Kathlen Presente! Nas Favelas, a Luta Pela Vida Começa Ainda nos Ventres das Mães

Arte original por David Amen
Arte original por David Amen

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Esta matéria faz parte da série de matérias do projeto antirracista do RioOnWatch. Conheça o nosso projeto que traz conteúdos midiáticos semanais ao longo de 2021: Enraizando o Antirracismo nas Favelas. Para contribuir com essa pauta, clique aqui.

“Neném, já me sinto pronta pra te receber, te amar, cuidar!!! Deus nos abençoe! Minha benção tem nome: Maya ou Zayon”, postou Kathlen Romeu há uma semana em suas redes sociais.

 

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Kathlen Romeu, 24, designer de interiores, uma jovem sorridente, grávida, e seu bebê foram mortos quando caminhava ao lado de sua avó em uma suposta troca de tiros entre policiais e traficantes no Complexo do Lins, na Zona Norte no último dia 8 de junho. A Polícia Militar nega que no momento houvesse operação policial e afirma que uma patrulha que passava no local teria respondido a ataques de traficantes, versão negada pela família e testemunhas que, no dia 8 de junho, viram mais essa família preta se juntar a uma lista interminável de jovens moradores de favela vítimas do Estado, assassinados a tiros em decorrência de operações policiais. A avó e a mãe afirmam que os policiais invadiram a casa de uma moradora e lá ficaram escondidos até que viram supostos traficantes e atiraram de dentro da casa. Enquanto a família sofre com essa perda insuportável, o porta-voz da Polícia Militar defende a ação dos policiais na mídia e repercute sua versão nas redes sociais.

Um levantamento feito a partir dos dados da plataforma Fogo Cruzado mostra que quase 700 mulheres foram baleadas na Região Metropolitana do Rio de Janeiro de 2017 até este ano. O estudo contabilizou vítimas de balas perdidas e de homicídios. Das 681 mulheres atingidas por disparos nesses quatro anos, 258 morreram. 15 das baleadas estavam grávidas, com oito delas morrendo. Dez bebês foram baleados ainda na barriga das suas mães e apenas um sobreviveu. Soma-se a isso uma tendência geral de aumento da letalidade policial, que cresceu mesmo durante a pandemia do coronavírus e o período de isolamento social.

Depois de casos emblemáticos como o assassinato do menino João Pedro de 14 anos por policiais civis durante operação no Complexo do Salgueiro e frente ao aumento expressivo da violência de Estado, a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, Educafro, Justiça Global, Redes da Maré, Conectas Direitos Humanos, Movimento Negro Unificado, Iser, IDMJR, Coletivo Papo Reto, Coletivo Fala Akari, Rede de Comunidades e Movimento contra a Violência, e Mães de Manguinhos foram ao Supremo Tribunal Federal (STF) questionar judicialmente a necropolítica em curso no estado do Rio. O STF pediu explicações ao governo do Rio de Janeiro e, em 5 de junho de 2020, uma decisão temporária em favor da ADPF 635, conhecida como ADPF das Favelas, foi concedida pelo ministro do STF, Edson Fachin, suspendendo operações policiais nas favelas do Rio durante a pandemia, exceto em circunstâncias “absolutamente excepcionais”.

O Complexo do Lins é composto por entre 12 e 14 favelas. O que aconteceu novamente lá é mais uma violação explícita da ADPF e que mantém a tendência histórica de assassinatos cometidos nas favelas e o racismo estrutural configurado na letalidade das operações policiais.  

Moradores e pessoas de fora começam a concentração do protesto. Foto por Alexandre Cerqueira

Na quarta-feira, dia 9dia seguinte ao assassinato de Kathleno movimento negro e de favelas organizaram um ato em memória da designer, juntamente com líderes comunitários do Complexo Lins que já se organizavam nas redes sociais para realizar um protesto saindo da estação da Light na Rua Lins de Vasconcelos às 16h. O destino da passeata era chegar ao local onde Kathlen foi assassinada. Nesta mesma tarde ocorreu no Cemitério do Catumbi o enterro da jovem e do bebê. Enquanto isso, nas ruas do Lins aconteciam blitzes que tinham como alvo principal os mototaxistas que estavam levando moradores para o local de concentração do protesto.

Aos poucos, cinco blazers e cerca de 25 policiais foram se posicionando mais afastados dos manifestantes que começavam a se concentrar e a espalhar cartazes pelo chão. Com a presença do Major da PM foi alinhado com as lideranças o trajeto que iria ser feito. O grupo seguiu pouco antes das 17h para a Rua Lins de Vasconcelos, já entoando os gritos de protesto. Pedindo o “fim da Polícia Militar!” e entoando “Kathlen, presente!”, os manifestantes também gritavam “Vidas negras e faveladas importam!”. Alguns manifestantes quiseram fechar os dois sentidos da rua, mas foram impedidos pelos policiais que limitavam a multidão a uma só faixa.

Manifestante segura foto de Kathlen Romeu durante ato em memória da jovem designer. Foto por Alexandre Cerqueira

Acompanhados de cima pelos helicópteros da TV, não havia quem não pudesse escutar as vozes que saíam na marcha pedindo por justiça e paz no bairro e nas favelas da cidade. Houve choros, lágrimas, gritos, raiva, mas principalmente punhos em riste, em memória das duas vidas violentamente interrompidas. Algumas pessoas olhavam de suas janelas, dos prédios, outras estendiam panos brancos e gritavam palavras de ordem, enquanto os motoristas buzinavam e batiam palmas, mesmo que muitos outros sequer dessem consideração ou importância ao ato pelo direito à vida e pela memória de Kathlen. 

Namorado de Kathlen e pai da criança que ela esperava, já que estava grávida de 13 semanas quando foi assassinada. Foto por Alexandre Cerqueira

Quando o ato chegou ao local do assassinato, foi respeitado um minuto de silêncio seguido por gritos dos moradores para o protesto seguir em direção à porta da UPP que ficava a duas ruas daquele local. Segundo alguns organizadores, não adiantava fazerem essa caminhada toda sem que, no final, os policiais envolvidos no tiroteio escutassem o que os moradores tinham para dizer. Nesse momento, praticamente só os moradores deram continuidade ao ato, com a maioria das pessoas de fora do Complexo, permanecendo no local do assassinato ou indo embora. O ato teve fim justamente na UPP, enquanto os policiais observavam, parados, de rostos encobertos e com armas em punho escutando os gritos dos moradores. 

Moradores chegam na UPP do Lins guarnecida pelo caveirão que antes era chamado de “pacificador”. Foto por Alexandre Cerqueira

Segundo Cristiane Martins, moradora do Lins, assistente social, pesquisadora e comunicadora do jornal comunitário A Voz do Lins, é urgente que se analise esse território através de um projeto de pesquisa de dados para trazer políticas públicas para a região. “Não há nada relacionado à saúde, educação, geração de renda e emprego. O Complexo do Lins possui lideranças comunitárias mas não tem praticamente nada do Estado, não tem nem mesmo ONGs. Isso impacta na marginalização, na violência e no meio que as pessoas vivem, mas educação é o principal.”

Policiais observam a manifestação antes de chegarem no local do assassinato. Foto por Alexandre Cerqueira

Cristiane comenta que “o Lins parece estar esquecido, sem políticas públicas. Não temos segurança, tiveram diversos outros casos de moradores que foram vítimas dessa violência e nem sempre são divulgados, e nada acontece. Até quando?”.

Segundo a percepção de moradores, quando existe um ato que não tem só moradores da comunidade, os policiais têm que acompanhar, escutar os gritos. E foi isso que aconteceu. Mas, quando a manifestação só tem moradores, como, por exemplo, a manifestação que aconteceu na noite do dia 8 de junho na Estrada Grajaú-Jacarepaguá, acabou com o ataque dos policiais e teve fogo, pedras e muitas bombas. Neste caso, geralmente agem com violência e abuso, sem conversa. O ato de quarta-feira foi muito importante porque foi a voz da comunidade onde Kathlen cresceu e morou até um mês antes de seu assassinato. 

Local onde Kathlen Romeu foi assassinada, Morro do Gambá, Complexo do Lins. Foto por Alexandre Cerqueira

A política de segurança pública para os territórios de favela acontecem há muitas décadas de maneira extremamente abusiva, bárbara e arbitrária, com um cunho racista inegável. Um mês antes da morte de Kathlen aconteceu a Chacina do Jacarezinho, na qual 28 pessoas foram mortas em decorrência da intervenção policial, a maior chacina da história da cidade do Rio de Janeiro. Como fazer, por exemplo, para uma criança moradora do Jacarezinho de 9 anos continuar a viver sua vida normalmente quando presencia um policial executar um traficante ferido com dois tiros de fuzil à queima-roupa dentro do seu quarto, do lado de sua cama? Como fazer para essa criança continuar a estudar já que o caderno que ela tinha acabado de receber da escola ficou manchado pelo sangue que escorreu daquele corpo negro executado? Tantas pessoas com suas vidas interrompidas com tanto para viver, geralmente ainda muito jovens. É essa barbárie que ceifa a vida de moradores de favelas em nome do combate às drogas. A guerra aos pobres tem que acabar!

No ato, o luto virou verbo em memória de Kathlen e de tantas outras mães, pais, filhas e filhos mortos pelo Estado. Márcia Jacinto, mãe de Henry, morto aos 16 anos pela polícia, desabafa a dor de todas as mães de vítimas do Estado, vítimas do genocídio negro. Quando uma mãe chora, todas as mães choram.

As mães e as crianças do Rio pedem paz! Por que as mães e crianças não têm o direito à vida nas favelas do Rio de Janeiro?

Manifestante grávida pinta 'Paz' em sua barriga durante protesto. Foto por Alexandre Cerqueira

Sobre o autor: Alexandre Cerqueira, morador do Lins, Zona Norte, é formado em Relações Internacionais e desenvolve projetos de educação básica nas favelas a partir da fotografia e produção de vídeo como ferramentas de linguagem.

Sobre o artista: David Amen é cria do Complexo do Alemão, co-fundador e produtor de comunicação do Instituto Raízes em Movimento, jornalista, grafiteiro e ilustrador.

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