A Realidade e o Medo em uma Ocupação Surgida pela Covid-19 em São Paulo

A ocupação surgiu com a pandemia. Na cidade, outras favelas têm surgido com pessoas desempregadas e sem renda, apontam os especialistas. Foto por: Léu Britto
Ocupação Jardim Julieta, na Vila Medeiros, Zona Norte de São Paulo. Foto por: Léu Britto

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Esta matéria faz parte da nossa série sobre a Covid-19 e seus impactos sobre as favelas.

O professor de dança Buba Rodrigues, 32, é uma das vítimas da pandemia. Com a quarentena, ficou desempregado, pois as academias e eventos em que trabalhava foram fechados. Sem renda para o aluguel que pagava em um cômodo na Vila Medeiros, encontrou abrigo na ocupação Jardim Julieta, também na Vila Medeiros, Zona Norte de São Paulo. Como o professor, centenas de pessoas nas cidades brasileiras ficaram sem dinheiro para o aluguel e se refugiaram em ocupações de moradia, como essa na capital paulista. São as chamadas “novas favelas“, espaços surgidos com o impacto da pandemia nas pessoas mais pobres.

Mãe e filho na frente da cozinha improvisada montada na ocupação Jardim Julieta na Vila Medeiros, Zona Norte de São Paulo. Foto por: Léu Britto.

No caso da ocupação Jardim Julieta, outro temor é a reintegração de posse, situação comum em outras ocupações, apesar da pandemia. Os moradores dizem que não têm para onde ir em caso de expulsão. Moradores que preferiram não se identificar disseram que desde que entraram no terreno não foram assistidos pela prefeitura.

“Olha, eu estou aqui há mais de três meses. O prefeito não veio aqui. Não tive acesso ao álcool em gel, máscara e outras coisas, fora isso, estou desempregada. O que eu faço?”, questiona Maria Lúcia*.

O pedreiro João Carlos* diz estar sem rumo profissional e não queria estar na ocupação, mas ocupou por falta de opção. “Sem auxílio emergencial, sem renda, não tive o que fazer. Eu sempre trabalhei, não sou essas pessoas que reclamam de trabalho, mas fiquei sem opção e aqui foi o que me restou por enquanto”.

Buba define os ocupantes de onde vive como “moradores vítimas da pandemia”. Ele também relata que a situação de vida das pessoas se parecem. “Estão aqui aqueles que perderam seus empregos e moradias com despejo por falta de pagamento pela moradia”, resume.

Segundo Débora Ungaretti, 30, pesquisadora do LabCidade FAUUSP, e do Observatório de Remoções, a Prefeitura de São Paulo não teve sensibilidade para lidar com as reintegrações de posse durante a pandemia. “A política adequada nesse período deveria ser a suspensão de todas as remoções, para garantir que as pessoas não fiquem sem casa nesse período de emergência sanitária”, aponta.

Ela diz que deveriam ser suspensos todos os projetos públicos que envolvam remoções, além de todos os processos de reintegração de posse e desapropriações movidos pela administração municipal. Débora diz que ao invés de entender a situação, a Secretaria de Gestão e a COHAB fazem manifestações com pedidos de urgência nas remoções.

A pesquisadora cita situações no bairro de Campos Elíseos, no Centro de São Paulo, e reintegrações de posse na região da Cachoeirinha, na Zona Norte. “Nesses dois casos, as remoções são para implantação das parcerias público-privadas (PPPs) de habitação, o que mostra uma contradição profunda”, cita.

“Em vez de direcionar as terras públicas e a política habitacional para garantir a moradia das famílias, esses importantes recursos públicos estão servindo às remoções das famílias sem qualquer garantia de atendimento habitacional”, completa.

No caso da ocupação Jardim Julieta, na Zona Norte, a SP Urbanismo, órgão vinculado à Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano, exigia a remoção das famílias mesmo durante o período de pandemia. Depois de uma mobilização dos moradores, somada a um contexto de mobilizações no âmbito nacional pelo cancelamento das remoções, a empresa pública suspendeu a reintegração de posse até o fim do período de emergência por conta da pandemia.

Apesar da decisão, os moradores têm medo do prazo não ser cumprido. “Temos um prazo só até fevereiro de ficar aqui, porém estamos todos muito apreensivos e com muito medo de ficarmos sem uma moradia, sem condição nenhuma de pagar aluguel e sem prazo de quando acaba a pandemia”, diz Buba.

Ele lembra que na ocupação há muitos idosos, pessoas com comorbidades, consideradas grupos de risco da Covid-19, além de pessoas com deficiências físicas e mães solos. “Como ficam nossos empregos? Há mães com três ou cinco filhos”.

De acordo com os relatos colhidos pelo Observatório de Remoções, parte das pessoas que fizeram a ocupação do terreno passou por remoções violentas por não conseguirem arcar com os custos do aluguel. A pesquisadora da entidade ressalta que além da vulnerabilidade econômica se somam outras, mas não foi feito nenhum tipo de levantamento do perfil das famílias pela prefeitura até agora, algo que dificulta as políticas públicas para atender a população.

Moradora mostra a casa improvisada levantada com a ajuda de familiares e amigos da ocupação. As dificuldades financeiras são citações comuns por ali. Foto por: Léu Britto

Em julho, movimentos de moradia do estado de São Paulo, como o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), enviaram uma denúncia à Organização das Nações Unidas (ONU) sobre as remoções de ocupações ocorridas durante a pandemia do novo coronavírus.

A denúncia tratava dos casos no estado de São Paulo. Segundo os movimentos, as ações de remoção forçada de populações faziam com que mulheres, em muitos casos, gestantes, homens, crianças, idosos, pessoas portadoras de deficiência e outras comorbidades ficassem expostos à violência da remoção e da falta de moradia, acrescida da exposição ao novo coronavírus.

Desde o início da pandemia, setores do Legislativo, da sociedade civil, do judiciário e a academia se mobilizam para, de alguma forma, impedir remoções durante a crise sanitária. O relator especial da ONU para o direito à moradia Balakrishnan Rajagopal pediu que o Brasil impedisse as remoções durante a pandemia: “Despejar as pessoas de suas casas nessa situação, independentemente do status legal de sua moradia, é uma violação de seus direitos humanos”. O seu pedido não vem sendo seguida nas grandes cidades do Brasil.

*Por questões de segurança, os nomes não foram identificados

Lucas Veloso é formado em Jornalismo e é um dos co-fundadores da Agência Mural, uma iniciativa que tem como missão minimizar as lacunas de informação e contribuir para a desconstrução de estereótipos sobre as periferias da Grande São Paulo. Com passagem no portal Alma Preta, atualmente, Lucas é repórter na Agência Mural e escreve no site Papo de Homem.


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