A História das Urbanizações nas Favelas Parte III: Morar Carioca na Visão e na Prática (2008 – Presente)

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Essa é a terceira matéria de uma série de três sobre a História da Urbanização nas favelas do Rio de Janeiro. Clique para ler a Parte I e Parte II.

O teleférico no Complexo do Alemão, inaugurado em 2011, foi financiado através do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).

No Rio, o final da década de 2000 trouxe as últimas gotas de financiamento para alguns projetos atrasados de urbanização do programa Favela-Bairro e projetos afiliados dos programas Bairrinho e Grandes Favelas. Durante esse tempo, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) também começou a instalar obras públicas em favelas. Estes tenderam a ser projetos chamativos, visíveis das bordas das comunidades, como o teleférico no Complexo do Alemão e a ponte projetada por Oscar Niemeyer na entrada da Rocinha, assim como alguns bons exemplos de habitação pública e equipamentos culturais. Isto dito, a demanda por serviços públicos abrangentes e de qualidade nas favelas do Rio continuou a ser muito maior do que a oferta.

Com isso, o prefeito Eduardo Paes fez um anúncio ousado em julho de 2010 que, como parte do legado social dos Jogos Olímpicos de 2016, todas as favelas do Rio estariam urbanizadas até 2020 através de um programa municipal chamado Morar Carioca. O programa teria um orçamento de R$8 bilhões e uma parceria com o Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), no qual, como foi o caso do antecessor do programa Morar Carioca, o Favela-Bairro, seria responsável por organizar as melhorias em todas as favelas com mais de 100 casas. O número de favelas e de complexos de favelas na cidade foram remanejados para facilitar o agrupamento e melhorias sob o Morar Carioca, de 1020 a 625.

O orçamento específico e o cronograma do Morar Carioca nunca foram publicados em sua totalidade, mas têm sido aludidos em parte ao longo dos últimos anos. Em novembro de 2010 o prefeito Paes nomeou um orçamento de R$9 bilhões para o projeto e disse que iria financiá-lo em três fases de R$3 bilhões cada, com dinheiro proveniente do orçamento da Prefeitura, crédito do governo federal e empréstimos do Banco Inter-Interamericano de Desenvolvimento (BID), dizendo: “nossa ideia é que o BID entre com R$300 milhões por ano durante cinco anos.”

Apesar das discussões do programa terem começado dois anos antes, as diretrizes oficiais para o Morar Carioca só foram publicadas em um documento assinado em um decreto da Prefeitura em 29 de outubro de 2012.

Morar Carioca no Papel

Pica-Pau, Cordovil na Zona Norte, é uma das 815 favelas para receber urbanizações de acordo com o decreto do Morar Carioca. Moradores dizem que suas esperanças para as melhorias focam na coleta de lixo e abastecimento de água.

O Morar Carioca foi desenhado para aproveitar o aprendizado do programa Favela-Bairro e dar sequência ao seu trabalho. Parte da literatura sobre o empréstimo de $150 milhões de dólares do BID para o projeto chama-o de “Favela Bairro Fase III.” Aprendendo com pontos fortes e fracos do Favela-Bairro, o Morar Carioca compromete-se a realizar urbanização em larga escala (obras públicas para melhorar os serviços de água e esgoto, sistemas de drenagem, pavimentação, iluminação pública, oferta de áreas verdes, quadras esportivas, áreas de lazer, bem como a construção e instalação de equipamentos em centros de serviços sociais), além de regularização fundiária e de serviços sociais, tais como centros de educação e saúde. De acordo com seus preceitos, o Morar Carioca atingirá 815 favelas listadas pelo nome, e está orçado em R$8 bilhões, em comparação com o Favela-Bairro, que totalizou R$1,2 bilhões entre suas duas fases, e as intervenções propostas em cada favela serão mais extensas e sob medida.

O Morar Carioca garante o direito à “a participação da sociedade organizada em todas as etapas de execução do Morar Carioca através de assembléias e reuniões nas comunidades e de apresentações e debates abertos à participação da sociedade civil organizada e aos cidadãos”. Ele se compromete a reduzir a área de superfície de favelas na cidade em 5%, remover casas que se encontram em áreas de risco ambiental, e seguir as diretrizes legais para realojar os moradores para perto de suas casas originais quando necessário. Finalmente, o projeto se compromete a implementar novas regras de zoneamento para cada favela uma vez urbanizada, transformando cada uma em uma “Área de Especial Interesse Social” (AEIS) baseado nas “Zonas de Especial Interesse Social” (ZEIS) e de acordo com o Estatuto das Cidades aprovado em 2001 que estabeleceu essas áreas a fim de garantir a sua preservação contínua como moradias a preços acessíveis.

Na Asa Branca, crianças desfrutam de ruas recém-pavimentadas através de uma obra avulsa da Secretaria Municipal de Obras.

O decreto do Morar Carioca começa por reconhecer explicitamente que as favelas se desenvolveram como uma solução para a falta de moradia adequada na cidade: “a histórica ausência de políticas habitacionais fez da produção informal e da autoconstrução a alternativa através da qual a população de mais baixa-renda atendeu às suas necessidades de moradia e que a informalidade deixou de ser uma exceção e se transformou em regra para a maior parte desta população”. Eduardo Paes, ao mencionar o programa Morar Carioca em uma palestra do TED em 2012, em Long Beach, Califórnia, disse “favelas podem ser uma solução”.

O Morar Carioca conclui, a partir de experiências passadas, que se urbanizações forem realizadas de forma participativa, o desenvolvimento do estilo ‘favela’ é uma forma urbana valiosa para a cidade. É uma resposta parcial, porém visionária à pergunta que os urbanistas ao redor do mundo estão se colocando: como vamos lidar com o terço da humanidade que viverá em assentamentos informais urbanos até 2050?”

Morar Carioca na Prática

89 empresas de arquitetura de todo o mundo participaram do concurso IAB para o Morar Carioca Fase II. Eles foram incumbidos de projetar intervenções em favelas genéricas em áreas planas e acidentadas e “complexos” maiores. Muitos dos projetos vencedores, como este, recomendaram abrir espaços públicos e de pedestres.

De acordo com o seu papel no programa Morar Carioca, o IAB organizou um concurso de design em 2010, para o qual mais de oitenta escritórios de arquitetura de todo o mundo apresentaram amostras de projetos para a urbanização de favelas. Quarenta empresas vencedoras foram escolhidas e cada uma foi atribuida um agrupamento de favelas para criar planos específicos à sua topografia, distribuição e necessidades de serviços sociais. No início de 2011, o Secretário Municipal de Habitação Jorge Bittar disse que o objetivo era que todas essas melhorias (dispostas a atingir 216 favelas listadas aqui por empresa de arquitetura) fossem concluídos até a Copa do Mundo de 2014.

Mas o que se seguiu foi um jogo de espera onde, empresas com a melhor das intenções, realizando reuniões regulares entre as suas equipes para se preparar para avançar, ficaram esperando até metade de 2012 para que os recursos fossem liberados. Ao mesmo tempo, as comunidades programadas para as melhorias estavam esperando, ansiosas e esperançosas, pelo que foi no geral entendido como um investimento positivo e necessário que aconteceria de uma forma potencialmente empoderadora.

Como parte da preparação para o Morar Carioca na Asa Branca, o iBase organizou oficinas em que os moradores falaram sobre seus desejos e deveres no processo de urbanização.

Uma vez que recursos foram liberados para dez empresas darem início ao projeto em junho de 2012, eles começaram a trabalhar. De acordo com as diretrizes do Morar Carioca, todas as empresas tiveram um assistente social ou um antropólogo na equipe, comprometidos a fazer avaliações qualitativas do uso atual do espaço público nas comunidades. Além disso, a ONG iBase foi contratada pela Secretaria Municipal de Habitação para realizar um diagnóstico social, que incluiu grupos focais, filmagens documentais e levantamentos individuais porta-a-porta sobre as melhorias que os moradores achavam mais importantes.

No final de 2012, alguns planos foram apresentados em particular às autoridades da Prefeitura, da Secretaria de Habitação e da Secretaria de Transporte. Outros planos foram apresentados à própria comunidade. Este paradigma da Prefeitura trabalhar com moradores para determinar suas prioridades está a milhas de distância da política de “recivilização” dos parques proletários de onde moradores foram despejados nos anos 40.

Com o ano chegando ao fim as comunidades participantes do programa estavam esperançosas. Dito isto, houve pelo menos um caso de uma comunidade que foi inicialmente prometida as urbanizações do Morar Carioca e que recebeu agentes do iBase fazendo levantamentos sobre preferências e necessidades da comunidade mas que, em seguida, foram informados que ao invés da urbanização eles enfrentariam a remoção completa. Na maioria dos casos, após os primeiros passos positivos, os moradores estavam esperando entusiasmados, porém até agora, em maio de 2013, sem indícios de início de projetos.

Tudo é Morar Carioca?

Segundo o prefeito Eduardo Paes, intervenções públicas na Providência, onde o trabalho foi paralisado por um juiz devido à falta de participação, faz parte do “Morar Carioca”.

Tem sido difícil para muitas pessoas definir e entender o programa Morar Carioca porque apesar do decreto e procedimentos estarem claramente delineados, como descrito acima, quando o programa foi anunciado em julho de 2010, o prefeito Paes anunciou simultaneamente que o “Morar Carioca” já estava em andamento em quatorze favelas (usaremos aspas quando o decreto do programa ou outros documentos norteadores não estão sendo seguidos).

De acordo com o prefeito, há duas fases de urbanizações do Morar Carioca em andamento no Rio de Janeiro. A primeira fase utilizou empresas contratadas fora da competição do IAB para intervir estruturalmente em favelas, sem participação, em casos como o da Providência (onde obras estão atualmente suspensas por uma liminar, devido a uma ação de um defensor público sobre falta de audiência pública antes do início dos trabalhos), Penha, Babilônia e Jacarezinho. E a “Fase II”, de acordo com o prefeito, é o que formalmente só começou em 2012, descrito na seção anterior deste artigo.

“O que muita gente não percebe é que a Prefeitura está usando o nome do ‘Morar Carioca’ para se referir a todos os tipos de melhorias que não foram projetadas como parte deste programa”, diz Mariana Cavalcanti, professora e antropóloga da Fundação Getúlio Vargas que foi contratada por uma das primeiras empresas de arquitetura selecionadas no concurso formal do IAB. “Eles estão usando isso para descrever obras em curso no Borel e Chapéu Mangueira, por exemplo, que sobraram do PAC anos atrás”.

O logotipo do Morar Carioca é frequentemente utilizado pela Prefeitura em obras públicas independentemente da adesão aos princípios do programa.

De fato, em muitas das favelas identificadas pelo prefeito como já em andamento no “Morar Carioca” em 2010, tais como seções da Colônia Juliano Moreira, Mangueira, Manguinhos, e Guarabu, urbanizações foram agendadas através do PAC por vários anos e irão continuar com o financiamento do PAC, mas sob o novo rótulo de “Morar Carioca”. Paes e o presidente do IAB, Sergio Magalhães, disseram inicialmente que todas as favelas com mais de 100 casas se encaixariam no âmbito do programa oficial Morar Carioca, recebendo urbanizações participativas concebidas através da parceria do IAB, mas a cidade já começou com intervenções não participativas–até remoções forçadas–em várias favelas que se encaixam nessa descrição, incluindo todas mencionadas acima. No caso da Providência, a equipe de construção tem utilizado projetos que sobraram do programa Favela-Bairro, no qual o único morador que opinou era um representante informal do Comando Vermelho, que controlava a comunidade na época. E no Rio das Pedras, o “Morar Carioca” foi anunciado quando o único resultado para os moradores, de fato, seria a remoção.

Morar Carioca Hoje

O presidente da Associação de Moradores da Asa Branca observa uma moradora sendo entrevistada por uma equipe de documentário do iBase em preparação para as melhorias na comunidade pelo Morar Carioca. Isso começou em dez grupos de favelas; o contrato do Ibase foi então cortado.

O Morar Carioca foi frequentemente mencionado durante a campanha de reeleição de Eduardo Paes em outubro de 2012, em que Paes disse que 55 favelas tinham recebido obras do Morar Carioca até então, e que o próximo passo era urbanizar mais 100. Ele estava se referindo apenas ao “seu” “Morar Carioca”, entretanto, uma vez que nenhuma melhoria em favela tinha sido feita até aquele momento usando o processo participativo sancionado do IAB. De fato, em janeiro de 2013 o contrato do iBase para realizar as consultas públicas das melhorias selecionadas pelo IAB foi cortado e, desde então, várias empresas foram informadas que deveriam retirar as placas que diziam que o Morar Carioca estava presente em suas comunidades. Não é preciso dizer que os líderes comunitários e os moradores dessas comunidades estão mais que desapontados.

E enquanto o Morar Carioca como originalmente concebido quase não foi implementado–e na verdade está parado–até agora, resultados podem ser projetados para saber como as melhorias irão impactar as comunidades se não forem cuidadosamente implementadas, baseado em outras experiências com urbanizações deste porte. Um resultado claro tem sido o rápido aumento nos preços das casas. Com isso é importante garantir o passo do zoneamento dessas comunidades como ZEIS–áreas reconhecidas e mantidas como habitação social. Mas isso não tem sido cuidadosamente aplicado e mesmo quando é aplicado não tem sido capaz de cercear a gentrificação. A porta-voz do Morar Carioca, Sonia Lopes, previu este efeito em uma entrevista com um guia de investimento internacional em outubro de 2010, quando ela disse que o programa “vai ajudar a manter o mercado de imóveis forte enquanto, ao mesmo tempo, cria novas áreas de oportunidade”. Para muitos moradores de favelas, a conseqüência dessa especulação é que eles já não podem mais sustentar-se em suas casas. Este ano no Complexo do Alemão, que recebeu UPP e urbanizações do PAC, o presidente da Associação de Moradores foi colocado para fora de sua casa, juntamente com outras 416 famílias quando o aluguel subiu mais de 300%. Líderes comunitários e acadêmicos locais referem-se a gentrificação em favelas como um segundo tipo de remoção: “remoção branca“.

Presidente da Associação de Moradores Vila União de Curicica, Vania Neri, aguarda a palavra da Prefeitura para saber se sua comunidade será urbanizada, como era o plano original, ou removida.

Apesar da promessa incrível do Morar Carioca em teoria–não só para o Rio participar de uma forma inclusiva de urbanização sustentável, mas para que possa servir como um modelo de como lidar com assentamentos informais em um crescente mundo urbano–na prática, o nome do programa tem sido utilizado até agora pelas autoridades locais em muitos casos para realizar intervenções autoritárias e unilaterais em favelas do Rio de Janeiro. Na trajetória histórica da questão “remover ou urbanizar”, o atual governo da cidade chegou a um terceiro caminho contraditório com o Morar Carioca: a proclamação de urbanizações, mas uma prática que enfatiza remoções de residências, tanto através da demolição escancarada ou habilitando a gentrificação.

Bibliografia

Mello, Marco Antonio da Silva, Luiz Antonio Machado da Silva, Leticia de Luna Freire, e Soraya Silveira Simões, eds. Favelas cariocas: ontem e hoje. Rio de Janeiro: Garamond, 2012.

Perlman, Janice. Favela: Four Decades of Living on the Edge in Rio de Janeiro. New York: Oxford University Press, 2010.

Decreto do Morar Carioca

Lista das favelas para receber a Fase II do Morar Carioca pela empresa de arquitetura