Evento Debate o Controle Social das Águas, Saneamento e Privatização [VÍDEO]

'Nunca Se Discutiu Tanto o Saneamento Básico no Rio'

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Esta matéria faz parte de uma série gerada por uma parceria, com o Digital Brazil Project do Centro Behner Stiefel de Estudos Brasileiros da Universidade Estadual de San Diego na Califórnia, para produzir matérias sobre direitos humanos e justiça socioambiental nas favelas cariocas.

No dia 30 de junho o Grupo de Trabalho (GT) Água e Esgoto e a Frente de Políticas Públicas Participativa da Rede Favela Sustentável (RFS)*, organizaram uma aula pública online, “Controle Social das Águas, Saneamento e Privatização: Rede Favela Sustentável Discute o Encontro das Águas“. 

A proposta do evento era sensibilizar o grande público com questões que envolvem a importância da água, levando propostas e ações para exercer maior controle social de um bem ao qual todos têm direito. A live foi realizada em formato conhecido como “aquário”. A intenção era possibilitar a todos os participantes a oportunidade de fala e diálogo durante o evento. Para ilustrar o formato, Camila Moreno, articuladora da RFS, explica: “Imagine uma sala com um círculo e no meio três cadeiras, essas ocupadas com pessoas que se voluntariam para debater sobre o tema proposto, desta forma visualizamos o ‘áquario’. Cada pessoa que está nas três cadeiras do centro tem direito a uma fala de um minuto e meio, sendo que, caso seja necessário uma réplica, esta pessoa tem mais um minuto e meio para resposta. A qualquer momento uma pessoa do público poderá levantar a mão para fazer parte do aquário e ter sua fala. Essa pessoa entrará no lugar do participante do aquário que está a mais tempo. Assim o ‘aquário’ estará mudando a todo momento, com três pessoas diferentes dialogando”.

A live teve como convidado especial, para ajudar a informar e dinamizar o encontro, o Alexandre Pessoa, professor e pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio da Fiocruz. Na figura de “ouriço-do-mar” do aquário, ele iniciou o evento apresentando um discurso provocativo. Aprender com a pedagogia das águas sobre a interligação dos seres humanos com a natureza foi um dos temas na fala de Alexandre. O professor também ressaltou que para entender melhor a privatização da CEDAE é necessário conhecer o Plano Nacional de Recursos Hídricos, realizado a partir do Plano Nacional de Segurança Hídrica (PNSH), que visa garantir a todo o país uma infraestrutura hídrica estratégica construída em cada região.

Ainda segundo Alexandre, o PNSH pretende evitar problemas naturais, como os alagamentos, garantindo à atual e às futuras gerações a prevenção de tais eventos. “Eu acho que esse Plano ainda está numa ‘engenharia cinza’. Não trabalhou com infraestrutura ecológica, com outras perspectivas mais atuais. Não apresenta tecnologias sociais… O estado do Rio tem uma política estadual de segurança hídrica e vai fazer um plano estadual de segurança hídrica. O problema é sair do papel e criar materialidade, esse é o primeiro desafio. Para evitar estresse hídrico precisa planejar e organizar a cidade. Não adianta colocar a culpa na chuva. O problema é que existe uma quantidade de água e um consumo. Uma oferta e uma demanda. Como é que se trabalha em cima disso?” questionou o pesquisador. 

No ano passado, o governo estadual decidiu mudar o Marco Regulatório e colocar a CEDAE em leilão. Alexandre, que também é especialista em saneamento ambiental, pontuou que a privatização afetará a população de diversas formas, inclusive em relação ao esgoto. “Estamos num momento rico: nunca se discutiu tanto o saneamento básico no Rio”, observou o professor. “A pauta está quente, não vamos deixar que o saneamento fique escondido debaixo da terra. Pensar saneamento básico não é só prevenir doenças, serve para gerar renda e qualidade de vida. Essa visão é fundamental. Seja o saneamento público, domiciliar ou comunitário, todos dependem das condições habitacionais. Saneamento sozinho não resolve. Se não tiver urbanização, como terá saneamento? Às vezes [a concessionária] faz a rede [de esgoto], mas nas casas mais distantes ou nas mais precárias não faz a ligação domiciliar. Muitas casas não têm banheiro. O saneamento se não for para todos não é universal. O Ministério Público ganhou na justiça e agora a CEDAE é obrigada a fazer um plano de contingência por causa da Covid-19. Sem a água não tem como limpar as mãos e ter uma proteção contra a doença. Veja que a água é muito mais do que para beber, ela interfere na nossa vida o tempo todo”, explicou Alexandre. 

Em seguida, na dinâmica do ‘aquário’, a Alessandra Roque, moradora do Morro da Providência, na Zona Central, compartilhou sua experiência com o abastecimento de água e saneamento no território. “Nós fizemos um projeto que se chama ‘Lave as mãos‘, colocando água e pias nas ruas para a população. Na Providência tem um problema maior: aqui não tem água todos os dias. Então, colocamos um reservatório, uma caixa d ‘água de mil litros para que as pessoas lavassem as mãos todos os dias. Porque como falar ‘lava a mão dia sim e dia não?’ Não tem como”, contou. 

Alessandra explicou sobre uma tecnologia ecológica para tratamento de esgoto já em funcionamento na Providência: “Aqui, nós fizemos uma bacia de evapotranspiração para tratar o esgoto. É algo possível dentro da favela. É viável, tanto [que] nós que fizemos… Algumas casas não estão ligadas à rede pública, porque elas têm suas especificidades e, às vezes, não conseguem acessar a rede. Por que os governantes não fazem um tratamento de esgoto se é possível? Estamos aqui provando [que é possível].” 

Rios, Mangues e Problemas Históricos

Na década de 1950, o Rio Guandu era um rio de pequeno porte, quando recebeu uma transposição hidráulica que o abasteceu com grande carga d’água oriunda do Rio Paraíba do Sul, localizado no município de Barra do Piraí, no Sul Fluminense. Atualmente, o Rio Guandu abastece cerca de 80% da população da região metropolitana do Rio de Janeiro.

Próximo ao município de Seropédica, o Rio Guandu se encontra com outros quatro afluentes da Baixada Fluminense, que são os rios Queimados, Ipiranga, Poços e Cabuçu. Esses quatro rios são abastecidos pela Reserva do Tinguá e são rios puríssimos de águas cristalinas, como explica Wladimir Loureiro, representante da Pastoral da Ecologia Integral da Arquidiocese do Rio. “Esses rios são classificados como especiais, são aqueles do paraíso que podemos colocar a água na mão e beber diretamente. Quando chegam no polo industrial de Queimados, esses rios recebem cargas tóxicas altíssimas e se tornam inviáveis para o consumo humano. Mas a natureza é pura resistência. No entroncamento desses rios com o Rio Guandu existe um ambiente lacunar, que seriam as lagoas do Guandu e Quiabal, onde a natureza reage a essa toxicidade e consegue, de certa forma, diluir essa toxicidade. São nessas lagoas que a própria natureza, ao reagir, criou a geosmina. A CEDAE, com esforço heróico, consegue tratar essa água com certa competência. Porém, por diversos motivos, a CEDAE decidiu tapar essas lagoas, numa obra chamada de proteção a tomada da água”, contou Wladimir. Segundo o ambientalista, essa intervenção da companhia está impactando diretamente dezenas de famílias que sobrevivem da pesca e da agricultura familiar. “Essas pessoas tinham uma vida digna e hoje não têm mais. São pessoas invisíveis”. 

O cenário descrito por Wladimir é semelhante à realidade observada nos mangues da Zona Oeste, assunto abordado por Heloísa Helena, Ialorixá e mobilizadora local. “Os mangues estão sendo muito poluídos. Mangue é um exemplo muito grande de resiliência. Moro perto da estrada do Canal Jardim do Piaí, antigo Canal 1. Ele encheu no ano passado e está com muita sujeira. Um asilo chegou a ficar inundado por causa da água do mangue, que transbordou. Agora a gente está conseguindo dar uma ‘limpada’, mas a gente sabe que isso não adianta. Agradeço aos parceiros que ajudaram na limpeza [do mangue], mas precisamos de uma estruturação maior”, explicou Heloísa. Em suas pesquisas, ela encontrou documentos públicos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), onde constava o nome da Rua Levy Neves, via por onde passa o canal, no bairro de Guaratiba. “Eu fico pensando, isso é uma coisa antiga. Por que não se teve a conclusão? Por que se deixou chegar a esse ponto? Esse canal deságua na praia da Brisa e nasce, mais ou menos, em Santa Cruz. Ele pega o esgoto dessa população toda, então está muito sujo!” apontou Heloísa.

A contaminação das águas também foi assunto abordado por Irenaldo Silva, técnico de enfermagem e ex-presidente da Associação de Moradores de Pica-Pau, em Cordovil, Zona Norte. Ele compartilhou uma preocupação vivida no seu território e comum a muitos outros: a ausência de interligação entre o sistema de esgoto das casas e a rede de saneamento. “A minha preocupação é a de sempre: você faz a rede de tratamento do esgoto, mas esse esgoto é jogado no rio, no valão. Quer dizer, é trocar seis por meia dúzia”, avalia Irenaldo. “Aqui na Pica-Pau foi feita uma rede de tratamento no Rio Irajá, em 2015, para ser tratado esse esgoto e cair na Baía de Guanabara limpo. Virou um elefante branco, está parado sem funcionar”. Ele alertou ainda para os constantes casos de infecção intestinal devido ao consumo de água contaminada. “Esse esgoto está contaminando a água potável, as pessoas estão bebendo água de esgoto”, ele relatou. 

Soluções Descentralizadas Devem Caminhar Juntas da Universalização

Apesar de uma dívida histórica com o saneamento básico, a cidade do Rio de Janeiro foi pioneira no Brasil em tratamento de esgoto. Nos dias atuais, de acordo com a Firjan, baseada no Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), a coleta de esgoto chega a apenas 67% da população. Ou seja, um terço da população não conta com uma coleta sanitária segura. Para tentar mudar um pouco essa realidade, Tito Cals e Leonardo Adler começaram a trabalhar com saneamento ecológico em favelas e comunidades isoladas no Ceará, na Amazônia e no Rio. No território fluminense, o projeto casou com a demanda já pré-estabelecida por um sistema de esgotamento ecológico na comunidade do Vale Encantado, no Alto da Boa Vista, Zona Norte. O presidente da cooperativa e associação do Vale Encantado, Otávio Barros, se juntou à Tito e Leonardo e no local foi construído um biossistema para tratamento do esgoto doméstico, formado por um biodigestor e uma zona de raízes de plantas. Um biodigestor funciona como um grande tanque, onde o material orgânico depositado é consumido por bactérias e desse processo resultam, ao menos, três subprodutos: biogás, biofertilizante e adubo.

Segundo Tito, o trabalho junto à comunidade foi fundamental para a implantação desse tipo de sistema. “A gente encontrou uma forma de trabalhar com os moradores participando em todo o desenvolvimento do projeto, principalmente na hora da execução. O objetivo é que as pessoas participem, entendam e se tornem agentes replicadores da tecnologia. Foi essa a forma que encontramos para utilizar o conhecimento da academia junto à nossa vontade de causar impacto social. O Vale Encantado foi a primeira comunidade em que trabalhamos. Somos muito gratos ao Otávio por ter nos procurado em 2011 com a intenção de solucionar o esgoto [da comunidade]”, lembra Tito. “A gente continua nessa caminhada, mas temos certeza que essas soluções descentralizadas não são as únicas. Elas vêm complementar soluções mais centralizadas. Como no caso das favelas da Rocinha e Maré, onde em certos locais não têm espaço para a construção de um sistema, então a única maneira seria centralizar o tratamento e levar para uma estação de tratamento de esgoto. Temos ciência que o saneamento ecológico complementa a universalização, da qual infelizmente estamos muito distantes”, conclui o engenheiro ambiental. 

Inundações, Alagamentos, Enchentes Fruto de Obras Mal Feitas

A intensidade e a frequência das chuvas vai de encontro à falta de manutenção em bueiros, com a coleta deficitária e descarte irregular de lixo. Soma-se, ainda, outros fatores como o assoreamento de canais e rios. Esses são alguns dos elementos que prejudicam e levam a problemas hídricos históricos no território fluminense. Antenadas no que diz respeito às possíveis melhorias em seu bairro, município e país, as mulheres estão à frente para cobrar que os direitos sociais sejam, realmente, aplicados. 

Co-fundadora do Alfazendo, Iara Oliveira é liderança comunitária na Cidade de Deus, Zona Oeste. Ela tem na memória a história de afetividade e intervenções nas águas que cortam a comunidade. “O Rio Grande, que passa pela Cidade de Deus, nasce no Parque Nacional da Pedra Branca, vem de Bangu e atravessa Jacarepaguá, abastecendo toda a área da Zona Oeste. Então, a prefeitura iniciou um processo de saneamento básico nas favelas e acabou jogando o esgoto para as águas pluviais. Quando a Cidade de Deus começou a ser construída nós tínhamos uma estação de tratamento dentro da Cidade de Deus. Então, todo o esgoto que vinha das casas era cuidado e depois jogava-se na lagoa. Com o passar do tempo, a prefeitura e o Governo do Estado, que eram os responsáveis por cuidar desse sistema, acabaram com ele, mas deixaram lá o espaço represando esse esgoto dentro da Cidade de Deus”, lembra Iara.

Depois do abandono das estações de tratamento, as enchentes dentro da comunidade se tornaram mais frequentes. Duas delas, como lembra Iara, provocaram a morte de moradores da favela. “Nesse Rio Grande, quando eu era criança, em 1966até 10, 11 anos—a gente tomava banho nesse rio, tinham peixes e plantações. Hoje é um rio morto”, explica Iara. “A Cidade de Deus é cercada por rios que poderiam receber manutenção e renovação. Quando a gente fala de escassez de água, de questões de esgoto, nós vemos que a cidade não é planejada. Nem todas as favelas e nem todas as casas têm caixa d’água, isso é uma realidade do favelado. Então, quando acaba a água, acaba mesmo”.

A ausência de separação entre as águas dos rios e os efluentes de esgoto provocam alagamentos de esgoto e consequências posteriores nas ruas. Como explica Iara: “É um processo de luta. O Rio de Janeiro precisa de um projeto e revisão de saneamento urgente. Aqui na Cidade de Deus houve uma operação ‘tapa buraco’. A prefeitura retirou a rede de tratamento antiga e colocou uma nova pior do que a antiga, porque agora quando chove alaga tudo. Como cidadãos precisamos fiscalizar e olhar a questão das novas tecnologias para que as futuras gerações pensem na questão da água como direito social”, concluiu Iara.

Também moradora da Zona Oeste, Geiza de Andrade, é educadora socioambiental e moradora da Vila Kennedy. Ela contou sobre as experiências do território com as obras oficiais, que costumam causar transtornos e danos aos moradores da favela. “Mesmo com os moradores falando o que acontecia, o engenheiro da prefeitura simplesmente não ouviu ninguém, embora tivesse reunião… No andamento da obra, eles [trabalhadores da prefeitura] não estavam no local, [e nós] vimos o que acontecia: o pessoal tapando os bueiros. No intervalo de três ruas só encontra-se um bueiro muito distante. Então, onde não tinha enchente começou a encher e foi uma confusão”, lembra Geiza. “É muito triste quando a gente sabe o caminho das águas e as pessoas querem fazer uma barreira. Sempre falo para as crianças na escola sobre a importância da água, sobre a água da chuva e todo o caminho que ela faz… As crianças sabem da importância da água no morro porque está tendo muito desmatamento. Nossa preocupação também é essa: com menos árvores na floresta, a água de chuva descerá cada vez com mais intensidade. Logo, nos locais que não ocorriam enchentes, vão começar a ter”.

Assista à Live Interativa Aqui:

 Beatriz Carvalho, cria de Vilar dos Teles em São João de Meriti, é jornalista, mídia-ativista, feminista e toca o Mulheres de Frente.

*A Rede Favela Sustentável (RFS) e o RioOnWatch são projetos da Comunidades Catalisadoras. A RFS tem o apoio da Fundação Heinrich Böll Brasil.


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