Audiência Pública, no STF, Destaca Prática Racista do Estado nas Favelas

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No dia 6 de junho completou-se um mês desde que a Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro cometeu a maior chacina da história da cidade do Rio de Janeiro—resultando em 28 mortes na favela do Jacarezinho—a despeito da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, que suspende as operações policiais nas favelas do Rio de Janeiro durante a pandemia do coronavírus.

No mês anterior à chacina ocorreu uma audiência pública no STF, entre os dias 16 e 19 de abril, para discutir a ADPF 635, conhecida como a “ADPF das favelas”. Além de ouvir movimentos sociais de favelas, mães vítimas de violência de Estado, e organizações da sociedade civil como amicus curiae (amigos da corte), a audiência levou expoentes especialistas em violência urbana e segurança pública a corte. O objetivo foi coletar informações que subsidiem um plano de redução da letalidade policial no estado do Rio de Janeiro, incluindo a proibição das operações policiais durante a pandemia. O evento foi realizado por meio de videoconferência e transmitido pela página do YouTube da TV Justiça.

Ao todo, foram 66 participações de representantes de movimentos sociais, organizações e entidades relacionadas aos direitos humanos e às vítimas de violência do Estado.

Por unanimidade, professores e pesquisadores de diferentes instituições condenaram a política de enfrentamento, conhecida como “guerra às drogas“. A avaliação é de que a violência policial no Rio de Janeiro é um dos mais graves e persistentes problemas públicos; que as políticas de segurança adotadas até agora pelo Estado são parte deste problema, sendo inferido que esta situação é fortemente agravada por uma noção desumanizadora das favelas por uma prática de racismo institucionalizada pela Polícia e pelo Ministério Público, que arquiva os processos sobre a violência do Estado. Só em 2019, 1800 pessoas foram mortas pela polícia no Rio, sendo destas quase 80% negras.

Daniel Sarmento, Coordenador da Clínica de Direitos Fundamentais da UERJ, foi enfático ao afirmar ao Supremo Tribunal que: “No Rio, existe pele alva e pele alvo. O Rio continua sem fazer nenhum esforço para diminuir a letalidade policial. A lei não vale na favela, vidas negras não têm valor. O racismo estrutural é a vértebra da violência policial”.

Daniel Hirata, professor de sociologia na UFF, destacou que: “O uso abusivo e criminoso da força policial ameaça o Estado de direito, e as ações de segurança pública baseadas em operações policiais são parte deste problema. Caracterizam-se pelo uso indiscriminado da força contra a população negra, pobre e moradora de favelas, um verdadeiro genocídio”.

Daniel ressaltou que “em 99,2% dos casos, o próprio Ministério Público arquiva os processos sobre a violência policial. Há um ciclo vicioso entre violência policial e corrupção. A partir de outubro de 2020, vimos que houve um aumento de 86% no número de operações policiais e quase 200% no aumento da letalidade, quando a polícia do Rio passou a usar o conceito de excepcionalidade como justificativa para iniciar novas ações. Precisamos de um controle externo da polícia”.

Para Pablo Nunes, pesquisador do Laboratório de Análise da Violência (LAV-UERJ), “as ações policiais não são monitoradas e nem têm seus dados divulgados”. Outro problema na avaliação dele é que “além das operações planejadas, há um patrulhamento armado diário e operações violentas acontecendo. Quando uma ação resulta em morte e não estava planejada, a polícia diz que era um patrulhamento de rotina e que seus agentes estavam respondendo a justa ação de seus opositores”.

As chacinas policiais são a demonstração de uma nova estratégia policial: as mortes múltiplas comprovam que não são acidentais e demonstram que o Governo do Rio está em franca oposição à determinação deste Tribunal”, completou Pablo.

Michel Misse, professor de sociologia da UFRJ, explicou que o Rio de Janeiro dispõe de uma dinâmica de quadrilhas de vendedores de drogas a varejo que competem entre si, o que ocasionou uma corrida armamentista entre elas nos anos 1980 e 1990, o que exigiu mais controle policial, que também se armou e aumentou a força bélica com fuzis.

Na prática, quando uma facção tem oligopólio na distribuição de drogas na região cai a violência do tráfico de drogas, embora a atividade de venda a varejo seja diária, regular e feita abertamente nas favelas sem violência com ciência do Estado há décadas. Porém, ao invés de haver uma investigação e produção de políticas de segurança pública para enfrentamento do abastecimento das bocas de fumo nas favelas, “operações policiais são montadas para reprimir essas atividades com violência, provocando muitas mortes, entre moradores e policiais”.

“É como se fosse uma guerra particular entre polícia e traficantes. Não existe nada igual em nenhuma cidade brasileira e mundial”, ponderou Michel. Para ele, essas ações violentas do Estado “não têm nenhum resultado relevante que as justifiquem”, apontando ainda que “inúmeros estudos já mostraram sua inutilidade e sua periculosidade”. A falta de perícia no local na maioria dos casos de letalidade policial e a permanência apenas do próprio testemunho da polícia como prova, aumentam ainda mais a continuidade da prática da falta de responsabilização dos crimes cometidos pela polícia nas favelas.

Michel ainda ressaltou que “as operações geram mais violência e mais infrações penais do que se elas não existissem. Pesquisadores constatam uma estranha sobreposição entre operações da polícia numa área contra facções e a sua ocupação posterior por milícias”. Para ele, esta evidência precisa ser “seriamente” considerada já que pode “apontar a uma possível utilização intencional das operações policiais para fins de expansão do mercado ilegal miliciano”. Ele conclui: “O não cumprimento pleno das cautelares da ADPF 635, por parte das polícias, se deve ao caráter excepcional do Rio. Mas o que há de mais excepcional no Rio não é a existência de vendedores de droga, mas as próprias operações policiais e como são conduzidas”.

Juliana Farias, do Núcleo de Pesquisas Urbanas (PPCIS-UERJ), apontou que a letalidade policial não é apenas uma questão de segurança pública. “O Rio descumpre sentenças, por achar que está cumprindo. Há uma elaboração de técnicas para continuar permitindo a violação à vida”.

Maurício Stegemann Dieter, do Centro de Pesquisa e Extensão em Ciências Criminais da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, explicou que há um acobertamento das mortes. “O Ministério Público está em remissão funcional. Há uma ilegalidade na utilização da legítima defesa, ao usar a biografia dos envolvidos (traficantes) como motivo para o assassinato”.

Alexandra Montgomery, da Anistia Internacional Brasil, afirmou que o racismo mata os pobres e negros. “A população convive no cotidiano com violações de direitos, execuções extrajudiciais, torturas e violência sexual. É fundamental que a polícia não investigue seus pares. Há uma garantia de impunidade. Apenas 2% das investigações sobre esses crimes viram denúncias criminais. Isso é um estímulo à violência policial. A polícia deve ser imparcial para preservar os direitos humanos. É preciso que se faça um plano para a diminuição da letalidade policial”.

Assista a Audiência Pública na Íntegra Aqui:


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