Esta matéria faz parte de uma série sobre justiça e eficiência energética nas favelas do Rio, e também faz parte da série de matérias do projeto antirracista do RioOnWatch.
No início do século XX, o Rio de Janeiro, então capital do Brasil, no bojo das reformas urbanas de Pereira Passos—um prefeito motivado a tornar a capital uma cidade moderna—adotou o sistema de iluminação elétrica, tanto nas vias públicas, como nas residências. Essa primeira rede atenderia somente a Zona Portuária e seus entornos, onde habitava a aristocracia. A política higienista ao mesmo tempo em que trazia a luz elétrica para o Centro da cidade, removia de lá o povo negro e pobre, que era jogado às margens da capital.
Muitas são as histórias apagadas que se relacionam à urbanização do Rio e à reforma do Pereira Passos. É importante compreender as forças produtivas que permitiram uma transformação tão acelerada e de tão grandes proporções no Centro do Rio. Investigar a força de trabalho, os materiais e as estratégias logísticas empregadas neste projeto pode jogar luz sobre esse período e suas cicatrizes.
Algumas perguntas são especialmente interessantes para trazer uma contribuição histórica: Qual foi a principal matriz energética envolvida na transformação da nossa cidade no começo do século XX? Quem eram os produtores e fornecedores dessa energia e de onde ela foi extraída? Como a história desse processo se relaciona com as atuais (in)justiças energéticas na cidade?
Carvoeiros: Um Elo entre a Floresta e a Cidade
O Maciço da Pedra Branca, na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro, faz parte de uma das maiores reservas naturais urbanas do mundo: o Parque Estadual da Pedra Branca. Nele estão localizados até hoje três quilombos: Camorim, no bairro de mesmo nome, Cafundá Astrogilda, em Vargem Grande, e Dona Bilina em Campo Grande. A região no passado era um grande engenho, de suas matas vinha a lenha que gerava energia para as produções de açúcar, de café e de carvão durante os séculos XVII, XVIII e XIX.
Após a abolição legal da escravatura no Brasil, a mata continuou sendo utilizada como fonte de carvão vegetal, como mostra pesquisa liderada pelo Professor Dr. Rogério Oliveira. Em diversos locais do Maciço da Pedra Branca foram encontrados vestígios de pequenas carvoarias feitas com a técnica do “balão de carvão“. O levantamento já conta com mais de 1000 carvoarias identificadas. É provável que os carvoeiros fossem indivíduos antes escravizados nos engenhos da região do Maciço e que viram a produção de carvão como possibilidade de sobrevivência após a abolição. Essas pessoas viviam na e da floresta. Nos locais onde foram encontradas as carvoarias, é possível vislumbrar também o cultivo de plantas de uso ritualístico, alimentício e medicinal, bem como ruínas de pedras; possíveis abrigos dos carvoeiros.
Na época da urbanização da cidade o carvão era a principal matriz energética e indispensável em diversas atividades da construção civil. Um dos usos mais intensos ocorria na forja e amolação das ferramentas utilizadas para lapidar as rochas que eram usadas no calçamento das ruas e como elemento estrutural dos grandes prédios que hoje vemos no Centro da cidade.
Pode-se dizer então que ao Maciço da Pedra Branca coube alimentar as caldeiras e forjas que transformaram a paisagem do Centro na reforma de Pereira Passos, transferindo quantidades abissais de energia da floresta para a cidade. Longe dos olhos ofuscados pelas lâmpadas elétricas da aristocracia carioca, era o povo negro recém liberto que desbravava a mata e que, com suas tecnologias carvoeiras, transferia para o Centro do Rio a energia da floresta. O carvão trazido da longínqua Zona Oeste e o trabalho de uma multidão de invisíveis transformava em realidade o sonho de uma metrópole para poucos. Portanto, olhar para o espaço urbano do Rio de Janeiro é também olhar para a floresta e para o trabalho exaustivo da produção de carvão, feito por pessoas negras abandonadas pelo Estado.
Os Habitantes do Maciço no Século XXI
Nessa mesma região hoje habitam agricultores tradicionais—alguns descendentes diretos dos carvoeiros do início do século XX—todos herdeiros da tradição do povo da floresta. Ao mesmo tempo que retiram da terra seu sustento, garantem alimento saudável para a cidade. Você vai encontrá-los nas feiras agroecológicas pela cidade. Da saúde da floresta depende a sobrevivência desses agricultores. Por isso, ao contrário do senso comum sobre a presença humana em unidades de conservação, essas mulheres e homens são verdadeiros guardiões da floresta.
A natureza clandestina dos quilombos, o longo movimento de expansão dos limites urbanos da cidade para a Zona Oeste, a criminalização da agricultura no Maciço a partir da instituição da Unidade de Conservação além da própria tentativa de apagamento de uma vocação sertaneja do Rio de Janeiro mantiveram esses agricultores em pontos remotos do Maciço. Isolados da infraestrutura da cidade, permaneceram em seus territórios porque têm com a terra uma relação de pertencimento.
Ao manter seu modo de vida, os agricultores do Maciço acabaram por sacrificar seu acesso aos serviços de saúde e educação e ficaram apartados das redes de distribuição de energia elétrica e telecomunicações, em alguns casos até hoje. Apesar de seus modos de vida carregados de ancestralidade estarem adaptados à ausência de energia elétrica muitos direitos lhes são negados por essa exclusão, um sacrifício que não deveria existir, pois esses serviços essenciais deveriam ser assegurados também a essa população, ainda que respeitando seu modo de vida e território.
Aqui se apresenta a contradição que norteia essa matéria: aos herdeiros dos trabalhadores, que produziram a matriz energética usada na urbanização do Centro da cidade no início do século XX, é negado o acesso à energia mais de um século depois.
O agricultor Francisco Caldeira vive em um desses sítios remotos em Vargem Grande. Ele relata as dificuldades de não contar com a eletricidade: “Queria poder ter luz durante a noite, uma geladeira para conservar os alimentos e uma tomada para carregar o celular. Uma televisão também faz muita falta, principalmente de noite.”
Francisco sabe da importância que a voz dos agricultores cariocas tem para a cidade. Ele é uma figura bem conhecida nos debates de agroecologia e, apesar do isolamento geográfico, presidiu o Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional da cidade em 2014 e 2015.
Os agricultores do Maciço reconhecem a importância de sua presença na floresta mas também sabem que apartados da cidade perdem a voz. O acesso à eletricidade facilita a integração deste povo com o conjunto da sociedade. É garantia de saúde, bem-estar e também da consolidação de direitos políticos.
Haverá quem diga que se a eletricidade é tão importante para os moradores do Maciço, bastaria eles se mudarem para onde tem. Não reconhecem a existência deles nem enquanto agricultores e nem enquanto moradores daquele território. Esse não-reconhecimento estaria relacionado com o desejo de uma cidade homogeneizada, não rural, e a tentativa de apagar a vocação sertaneja do Rio, uma metrópole moderna e eminentemente urbana. Alguns, imbuídos dessa lógica colonial e urbanizadora, se condoerão das próximas gerações desses agricultores e se perguntarão “Por que eles não vêm para a cidade? Para que não estejam fadados a tantas restrições”. Mas é preciso reconhecer também a importância que estes agricultores têm para a cidade da qual fazem parte. Garantir-lhes o direito de viver na floresta sem exigir que abram mão dos avanços civilizatórios é garantir alimento de qualidade para os cariocas, a continuidade de saberes de cuidado ancestrais e a saúde do Maciço da Pedra Branca.
Caminhos para a Justiça Energética no Território
Em 2002, a Lei 10.438 definiu a universalização do serviço público de energia elétrica, garantindo que todos tenham direito à eletricidade. A ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica), reconhece o acesso universalizado na área de concessão da Light no Rio de Janeiro desde 2004, de acordo com o despacho Nº991 de 5 de abril de 2007. Ou seja, para a Light, toda a população carioca tem acesso à eletricidade.
A história do Sr. Francisco e a de outros agricultores demonstra que não é bem assim. Apesar do reconhecimento formal da universalização, a cidade do Rio de Janeiro apresenta complexidades territoriais que exigem da distribuidora, do poder público e da sociedade como um todo um esforço investigativo e vontade política para a garantia real desse direito.
Uma tecnologia com grande potencial para eletrificação de áreas isoladas, é a energia solar. Esta tecnologia utiliza painéis que transformam a luz do sol em energia elétrica. Sua utilização tem se popularizado no Brasil, desde grandes usinas centralizadas a pequenos geradores residenciais. Um dos usos mais consolidados dos sistemas fotovoltaicos utiliza baterias para levar energia a locais onde não há rede de distribuição. No Pantanal sul-mato-grossense e na Amazônia, por exemplo, geradores fotovoltaicos associados a baterias estão sendo utilizados pela concessionária de energia para universalização do acesso em comunidades remotas.
Para de fato tornar universal o acesso à energia em nossa cidade, é necessário enfrentar o desafio de levá-la aos agricultores do Maciço. Não é uma tarefa simples do ponto de vista técnico porque foge ao padrão. Dentre as possibilidades existentes caberá à distribuidora avaliar a melhor forma de garantir esse direito, considerando as soluções mais adequadas às restrições de uma unidade de conservação, seus impactos socioambientais e custos.
Sobre os autores:
Iamni Torres Jager é educadora popular, bióloga, mestre em Ciência, Tecnologia e Educação e doutoranda, e moradora do Quilombo do Camorim. Milita em movimentos sociais sobretudo os da região da Baixada de Jacarepaguá, na luta por moradia, segurança alimentar e economia popular a partir de um viés agroecológico. Integra a Teia de Solidariedade da Zona Oeste, a Coletiva Popular de Mulheres da Zona Oeste, o Plano Popular das Vargens, a Rede de Mulheres da Rede Carioca de Agricultura Urbana, o Núcleo de Investigação em Ensino, História da Ciência e Cultura e o International History, Philosophy, Science Teaching Group.
Antonio Alonso é morador do Quilombo do Camorim e estudante de Administração Pública, além de servidor público. Hoje atua como integrador na Mirassol Energia Solar Fotovoltaica, com a missão de realizar instalações de sistemas fotovoltaicos no Rio de Janeiro, agregando ao trabalho de planejamento e execução, moradores da comunidade quilombola, com prioridade para a mão de obra feminina.
Sobre a artista: Natalia de Souza Flores é cria da Zona Norte e integrante das Brabas Crew. Formada em Design Gráfico pela Unigranrio em 2017, trabalha como designer desde 2015. Lançou a revista em quadrinhos coletiva ‘Tá no Gibi’, em 2017 na Bienal do Livro. Sua temática principal é afro usando elementos cyberpunk, wica e indígena.
Esta matéria faz parte de uma série sobre justiça e eficiência energética nas favelas do Rio, e também faz parte da série de matérias do projeto antirracista do RioOnWatch.