pelas quais suas iniciativas—a maioria delas ativas antes da pandemia—lidam com os desafios da justiça alimentar.
Suzana concordou com Regina, dizendo que a questão da autonomia era “muito importante para que pessoas possam produzir e cozinhar sua própria comida. A gente incentiva isso. O meu trabalho no Morro da Formiga é para que a agroecologia possa ser difundida e possa funcionar como mecanismo de alimentação. A alimentação adequada e saudável é um direito humano que deve ser atendido pelo Estado e todos têm que ter acesso permanente à alimentação”.
Alinhada com os comentários de Cristina e Suzana sobre o agronegócio, Valdirene Militão mostrou a frente de sua camiseta, em que estava escrito: “se vem na caixa, não é comida de verdade”.
“Apesar da maior dificuldade com a agricultura urbana ser a terra, temos um trabalho [a fazer] lá no campo que é a potencialização desse territórios. Tinha pessoas com espaço, com potencial enorme, mas não tinham noção de que era possível”, disse ela.
Cassiano, que fundou o projeto Teto Verde em 2013, transformando sua própria laje em um oásis verde no meio da favela, disse como ele começou “devido ao calor que eu sentia aqui na casa”. “Agora”, disse ele, “estou mais preocupado com as [plantas] alimentares do que as ornamentais. Tô plantando comida. A laje aqui não é grande, mas para plantar, com boa vontade a gente acha um espaço. Todo mundo que planta sabe: qualquer espaço é importante”.
Regina finalizou a palestra com um chamado para a ação, afirmando que “o coletivo pode fazer a diferença. Nunca precisamos tanto estar junto de verdade. Acreditem, isso tudo vai passar. Alimentação é único meio de mudar”.
Assista a Live interativa aqui:
*A Rede Favela Sustentável (RFS) e o RioOnWatch são projetos da Comunidades Catalisadoras. A RFS tem o apoio da Fundação Heinrich Böll Brasil.