Supremo Tribunal Federal Examina Caso Paradigmático Sobre Operações Policiais nas Favelas do Rio, Parte I

Os Efeitos e Significado da ADPF das Favelas

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Esta é a primeira de uma matéria de duas partes que trata de um caso no STF que ficou conhecido como ADPF das Favelas. A matéria discute os efeitos de uma posição jurídica e de uma decisão temporária emitida pelo ministro Edson Fachin, e o significado futuro do caso. A série faz parte da nossa parceria com o The Rio Times. Para a segunda parte, clique aqui. Para uma versão mais curta da matéria publicada no The Rio Times em inglês, clique aqui.

Uma vez que o novo coronavírus se alastrou pelo Brasil, o perigo para a população das favelas tem sido bem documentado. Além disso, nos meses de abril e maio as favelas do Rio experimentaram novos recordes em uma longa história de violência policial, e moradores responderam com novas mobilizações. Como parte do movimento global Black Lives Matter (Vidas Negras Importam), cidadãos de todo o país, incluindo muitos ativistas de favelas, saíram às ruas para protestar contra o racismo estrutural e a violência policial.

Nesse cenário, um processo legal em curso contra a violência policial nas favelas do Rio produziu uma série de decisões cruciais no Supremo Tribunal Federal (STF). Essas decisões não apenas salvaram vidas nas últimas semanas, segundo os pesquisadores, mas também criam uma abertura para estabelecer um precedente poderoso para a competência, do tribunal, de verificar as ações da força policial mais letal do Brasil. A ação legal é conhecida como ADPF das Favelas, e representantes da coalizão discutiram seus esforços em um painel online em 25 de junho.

A defensora pública do Rio de Janeiro, Lívia Casseres, descreveu a ação e a mobilização de cidadãos por trás dela como importantes correções em um sistema judicial que seria melhor descrito como um “sistema de injustiça” para com os moradores das favelas.

Uma Tendência Ascendente de Assassinatos Policiais

Desde 2013, o total anual oficial de assassinatos cometidos pela polícia e outras autoridades no estado do Rio tem apresentado uma tendência geral ascendente, quando um esforço de reforma policial no estado começou a se desgastar. Naquela época, a polícia era responsável por cerca de 13% dos homicídios do estado. Em 2017, a polícia matou mais de 1.000 pessoas pela primeira vez desde 2009 e, durante uma intervenção federal de segurança no estado em 2018, policiais e militares mataram 1.534 pessoas, totalizando 28% dos homicídios naquele ano. Cerca de 17 milhões de pessoas vivem no estado. Em 2019, a polícia matou 1.814 pessoas sob o comando do novo governador eleito Wilson Witzel, que disse à polícia que era para “mirar na cabecinha e… fogo”. Os assassinatos cometidos pela polícia foram responsáveis por quase 40% dos homicídios no estado no ano passado.

No painel online, Wallace Corbo, da ONG Educafro, chamou as políticas de segurança do Estado de “genocidas”. Muitos membros do painel enfatizaram o número desproporcional de tais políticas sobre os afro-descendentes. Embora cerca de 56% da população do Brasil seja negra ou parda, 80% das pessoas mortas pela polícia no estado do Rio no primeiro semestre de 2019 eram negras ou pardas. A porcentagem é consistente com números sustentados ao longo de muitos anos; uma análise realizada em 2015 por deputados estaduais relatam que 3.421 assassinatos foram cometidos por policiais desde 2010 e descobriram que 80% das vítimas eram negras ou pardas.

Apesar da frequência com que a polícia do Rio de Janeiro mata pessoas, as equipes forenses encarregadas de investigar essas mortes operam com um orçamento apertado e não há um esforço conjunto do governo para monitorar as operações durante as quais muitas dessas mortes ocorrem. Essa tarefa recai sobre grupos de monitoramento não-governamentais, como a plataforma de coleta de dados Fogo Cruzado, a Rede de Observatórios da Segurança (ROS) e o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) da Universidade Cândido Mendes. Eles rastreiam jornais, sites de notícias, redes de mídias sociais e fontes individuais, compartilhando relatórios e análises regulares.

Em março, quando o novo coronavírus chegou ao Brasil, as operações e mortes pela polícia do Rio diminuíram drasticamente. Mas em abril e maio, os assassinatos pela polícia dispararam, subindo mais do que os totais nos mesmos meses em 2019, já recorde. Maio também foi marcado por uma série de assassinatos policiais de adolescentes, incluindo João Pedro Mattos Pinho, de 14 anos, em São Gonçalo e uma operação que matou treze pessoas no Complexo do Alemão. Essas mesmas operações policiais interromperam regularmente os esforços de ajuda comunitária devido à Covid-19.

“O momento agora é de atender as pessoas que estão necessitadas de alimentos básicos”, disse Eliene Vieira, ativista do grupo Mães de Manguinhos. “Não é para se aproveitar deste momento, que as pessoas estão todas dentro de casa, para exibirem poder bélico.”

Ação Legal Paradigmática

Em 2019, em resposta às políticas de segurança do recém-eleito governador do Rio, Witzel, advogados de direitos humanos fizeram uma parceria com o Partido Socialista Brasileiro (PSB) para montar uma ação legal contra essas políticas, e logo ganharam o apoio de uma coalizão de grupos da sociedade civil. A ação assumiu a forma de arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF), uma alegação de que um órgão governamental violou um elemento fundamental da constituição brasileira.

Esta ADPF, número 635, passou a ser chamada de ADPF das Favelas, e é histórica em seu reconhecimento aos coletivos de favelas como amici curiae (colaboradores do tribunal com base em sua experiência especial). A Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência, o Coletivo Papo Reto, Redes da Maré, o Coletivo Fala Akari, Mães de Manguinhos e a Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial são os primeiros grupos de favelas a participarem de uma ação contra o Estado do Rio de Janeiro no Supremo Tribunal Federal.

O assunto da ação da ADPF das Favelas é a “excessiva e crescente letalidade da atuação policial” no estado do Rio de Janeiro, “voltada sobretudo contra a população pobre e negra de comunidades”. A ação cita “a relação entre racismo estrutural e letalidade polícia”. Os amici curiae, incluindo os coletivos de favela, a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, o Movimento Negro Unificado (MNU) e as organizações de direitos humanos Conectas, Justiça Global e ISER, escreveram em um texto de manifestação, em 16 de abril, que em operações a polícia do Rio ameaçou “grupos socialmente vulneráveis”, incluindo “moradores de favelas, negros, pobres, crianças, adolescentes, jovens, mulheres, idosos e policiais”. Eles escreveram que as operações da polícia do Rio violaram o Código de Conduta da ONU para Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei, que estipula que o uso da força deve ser proporcional, excepcional e só ser implantado quando for absolutamente necessário.

A ação pede medidas como limitar as operações policiais nas proximidades de escolas, creches e centros de saúde, reduzir os mandados de entrada forçada da polícia nas residências, proibir o uso de helicópteros como plataforma de tiros em áreas residenciais, garantir primeiros socorros às pessoas feridas nas operações policiais, preservar as cenas do crime após as operações, melhorar o controle externo sobre as ações policiais pelo Ministério Público do Estado e o fim do incentivo do governo à violência policial.

“Gostaria que o STF visse isso com os olhos da favela”, disse Eliene. “Somos sujeitos de direitos e todas as vezes que têm essas operações dentro das favelas, os nossos direitos são violados.”

Além disso, durante a pandemia, as crianças que costumavam passar seus dias dentro de um prédio escolar estão em suas casas ou nas ruas da cidade e, portanto, correm maior risco de serem baleadas durante incursões policiais diurnas. Ela disse: “Quando acontecem essas operações os primeiros a serem atingidos são as crianças”. A ativista Renata Trajano, do Coletivo Papo Reto e do Gabinete de Crise do Alemão, pediu que o Tribunal aprove a ADPF das Favelas para que “os jovens possam sentar no beco da casa deles e bater papo… sem ter que ter um fuzil mirando na cabeça deles o tempo todo”.

No dia 17 de abril, o juiz da Suprema Corte Edson Fachin, que supervisionou o caso e foi o primeiro a emitir um parecer, votou a favor da execução de vários pedidos, incluindo os de restringir o uso de helicópteros da polícia como plataforma de tiros, preservar cenas de crimes, restringir operações próximo a escolas e centros de saúde e garantir investigações externas de policiais suspeitos de cometer crimes. Ele também votou a suspensão de um decreto de Witzel, que suspendeu gratificações para a polícia, o que revelou uma redução no registro de número de cidadãos mortos pela polícia.

Enquanto o caso na Suprema Corte prosseguia lentamente, com outros juízes ainda sem emitir suas opiniões, as ações letais da polícia continuaram em abril e no início de maio. A análise do ROS descobriu que a polícia do Rio matou 57,9% pessoas a mais em abril de 2020 do que em abril de 2019 e, até 19 de maio, a polícia havia matado mais 16,7% de pessoas do que o período equivalente de 2019.

Em resposta, em 26 de maio, a equipe por trás da ADPF apresentou uma petição para uma Tutela Provisória Incidental para suspender as operações policiais durante a pandemia, exceto em circunstâncias “absolutamente excepcionais” que devem ser justificadas previamente ao escritório da Defensoria Pública, e nas quais “sejam adotados cuidados excepcionais… para não colocar em risco ainda maior população”. O documento fez referência explícita e detalhada ao assassinato de 13 pessoas no Complexo do Alemão, em 15 de maio; a morte de Mattos Pinho, de 14 anos, em 18 de maio, na casa de sua tia—e na companhia de outros cinco adolescentes; a morte de Iago César dos Reis Gonzaga, 21 anos, supostamente torturado antes da polícia matá-lo na favela de Acari; e a morte em 21 de maio do estudante Rodrigo Cerqueira, de 19 anos, assassinado durante a distribuição de ajuda alimentar, de emergência devido à Covid-19 aos moradores do Morro da Providência.

Em 5 de junho, Fachin emitiu a Tutela Provisória Incidental—reservada para casos em que direitos estão em perigo imediato e grave—suspendendo as operações policiais nas favelas do Rio durante a pandemia.

Esta é a primeira de uma matéria de duas partes que trata do caso do STF que ficou conhecido como ADPF das Favelas. Para a segunda parte, clique aqui, onde discutimos os efeitos da ordem temporária de Fachin na redução de assassinatos policiais e o significado mais amplo do caso.

Foto em destaque: Luna Costa


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