A realização do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) agora em janeiro e fevereiro de 2021, é a manifestação mais explícita de que os grupos dominantes do Brasil jamais irão aceitar pacificamente: o avanço na democratização do ensino superior, por mais incipiente que ele seja. Em meio à pandemia, sem aulas presenciais praticamente todo o ano de 2020, a realização da prova-chave do ensino superior brasileiro acontecerá a despeito da campanha Adia Enem da reivindicação da União Nacional dos Estudantes (UNE) e da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES) “por um ENEM em segurança e sem desigualdade”.
Conjuntura Política
A própria existência de uma prova de seleção para acessar as universidades públicas é um instrumento de ratificação das nossas desigualdades educacionais. O papel do vestibular numa realidade social marcada por profundas diferenças de classe atua para legitimar disparidades. Entretanto, é importante destacar que nas duas últimas décadas, a luta de diferentes movimentos sociais se materializou em inúmeras políticas de ações afirmativas que conseguiram vitórias importantes no campo educacional. Por consequência, pela primeira vez na história das universidades públicas, a homogeneização racial branca de classe média e alta foi posta em xeque nos seus mecanismos de reprodução. Como demonstração disso, a pesquisa “Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil”, divulgada em 2019, mostrou que o índice de alunos pardos e negros matriculados em universidades públicas chegou a 50,3%.
Dentro desse contexto de transformações relevantes, as provas de seleção para o ensino superior—como essas do exame nacional do ensino médio—vinham sendo encaradas pela juventude periférica como um desafio não mais tão impossível de se superar. Isso porque, a força dos movimentos populares e do movimento negro, em particular, se mostrou e tem se mostrado durante todo esse tempo como uma aliada fundamental nos processos de conscientização política de estudantes pobres, desmistificando a ideia de meritocracia e construindo protagonismos na luta por direitos sociais.
Evidentemente, esse movimento que de uma forma ou de outra tem modificado o perfil do corpo discente das universidades públicas, provocou reações contundentes da elite no país. Para eles era inadmissível compartilhar o mesmo espaço historicamente elitizado, com pessoas de pele escura e moradoras de bairros empobrecidos. Quem era essa “ralé” que de uma hora pra outra achou que não deveria mais ocupar os subempregos ou se contentar com o ensino fundamental ofertado em escolas públicas precarizadas?
Aqueles que sempre se julgaram os protagonistas da História jamais iriam aceitar pacificamente a ascensão de uma classe que não fosse a sua. Por isso, incansavelmente batalham pelo fim das políticas afirmativas. Por isso, criam projetos pedagógicos, como o famigerado Escola Sem Partido, que rechaçam o pensamento crítico nos espaços escolares. E, por isso, impuseram uma reforma no ensino médio através da MP 746/2016 que, na prática, suprime o direito à integralidade das áreas de conhecimento no processo de formação de todos os estudantes, conferindo um caráter de ensino muito mais tecnicista e fortemente propenso a atender exclusivamente as demandas imediatas do mercado.
ENEM 2021 Silencia o Pensamento Crítico
A atual conjuntura política do Brasil marcada por um governo de extrema direita tem sido, nesse sentido, o palco perfeito para que ações de ressentidos, com a mentalidade escravocrata, tenham efeitos devastadores nas políticas educacionais. Não basta mais, por exemplo, o ENEM ser um instrumento de seleção classista. Na gestão atual, é preciso que seja também uma prova meramente técnica. Não por acaso, o ENEM 2021 silenciou temas atuais relevantes como, por exemplo, as questões referentes ao racismo, à história do Brasil escravista ou mesmo ao período da ditadura civil militar—há dois anos ausente nas questões do ENEM—e pasmem não teve nenhuma questão sobre a pandemia da Covid-19 na primeira fase do ENEM deste ano.
O professor Francisco Overlande que atua na rede pública de ensino e também é pesquisador e educador popular no Complexo da Maré apresenta um excelente diagnóstico sobre esse contexto: “Quando uma prova como o ENEM que por si só já é extremamente nociva às classes populares se nega também a abordar temas que são relevantes para a formação dos jovens, isso contribui para um processo de exclusão, de silenciamento. Na prática, são as velhas elites políticas e econômicas dizendo pra esse jovem que falar de racismo ou de igualdade social não tem a menor importância. O que ele precisa saber sobre isso, já foi dito pela narrativa oficial. Ou seja, [que] somos uma democracia étnica, harmoniosa e com a virtude dos colonizadores”.
Todas essas ações podem parecer, em princípio, despropositadas ou até mesmo sem consequências concretas para as políticas de acesso ao ensino superior. Mas uma análise mais detalhada sobre essas estratégias de governo nos levam a concluir exatamente o contrário. Isso porque é o conjunto da obra que vai ocasionando os efeitos perversos. Quando se impede a formação da consciência crítica já na base do ensino público, quando se incuti nos mais pobres a falsa ideia de que o pragmatismo técnico serve mais do que um raciocínio questionador, ou quando se constrói no imaginário popular que profissões de cunho intelectual não cabem aos trabalhadores comuns, apenas um seleto grupo acaba sendo visto como preparado para assumir os postos de comando no país.
Portanto, dentro dessa conjuntura política atual, a prova do ENEM se apresenta não somente como a consolidação desse projeto de poder. O ENEM será um instrumento de seleção que exige do candidato um conhecimento extremamente raso do ponto de vista crítico, sem qualquer conexão com a realidade social e repleto de conteúdos escolares que privilegiam basicamente o aspecto da memorização. Ora, historicamente os estudantes das escolas públicas precarizadas do Brasil sempre sofreram com a falta de professores, com disciplinas escolares ministradas pela metade, ou até mesmo com conteúdos escolares que praticamente sequer são apresentados em sala de aula. Esta é uma realidade muito diferente das escolas particulares que as classes média e alta podem pagar: escolas que investem exatamente no excesso de conteúdos curriculares, dispõem de estruturas físicas que permitem o estudo continuado e, principalmente, adotam estratégias de treinamento para superar provas de caráter essencialmente técnico. Dessa maneira, alunos da rede privada acessam a maioria das vagas nas universidades públicas do país.
Retrocesso e Exclusão
Todo esse conjunto de fatores no médio e longo prazo tem o potencial de minar gradativamente os sonhos da juventude periférica ao acesso a educação superior. Pouco a pouco, a autoestima vai sendo desconstruída. As dificuldades de se adequar vão ganhando contornos maiores e, por fim, a propaganda massiva de que a universidade não é o lugar dos pobres vai ganhando mais sentido na vida dos estudantes subalternizados. Daí, o resultado tende a se materializar no maior desejo dos privilegiados: um país cujos governantes se esforçam em aprofundar nossas desigualdades de classe, raça e gênero, conseguem manter os velhos grupos de exploradores no poder.
Talvez, o ENEM de 2021 tenha sido até agora a maior idealização do que deseja essa classe que durante as duas últimas décadas tanto se ressentiu ao ver seus históricos privilégios ameaçados por políticas públicas inclusivas. Políticas como as cotas raciais e sociais, o Programa Universidade para Todos (PROUNI), e as bolsas de auxílio para jovens universitários pobres, estão todas sob ameaça. Uma prova que sequer deveria ter acontecido no pico de uma pandemia mortal, uma pandemia que o atual governo genocida fez questão de manter, expondo de maneira criminosa milhões de pessoas em todo o Brasil. Uma prova que a maioria esmagadora dos estudantes precarizados pela falta de acesso ao estudo neste último ano possui probabilidades mínimas de superar. O ensino remoto esbarrou nas realidades precárias de grande parte dos jovens periféricos, onde a internet poucas vezes pôde ser utilizada pela falta de aparelhos adequados ou mesmo o acesso a uma rede de conexão estável.
Realidade essa, que não foi vivenciada pelas classes de maior capital político, social e econômico. Isso porque, dentro desse grupo, o acesso às aulas por celular e internet rápida não se constituiu como um obstáculo real. Espaços adequados para se concentrar exclusivamente aos estudos e a disponibilidade de tempo para praticar exercícios também não se apresentaram como problemas concretos. Portanto, enquanto a maior parte dos estudantes pobres ficou seriamente prejudicada, este outro grupo de jovens acumulou ainda mais ferramentas para realizar o ENEM deste ano e, por conseguinte, ingressar no ensino público superior sem grandes dificuldades.
A fala de Ana Beatriz, 22 anos, aluna do pré-vestibular comunitário do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (CEASM)—o mesmo onde estudou Marielle Franco—reflete bem esse panorama de desigualdades agravado no contexto da pandemia. “Eu ia fazer o ENEM. Mas não consegui estudar [no] ano passado. O clima em casa, e às vezes a internet, não colaboravam. Medo de pegar Covid, porque eu continuo usando máscara e minha mãe é do grupo de risco. Tenho ansiedade, então é difícil estudar em casa sozinha, só eu e a tela do computador… Meus sobrinhos, pessoas me chamando quando estou estudando, atrapalham. Dificuldade de me concentrar para estudar. E como não estudei, não queria ir fazer o ENEM e me sentir mal com as notas, mesmo sabendo que não estudei. E ainda tem a questão da Covid. Eu me cuidei até agora. Não posso me arriscar. Minha mãe tem hipertensão, e 56 anos. Aí fico com receio. Fora a falta de vontade de estudar sozinha. Gosto de estudar em sala de aula, onde posso tirar dúvidas, [têm] colegas que ajudam… O clima onde posso me concentrar e posso estudar sem estresse”, descreve Ana Beatriz.
Por fim, foram mais de 50% de abstenções, sem mencionar aqueles que foram e sequer conseguiram entrar nas salas, numa prova em que nitidamente se encaminha para ser tudo aquilo que os conservadores extremistas tanto desejam. Um instrumento desconectado com a realidade social do país. Uma prova que não instiga a refletir sobre nosso passado escravocrata ou sobre os períodos de supressão da democracia. Uma prova que deliberadamente—não tenho dúvidas—não foi elaborada para se pensar as questões chaves do Brasil nos séculos XX e XXI. Mas ao contrário, apresentou temas de caráter claramente conteudista, eurocentrados e completamente distantes do cotidiano de milhões de estudantes das classes populares. Não por acaso, o pastor Ministro da Educação Milton Ribeiro disse que o ENEM de 2021 foi “um sucesso“. Afinal de contas, ele cumpriu o que se propôs. A velha elite de privilegiados vai adentrar tranquila nos espaços educacionais que sempre julgou serem exclusivamente seus.
Humberto Salustriano, cria da Maré, milita no campo da educação, principalmente nos pré-vestibulares comunitários. É professor de História na Rede de Ensino Municipal de Quissamã, na Região Norte fluminense, e pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisas Sociais da Maré (NEPS-CEASM).