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Esta é nossa matéria mais recente sobre o novo coronavírus e seus impactos sobre as favelas.
Cerca de 2,5 milhões de pessoas vivem em favelas em Nairobi, capital do Quênia na África, e 1,4 milhão na capital do Rio de Janeiro, no Brasil. Além da dificuldade comum de acesso a serviços públicos nesses territórios—como por exemplo o saneamento básico—há também ameaças de remoções, uma sistemática negligência de direitos básicos por parte do Estado e a estigmatização da população por parte da sociedade, e sobretudo de Nairobi ao Rio, a polícia mata. Inclusive, diante de uma pandemia.
Este trágico cenário foi relatado por ativistas de direitos humanos do Centro de Justiça Social de Mathare (MSJC), em Nairobi, e do Coletivo Papo Reto, no Rio de Janeiro, na live Solidariedade entre Nairobi e Rio realizada como parte das atividades do 5º Julho Negro, no dia 30 de julho. O evento teve como tema principal o fim do apartheid, da militarização e do racismo, focando na importância de conexões Sul-Sul na luta contra a militarização do Estado. A live foi assistida por mais de 3.000 pessoas.
Separados pelo Calunga Grande* (Oceano Atlântico), mas conectados pelas dores do colonialismo, os relatos dos ativistas revelam não só as mazelas do colonialismo presentes até hoje no dia a dia, mas uma política de morte em curso, nos dois países, contra pobres e negros que vivem em favelas e periferias diariamente, ainda mais aceleradas pela crise da Covid-19.
No Rio é a ‘guerra às drogas‘, no Quênia é a ‘guerra contra o terrorismo’ e ‘guerra contra o crime’. Segundo os ativistas, são maneiras diferentes de justificar a mesma política violenta de um apartheid social velado existente em duas cidades colonizadas e muito segregadas. A luta pela vida e o fim da violência de Estado é transnacional e estratégias de resistência visam se fortalecer ao serem compartilhadas e pensadas coletivamente. Especialmente, segundo todos da live, porque políticas genocidas se tornaram explícitas durante a pandemia nos dois países.
O Banco Mundial estima que 56% da população urbana do Quênia vive em favelas. Mesmo sendo a maioria, essas pessoas e seus territórios são criminalizadas todos os dias por forças policiais que se dizem guardiões da ordem e segurança. O Quênia, assim como o Brasil, está entre os países cuja polícia mais mata, segundo o relatório do Mathare Social Justice Centre – MSJC.
“Nosso Estado é genocida, eles não ligam para os pobres que não têm como lavar as mãos, porque não há água ou como acessar… as condições mínimas para se prevenir do vírus. Então, o pobre não tem ninguém. O Estado não foi criado pelo pobre. Então, temos que lutar pelas nossas vidas mesmo sabendo que não temos como nos defender desse Estado”, defendeu, na live, Wangui Kimari, co-fundadora e coordenadora da pesquisa e ação participativa do Centro de Justiça Social de Mathare, e completou: “Queremos fortalecer a ligação com o Brasil porque sabemos que a polícia que mata no Quênia é a mesma que mata no Brasil. As condições são as mesmas”.
Em abril deste ano, no Rio, as operações policiais cresceram 27,9%, comparado a 2019, deixando um rastro de 177 mortos, segundo relatório da Rede de Observatórios da Segurança. O número de mortos por intervenção de agentes do Estado cresceu 43% em relação ao mesmo período em 2019, de acordo com o Instituto de Segurança Pública (ISP).
Lana de Souza, jornalista e co-fundadora do Coletivo Papo Reto, criado em 2014—que, inicialmente, não tinha o intuito de produzir narrativas voltadas a redução de danos e sobre a guerra às drogas—explicou que a pauta da violência atravessa “nossos corpos, nossas atividades, nossas vidas”. O coletivo ganhou visibilidade por este trabalho, mas vem tentando trabalhar de forma mais pedagógica dentro deste debate e está agindo para equilibrar a agenda para produção de narrativas culturais e propositivas sobre o Complexo do Alemão, na Zona Norte.
Mas com a pandemia, a repressão policial tem se intensificado, mostrando ainda mais a importância de fortalecer pontes de solidariedade transnacionais e do sul global no enfrentamento à violência de Estado.
“Tivemos que literalmente parar e largar cestas básicas no chão para carregar corpos, porque chegou uma situação aqui, que a gente dentro de nossas casas morria de vírus ou de tiros. Por isso, tivemos que nos arriscar a contaminação e ir para as ruas protestar”, contou Raull Santiago, também um dos co-fundadores do Coletivo Papo Reto. Nesse cenário, ativistas, lideranças e comunicadores comunitários de favelas e periferias do Rio tomaram a decisão de ir às ruas, mesmo diante do risco de contaminação durante a pandemia para protestar e gritar #VidasFaveladasImportam e #VidasNegrasImportam.
“O que nós mais fazemos no Papo Reto é principalmente tentar ficarmos vivos e vivas para continuar ajudando as pessoas dentro da nossa comunidade”, diz Raull Santiago.
No Rio de Janeiro, segundo reportagem do jornal Voz das Comunidades, 647 pessoas foram baleadas durante a pandemia, sendo 332 mortas e 315 feridas, desde o decreto do início do isolamento social devido à Covid-19. Uma moradora do Complexo do Alemão levou um tiro na perna dentro de casa no dia 19 de agosto. Houve uma operação na região mesmo com a proibição, do Supremo Tribunal Federal (STF), de operações durante a pandemia.
“Quando Perdemos o Medo, Eles Perdem o Poder”
Gritou a ativista Julie Wanjira, na Marcha de Saba Saba realizada este ano. A fala foi gravada durante a tentativa de um policial de prender a jovem durante o protesto. Em um dos vídeos registrados, ela questiona o porquê de está sendo presa e quando o policial pergunta por que ela está na rua, a ativista responde: “Porque vocês estão nos matando”. Constrangido pela câmeras de celulares, o agente do Estado larga a jovem, que grita: “Quando perdemos o medo, eles perdem o poder”.
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@wanjiru_wanjira #SabasabaPeoplesMarch #sabasabamarchforourlives #youthrevolt
No Quênia, o dia 7 de julho é conhecido como Saba Saba por causa de grandes protestos em 1990, onde muitas pessoas morreram nas mãos da polícia e que resultaram em mudanças constitucionais no país na direção de uma democracia pluripartidária. Pelo terceiro ano seguido, no dia 7 de julho, ativistas, lideranças comunitárias e familiares de vítimas da violência de Estado, vindos de 14 diferentes favelas de Nairóbi, marcharam contra essa violência sistemática protagonizada pela polícia.
Este ano, a Marcha de Saba Saba teve como propósito levar uma lista de demandas para o Presidente Uhuru Kenyatta—filho do primeiro presidente do país—pedindo: o fim das execuções extrajudiciais; a garantia do artigo 43 da Constituição queniana que garante o direito à saúde, à habitação, ao saneamento, à comida, à água, à segurança social e à educação; o fim da militarização do espaço público; a implementação total da Constituição do Quênia, a chamada Tekeleza Katiba.
Segundo a ativista Wanki a marcha foi interrompida por muita repressão policial, gás lacrimogêneo e mais de 60 pessoas foram presas. Os centros de justiça social das favelas de Nairobi se mobilizaram para tirar todos os ativistas das delegacias e reivindicar o direito a protesto. “Inalamos muito gás lacrimogêneo e foi difícil, mas para nós essa repressão não adianta, não vai prevenir outras manifestações, porque nós, há 30 anos, enfrentamos os mesmos problemas, então vamos nos manifestar até conseguirmos o que precisamos’”, garante Wanki.
Para Raull Santiago, encontros de conexão de lutas e estratégias de resistência é essencial não apenas entre Rio e Nairobi, mas pelo mundo inteiro. Seja com ativistas nos Estados Unidos, Europa, mas principalmente entre África e América Latina.
Experiências Ativistas: Estratégias, Lutas e Resistências
O Centro de Justiça Social de Mathare foi fundado em 2014—no começo reunia apenas sete pessoas— para mostrar como a polícia em Nairobi eliminava pessoas e agia com violência nas favelas. Com uma pesquisa de ação participativa o MSJC conseguiu mostrar que entre 2013 e 2016, no mínimo, a polícia foi a responsável pela morte de 800 pessoas no Quênia.
“As mães das vítimas relatavam essas mortes, mas ninguém ligava. Mesmo as ONGs não queriam saber. Elas eram confrontadas pelo discurso oficial do Estado. Em Mathare [favela no Quênia] a polícia matou no mínimo 50 pessoas, mas todos nós sabemos que foram muito mais, porém não conseguimos comprovar oficialmente”, contou Wangui. Para ela, a única ação possível é seguir lutando, mesmo que a geração atual saiba que não será ainda a geração que vai viver e colher estes frutos. “Em nossas reuniões, sempre cantamos. Há uma única frase que diz ‘venceremos’. Porque é isso: sabemos que vamos vencer”, acredita a ativista.
No Complexo do Alemão, além da produção de contranarrativas que denunciaram a situação de violência e falência das UPPs, o Coletivo Papo Reto vem apoiando famílias diante da crise estabelecida pela pandemia do coronavírus. De acordo com levantamento feito na pandemia, a comunidade formada por 16 favelas tem 180.000 moradores e cerca de 45.000 famílias.
“Não é nossa responsabilidade fazer o que nos propomos fazer. Mas, a pandemia estava aí e quando a gente olhar para os número a gente percebe o impacto que conseguimos atingir dentro de uma favela como o Complexo do Alemão”, conta Lana.
O enfrentamento à Covid-19 no Complexo do Alemão é e realizado pelo Gabinete de Crise formado pelo Coletivo Papo Reto, o jornal Voz das Comunidades e Mulheres em Ação. Com 32 voluntários, o grupo já conseguiu atingir 13.000 famílias.
“É um trabalho que a gente faz porque entende a importância de que os nossos [moradores da comunidade] tenham o mínimo de dignidade neste momento. A gente sabe que nossas opções são morrer de tiro ou de vírus. O que a gente está fazendo é lutar para pra não morrer. Atuamos através do nós por nós, que acontece na prática no nosso dia a dia o tempo inteiro”, afirma Lana.
Solidariedade de Nairobi a Rio é uma realidade entre favelas e de negros e pobres para outros negros e pobres, na opinião dos ativistas, pois de acordo com os ativistas a realidade das favelas e periferias não causa impactos na sociedade, pois é este sistema de desigualdade e racismo forjado pelo colonialismo que ainda existe nas mentes, e que mantém os privilégios dos que não moram nestes territórios.
“A sociedade está confortável porque a violência acontece dentro das favelas e a vida deles segue o fluxo normal. As pessoas fora da favela vivem outra realidade de sociedade. Aqui, na falta de água, a pessoa divide a sua água com o vizinho. Isso nunca vai passar na cabeça de quem não vive na nossa realidade, por exemplo, como forma de prevenção da Covid-19”, opina Lana.
Wangui, também acredita que a falta de união e clamor público sobre a violência de Estado no Quênia faz parte de imposição colonial forjada nas mentes da população. Divisões de etnias—que foram impostas e incentivadas no colonialismo—impedem e dificultam a união em prol da luta e resistência.
Assista à Live Interativa Aqui:
*Calunga entre os povos bantos significa entidade espiritual que se manifesta como força da natureza. É especialmente associada ao mar, à morte ou ao inferno. As populações negras escravizadas trazidas para o Brasil chamavam o Atlântico de Calunga Grande ou Verde, porque muitos não apenas encontravam o inferno e a morte já nos navios negreiros como para muitos a travessia do Atlântico representava o fim das suas vidas: física e espiritual.