Educação Científica e Negritude: Mulheres Negras na Ciência [PODCAST]

Arte original por Raquel Batista
Arte original por Raquel Batista

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O tema educação científica ainda é muito distante dos assuntos que pairam pelos corredores das escolas brasileiras, principalmente, no que diz respeito às meninas. Entre as ciências e o universo feminino existe uma lacuna considerável. As jovens não são incentivadas a pensar na ciência ou a fazê-la. Isso acontece de maneira tão sistemática que parece algo intencional quando, na verdade, é um problema estrutural. Inconsciente ou conscientemente, existem alguns espaços que são projetados para não ter a presença de mulheres. Quando pensamos, por exemplo, na matemática a predominância de homens é incontestável.

Quando se trata de algumas profissões, principalmente as que tangem as ciências humanas e da saúde, percebemos uma mudança significativa nessa configuração. Lá, podemos observar um número muito grande de mulheres. É possível considerar que até nas profissões acadêmicas existe um lugar destinado para elas, e isso tem se tornado cada vez mais uma regra. São raras as exceções que caminham na contramão desses fatos.

A cientista da Fiocruz Hilda da Silva Gomes exige respeito com relação à sua cor.

Hilda da Silva Gomes, 59, é bióloga e educadora do Museu da Vida, e trabalha em uma instituição de referência internacional, a Fiocruz. Lá, ela e outras duas educadoras desenvolvem projetos voltados para a juventude periférica: o Pró-Cultural (Programa de Iniciação à Produção Cultural do Museu da Vida/Fiocruz) e Meninas Negras na Ciência que visa a divulgação científica como estratégia de promoção da saúde, cidadania e empoderamento. O trabalho realizado pelas educadoras do museu visa eliminar a lacuna estrutural existente entre a juventude negra e o acesso à ciência.

Dificilmente essas meninas são ou serão estimuladas no espaço escolar, com isso se torna essencial ir além do espaço educacional para preencher esse papel de estímulo e de orientação. O que acontece é que muitas vezes nem no ambiente familiar essas meninas-mulheres são motivadas e encorajadas a pensar em profissões voltadas para o fazer científico.

Thayná Rodrigues. Foto de arquivo pessoal Thayná Rodrigues

Thayná Rodrigues, 23, estudante de medicina, moradora do Pavão-Pavãozinho, na Zona Sul, revelou que seu interesse pela ciência veio com o advento dos estudos. Contou que desde o ensino fundamental se manteve interessada pela área da ciência. Entusiasmada, relatou a sua curiosidade em saber dos seres vivos, animais, florestas. Foi ainda na infância que o interesse pela biologia marinha despertou. Thayná disse que, mesmo tendo mudado de biologia para medicina, a ciência foi a sua melhor descoberta: “Eu via isso [a biologia marinha] como algo curioso, que poderia agregar alguma coisa, que eu poderia estar conhecendo sempre pontos desconhecidos. Então, a partir do momento que eu conheci tal coisa, uma outra coisa estava ali à espera para ser conhecida. Eu acho que isso é bom, isso que intriga sobre a ciência. Apesar de a gente [supor] conhecer tudo, a gente sempre tem muito mais a conhecer”, contou Thayná empolgada.

Pertencente a uma geração diferente, mas com sonhos e desejos iguais, Hilda Gomes cresceu na roça, rodeada de árvores e animais, e relatou que seu interesse pela ciência também começou pela curiosidade. Primeiro de seguir uma fila de formigas, depois pela maravilha de experimentar diversas frutas das árvores, de observar o arco-íris e de sentir o cheiro da chuva na terra molhada.

Enedina Alves Marques (1913-1981), a primeira mulher negra a se formar em engenharia civil no Brasil, no calendário “Cientistas Negras”.

Mas essa nem sempre é a realidade para a maioria das meninas que querem embarcar no campo da educação científica. Muitas delas não têm nem o direito à infância. Quando paramos para fazer o recorte de raça, a situação fica ainda pior. O que nos faz questionar: as meninas negras podem fazer ciência? Existe espaço para mulheres negras nas ciências? É uma pergunta que faz a retórica ficar embargada! O racismo estrutural não permite às meninas negras sonhar. Até quando elas sonham, são rapidamente lembradas que não podem permanecer no sonho. A realidade dessas meninas exige que “elas não percam tempo com isso”. E o lugar que deveria ser da ciência é ocupado pelas frustrações.

Pressionadas a ter uma profissão e a trazer renda para casa, geralmente, elas são motivadas a cursar cursos rápidos, que as prepare velozmente para o mercado de trabalho. Nesse cenário, as possibilidades de inserção de mulheres negras na educação científica, resultado de anos de acúmulo educacional, são reduzidas, reforçando a ideia de que mulheres não podem ocupar funções “pensadas para o homem”. Então elas precisam, de alguma forma, ocupar as profissões atreladas ao que seria feminino: professora, enfermeira, cuidadora de idosos e de crianças, empregadas domésticas.

Katemari Rosa, física e professora da UFBA, no calendário “Cientistas Negras”.Recentemente, o G1 divulgou uma pesquisa que aponta a predominância masculina no número de pesquisadores no Brasil. As mulheres pesquisadoras com doutorado no Brasil são 31.394, pouco mais de 40% do total de cientistas doutores do país. Apesar das mulheres serem minoria na ciência, elas representam um número expressivo, principalmente quando levamos em consideração o contexto no qual o governo atual corta recursos de pesquisas científicas, não incentiva jovens a perseguirem a educação científica e reproduz o machismo até com um certo orgulho.

Ainda segundo a matéria, a Plataforma Lattes gerou dados que mostram a real disparidade entre homens e mulheres. Para quem não sabe o que é a Plataforma Lattes, ela é uma espécie de currículo vitae acadêmico, no qual estudantes e pesquisadores em diversas áreas vão construindo a sua trajetória de feitos acadêmicos, num espaço virtual. Nesta plataforma, as/os cientistas ganham visibilidade compartilhando suas pesquisas individuais ou em grupos de estudos formados pelos professores universitários.

Infográfico Doutorados Científicos no Brasil, por gênero e área — Foto: Rodrigo Sanchez/G1

Nedir do Espírito Santo, matemática formada pela UFF, no calendário “Cientistas Negras”.Na totalidade dos dados informados na pesquisa, o Brasil tem 77.895 pesquisadores nas cinco maiores áreas de conhecimento a nível de doutorado; destes 59,69% são homens e 40,31% são mulheres. Tendo em vista que as mulheres são 51,8% da população do Brasil e os homens 48,2%, é evidente a desproporção da presença de mulheres na pesquisa, apesar de parecer pouca diferença. Por outro lado, ainda segundo dados levantados pelo Open Box da Ciência, enquanto os homens numericamente dominam as ciências exatas (68,9%) e nas engenharias (74%), nas ciências da saúde as mulheres são maioria, chegando a quase 60%.

Junto à falta de mulheres em algumas áreas e espaços da ciência, há também a diferença salarial entre homens e mulheres que joga contra elas: uma trabalhadora brasileira ganha em média 77% do que ganha um trabalhador brasileiro. E, mesmo com uma porcentagem expressiva de mulheres ocupando cargos nos departamentos de saúde, elas ainda ganham menos que os homens nas mesmas funções. Esse fato se repete para mulheres em muitas outras funções e profissões, dentro e fora da ciência. O machismo estrutural determina espaços, renda e acessos. E, além disso, o racismo também opera. Logo, se uma profissional for negra, a inserção dela no mercado de trabalho vai ser ainda mais difícil.

As cientistas Katherine Johnson, Dorothy Vaughan e Mary Jackson junto ao elenco do filme “Estrelas além do Tempo”

O filme Estrelas Além do Tempo apresenta a jornada da mulher negra em um espaço não pensado para ela. Em meio à Guerra Fria e em plena segregação racial nos Estados Unidos dos anos 1960, três mulheres negras integram a equipe responsável por levar o primeiro homem à lua. Elas tiveram que mostrar, a duras penas, que tinham domínio sobre seus ofícios, tinham que provar o valor de suas credenciais acadêmicas de excelência a todo o tempo. Quantas mulheres negras tiveram que passar pelo mesmo para conquistar o respeito merecido?

Sônia Guimarães, física e professora do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), no calendário “Cientistas Negras”Em 2020, sob a supervisão de Hilda Gomes, Joselí Maria Silva dos Santos criou o calendário de divulgação científica Cientistas Negras. Nele temos nomes como: Enedina Alves Marques (1913-1981), a primeira mulher negra a se formar em engenharia civil no Brasil; Katemari Rosa, física e professora da UFBA; Nedir do Espírito Santo, matemática formada pela UFF; Sônia Guimarães, física e professora do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA); Joana D’Arc Félix de Souza, química e docente e pesquisadora na ETEC Prof. Carmelino Correa Jr., em Franca, interior de São Paulo; entre outras.

Ao ganhar o prêmio Emmy Awards de melhor atriz, Viola Davis citou Harriet Tubman (1822-1913) no discurso: “A única coisa que separa a mulher de cor de qualquer coisa é a oportunidade”. Mesmo que o número de mulheres na ciência seja menor que o de homens, elas existem. Principalmente, as mulheres negras.

Giovanna Barbosa da Cunha, 19, é estudante de engenharia química pela UFRRJ e acredita que, com foco nos estudos, ela pode alcançar lugares inimagináveis para uma mulher negra, e que pode com essa conquista, ser uma referência para outras meninas-mulheres, mostrando que elas também são capazes. Que este também é o lugar delas.

Confirma-se a crença de Giovanna, de Thayná e de tantas outras meninas e mulheres, de que o fazer científico é também um ofício “de mulher”. No ano passado, com o prospecto de avanço do coronavírus no país, o Brasil pôde conhecer Jaqueline Goes de Jesus, 31, uma jovem cientista biomédica baiana e negra que integrou a equipe de pesquisadores na Faculdade de Medicina da USP, responsável pelo sequenciamento do genoma do vírus SARS-CoV-2. Esse feito foi alcançado em apenas 48h após a confirmação do primeiro caso da doença no Brasil. Assim como Jaqueline, que foi revelada para o Brasil em meio à pandemia, quantas Hildas, Thaynás, Joselís, Enedinas, Katemaris, Nedirs, Sônias, Joanas, Giovannas e outras Jaquelines estão no seu fazer científico esperando a oportunidade chegar? A ciência tem que ser cada vez mais “coisa de mulher”.

Equipe de pesquisadoras da Faculdade de Medicina da USP sequencia o genoma do novo coronavírus apenas 48h depois da primeira infecção no país.

Sobre a autora: Cynthia Rachel Pereira Lima, carioca, moradora da Zona Norte, é mestranda de Literaturas Africanas na UFF. Cynthia criou o coletivo @encruzilhadafeminina de Arte Negra. Nele escreve e dirige peças teatrais. Compõe o projeto @pretonopalco que registra a cena negra. Ela é professora de literatura voluntária do Instituto de Formação Humana e Educação Popular (IFHEP).

Sobre a artista: Raquel Batista é artista visual e trabalha como fotógrafa e ilustradora. É estudante na Escola de Belas Artes da UFRJ, mulher negra e moradora da Zona Oeste do Rio. Seu objetivo é através da arte representar pessoas, que como ela, uma jovem negra e periférica, nem sempre são vistas.

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