A Chave da Gaiola: O Funk Como a Arte Libertadora de Corpos na Favela [PODCAST]

Arte original por David Amen
Arte original por David Amen

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Esta matéria faz parte da série do projeto antirracista do RioOnWatch. Conheça o nosso projeto que trouxe conteúdos midiáticos semanais ao longo de 2021: Enraizando o Antirracismo nas Favelas.

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Principal nome na cena funk da atualidade, é impossível não se lembrar do DJ Rennan da Penha sem associá-lo imediatamente ao Baile da Gaiola, que acontecia no Complexo da Penha, Zona Norte. O DJ ganhou fama e reconhecimento à medida em que o baile, principal palco de divulgação do 150BPM, ritmo que nasceu na Nova Holanda pelas mãos do DJ Polyvox, também ganhava projeção e se afirmava como o principal ritmo da cidade. Apesar de não acontecer mais na mesma proporção astronômica que antes, o baile ensaiou alguns retornos, mesmo em meio à pandemia, mas sempre com menor público e menor proporção, se comparado às edições do passado. Em seu auge havia, em média, 10.000 pessoas participando do baile no Complexo da Penha em dias normais de festa. Já em dias de celebrações ou eventos especiais, quase 25.000 dançavam pelas ruas da Penha, como aconteceu no evento de aniversário do DJ Rennan, em 2018.

Baile da Gaiola visto de cima, captura de tela do clipe 'Hoje eu Vou parar na Gaiola', de Rennan da Penha.

No auge do sucesso, em 2018, o Baile da Gaiola, além de reunir milhares de pessoas em ruas e becos da Penha, passou a ocupar novos espaços físicos, inclusive enquanto ideia e potência. Não só no Rio, mas em vários estados do Brasil, as músicas que embalaram o baile eram sucesso, assim como os podcasts do DJ Rennan que eram muito ouvidos e ainda estão disponíveis em seu canal no SoundCloud. Mas era em sua cidade que o seu som mais conquistava estes outros espaços: ele fez shows em várias casas de show e boates do Rio, transformando-as no próprio Baile da Gaiola, levando um pouco da Penha para toda a cidade. Rennan quebrou uma hierarquia do palco enquanto espaço de poder e conquistou um local que os DJs só tinham alcançado na cena da música eletrônica: o centro do palco, o centro da cena.

DJ Rennan da Penha e Mulher Pepita na 1ª Parada LGBT+ do Baile da Gaiola na Penha. Screenshot VICE

Um favelado, era ele o principal DJ de um dos maiores bailes funk que a cidade já testemunhou. Afinal, não se tem registro de nenhum outro baile que tenha levado 25.000 pessoas por noite à favela. Rennan chegou às casas de show das mais diversas áreas do Rio, mas também de outros estados, como Amazonas, Minas Gerais, Espírito Santo e São Paulo. E é claro que essa ousadia em romper fronteiras entre a favela e os espaços fora dela sempre incomodou muita gente. Este incômodo atingiu seu pico principalmente depois de promover a 1ª Parada LGBT+ do Baile da Gaiola, em 26 de janeiro de 2019, a primeira parada gay do bairro da Penha.

A partir da Parada LGBT+, o baile não seria mais o mesmo. Já na semana seguinte à edição especial do baile, em 2 de fevereiro de 2019, uma operação policial feita à tarde impediu a realização do evento. Sara de Souza, moradora do Complexo da Penha, confirma que em seguida o baile não aconteceu até o carnaval daquele ano. Marcela Menezes, também moradora e manicure local, lembra de uma outra operação que aconteceu alguns dias depois. Ela ouviu os tiros de seu salão e se recorda que naquela noite não houve baile. Marcela também menciona ter ficado com um prejuízo decorrente dessa operação: um vidro de seu salão recebeu um tiro. Ela precisou trocá-lo às pressas.

⚠️OPERAÇÃO NO COMPLEXO DA PENHA⚠️
TERMINA COM 4 INOCENTES BALEADOS!

Uma operação policial realizada nas comunidades…

Publicado por Vila Cruzeiro – RJ em Domingo, 17 de fevereiro de 2019

Ambas Sara e Marcela afirmaram que o baile retornou na tradicional “micareta de carnaval”. Na Rua do Cajá, o baile seguiu normalmente no fim de semana do carnaval e também no fim de semana seguinte, quando as escolas de samba do grupo especial fazem o desfile das campeãs na Marquês de Sapucaí. Mas já no dia seguinte ao “Sábado das Campeãs”, o baile foi interrompido à tiros para impedir o show do Poesia Acústica, que encerraria a programação da noite. Mesmo em meio à confusão, à correria e ao tiroteio, era possível ouvir os gritos das pessoas desesperadas ao verem o blindado da PM entrando no baile sem a mínima explicação. Esse episódio truculento silenciou de vez o Baile da Gaiola. Depois disso, ele não voltou a acontecer.

Ter o baile interrompido por tiros deflagrados pelo blindado da Polícia Militar—o caveirão—é experimentar com o corpo o atravessamento da política de morte do Estado, que estampa os jornais e que está nos noticiários diariamente: agredindo, invadindo e matando os corpos negros e favelados. Interromper um baile como o da Gaiola é limar as possibilidades de discurso, de entretenimento e de potência artística desses corpos.

Depois desses acontecimentos, em 22 de março de 2019, o DJ Rennan da Penha foi preso por uma decisão judicial de segunda instância. A prisão do DJ é decretada com base na revogação de uma decisão judicial anterior, em primeira instância em 2016, que o havia absolvido por falta de provas na acusação de associação ao tráfico de drogas do Complexo da Penha. É bom lembrar, no entanto, que esta foi a segunda vez que o DJ foi preso no mesmo processo: em 20 de janeiro de 2016, Rennan já havia sido preso provisoriamente, por seis meses, neste mesmo caso. A decisão de segunda instância afirmou que Rennan atuou como “olheiro do tráfico” e que “organizava bailes clandestinos”. Além disso, a decisão cita a atuação de Rennan em uma rede de comunicação alternativa entre os moradores da Penha, uma prática comum nas favelas, para que os moradores fiquem atentos a riscos em geral, como operações policiais, falta de água, chuvas fortes e outros assuntos importantes para a comunidade.

Há nesta condenação várias falhas—como aponta Luís Guilherme Vieira, integrante da Comissão de Defesa do Estado Democrático de Direito da OAB do Rio de Janeiro em uma matéria do Fantástico de 31 de março de 2019—o que induz a criminalização da cultura popular, da cultura preta, como o baile funk. Era esperado de Rennan que ele abdicasse de sua identidade e das narrativas do cotidiano das favelas, que fosse então o “bom negro”, que não propagasse um discurso libertador dos corpos e tampouco reivindicasse para si um protagonismo. Além disso, quando Frantz Fanon, filósofo político e militante, fala do “bom preto”, ele fala da reprodução de um estereótipo imposto pela branquidade. Trata-se de impor ao negro um subemprego estável, uma rotina regrada dentro do jogo de cerceamentos impostos socialmente pelas elites que subalternizam esses corpos negros há anos. E, acima de tudo, de negar seu direto à arte e a ser legitimado enquanto artista.

No dia 24 de abril de 2019, um mês depois de ter a prisão decretada e o pedido de habeas corpus negado, Rennan se entrega à polícia. A sua liberdade só seria expedida em 21 de novembro de 2019, através de um habeas corpus concedido pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Rennan ficou fora da cena por sete meses, enclausurado apenas por ser um artista, por fazer de sua música um respiro de uma rotina tão opressora. Preso por fazer um registro de uma poética dos corpos que vivem enclausurados pelas fronteiras estabelecidas pelo Estado, que encontram no “ritmo louco”—como Rennan fala no seu podcast—um espaço onde podem vir a ser o que desejam.

Nesse meio tempo, Rennan era assunto recorrente, sendo citado por muitos, e em notas de repúdio da OAB em veículos de notícia com posicionamentos contrários à sua prisão. Ganhou até o Prêmio MultiShow de Música Brasileira em 2019 com “Hoje Eu Vou Parar na Gaiola”, que mostra como o baile se tornou uma potência para fora da Penha. Isso porque, o trecho final do clipe é gravado no próprio baile, além de Rennan trazer um MC Paulista, MC Livinho, para cantar uma produção feita por ele. O prêmio foi recebido das mãos de Anitta e Paulo Gustavo, por sua ex-namorada Lorena Vieira em um discurso que pedia sua liberdade, que aconteceu em novembro de 2019.

Rennan da Penha assinando contrato com a Sony Music. Divulgação Sony

Após recuperar sua liberdade, Rennan assinou um contrato com a Sony Music para ser artista exclusivo e em janeiro de 2020 gravou um projeto audiovisual intitulado “Segue o Baile”. A tracklist do projeto inclui várias músicas novas, com a participação de artistas já consagrados como: Pocah, Luiza Sonza e 3030, Mc Rebecca, e Thiaguinho MT e JS o Mão de Ouro. Além disso, os sucessos que ele consagrou no baile estavam presentes em forma de medley, compilados de músicas, estruturados em três blocos: Me Solta / Brota na Penha / Eu Vou Passar; E Ai Nego Drama / Sabota Elas / Roda a Penha Malandra; e Finalidade Era Ficar Em Casa / Olha Quem Brotou no Juramento / Desce Com o Copão, além do sucesso “Hoje eu Vou Parar na Gaiola”. Infelizmente a agenda de divulgação do projeto foi afetada por um motivo óbvio, a pandemia, que impediu a realização da agenda de shows. Apesar disso, o projeto rendeu bons frutos: “Talarica” se tornou um sucesso e ganhou até um clipe. Mais recentemente Rennan trabalhou com Luisa Sonza mais uma vez em sua nova parceria com Pabllo Vittar e Anitta.

Na onda das lives pandêmicas, Rennan fez cinco no total: três no Konteiner, casa de show no Complexo da Penha, e duas em sua nova casa, no Recreio dos Bandeirantes, seu refúgio na reclusão pós-liberdade, para se distanciar da imagem de “cria da Penha”. Uma dessas lives foi para angariar doações para a ONG Todxs, mostrando a continuação do compromisso do artista com o público LGBTQ+, firmado em 2019 com a realização da Parada do Baile da Gaiola.

Quando Rennan da Penha é preso por ser um artista negro e favelado, surgem questionamentos: como falar de arte na favela? Como fazer com que a sociedade de forma mais ampla entenda que o funk é uma arte? Como deixar claro que criar obras de arte sobre seus corpos, frequentemente invisibilizados pela arte branca do asfalto, não é crime e sim liberdade de expressão? Quando a sociedade irá compreender que descrever experiências que estes corpos oprimidos têm entre si e com seu território é um ato político libertador?

É preciso refletir sobre a arte e o papel dela no contemporâneo. Pensar como a arte contemporânea não vem do nada, mas se faz a partir de um processo que retoma outros feitos do passado. O grafite está nas paredes das ruas de cidades de várias culturas, há milênios, por exemplo, como demonstram achados arqueológicos de vários períodos da história, desde pinturas rupestres no Brasil, até pelos muros da Roma Antiga.

O funk está nos ouvidos, mas também é uma experiência que retoma as cantigas galego-portuguesas, da região da Galícia, que eram entoadas pelos populares e que versavam sobre o corpo, desejo, o erotismo e a sexualidade provocando sensações nos corpos. Essa sensualidade presente desde as festas medievais chega nos dias de hoje, pelos caminhos da história, na forma dos paredões dos bailes de favela. É preciso estabelecer um diálogo que encontre a chave para compreender esse percurso, entendendo que mesmo nas culturas mais populares há herança histórica. É necessário construir o conhecimento coletivamente, contemplando as angústias e dores, as transformando em arte.

Pode parecer impossível estabelecer esse diálogo à primeira vista, mas é de extrema importância pensar que a chave que abre essa gaiola seja a do baile, seja a saída do aprisionamento no território, do encarceramento cotidiano desses indivíduos. A saída não é outra senão a arte! A arte presente no cotidiano da favela faz com que milhões resistam pulsando livremente a vida, dançando, cantando e refletindo sobre suas trajetórias com palavras e movimentos envolventes. É somente a partir da experiência da arte que eles poderão se entender enquanto sujeitos questionadores, conscientes do seu lugar no mundo, nas estruturas de poder, e dispostos não apenas a se questionar, mas a se mobilizar e a resgatar suas histórias individuais, promovendo a memória coletiva de seu território. Daí, podem traçar novos rumos para um futuro onde a favela e a sua arte não sejam julgadas, mas que sejam apreciadas.

Coletivamente, precisamos romper sempre as fronteiras do estigma. Condena-se, principalmente o funk, pela temática muito presente do sexo, por incitar o movimento, a dança e a liberdade dos corpos, por pensar o lugar do prazer em uma sociedade que mata e encarcera em prisões cotidianas esses corpos que, aos fins de semana, enchiam as ruas da Penha e de centenas de outras favelas pelo Rio. É extremamente libertador ser reconhecido e se ver representado em produções musicais que narram o cotidiano da vida na favela. Fala-se que o funk é machista, mas é bom que fique claro: não é apenas o funk que é machista, é a sociedade. Não é só o funk que fala sobre o corpo, a arte em geral sempre falou sobre isso. O funk chama atenção e mostra que os corpos negros não são objetos de trabalho, exploração e alvos de morte: eles pulsam vida, prazer, sentimentos. E estão conscientes disso!

Sobre o autor: Artur Vinicius Amaro, também conhecido pelo seu heterônimo in Drag Vanubia Close, tem sua história e narrativa construídas e, como um corpo que se comunica e que é atravessado pelas ruas e becos do complexo da Penha, é estudante de Letras da UFRJ em seu último período de graduação, onde pesquisa o funk carioca, mais especificamente em seu recorte contemporâneo, o 150BPM e o 170BPM.

Sobre o artista: David Amen é cria do Complexo do Alemão, co-fundador e produtor de comunicação do Instituto Raízes em Movimento, jornalista, grafiteiro e ilustrador.

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