‘Atletas Olímpicos Negros Costumam Ter o Peso do Mundo Sobre os Ombros’ [RESENHA]

Simone Biles não aguentou a pressão e a ansiedade e se retirou da maioria das competições de Tokyo 2020. Foto por Loic Venance/AFP

“Eu realmente sinto como se tivesse o peso do mundo sobre os meus ombros.” O episódio “Black Olympians Often Have ‘The Weight Of The World’ On Their Shoulders“, ou “Atletas Negros Costumam Ter o Peso do Mundo Sobre os Ombros”, do programa de podcast Consider This da rádio pública norte-americana NPR, denuncia o racismo nas olimpíadas, explorando o impacto na saúde mental dos atletas negros e trazendo o debate sobre a norma da Carta Olímpica, que proíbe manifestações políticas e de cunho racial de acontecerem durante eventos olímpicos, o que, segundo os entrevistados, pune injusta e desigualmente atletas negros.

Simone Biles, melhor ginasta do mundo, favoritíssima dos Jogos Olímpicos Tokyo 2020, desistiu da maior parte das competições olímpicas para preservar sua saúde mental.Simone Biles é a ginasta mais reconhecida a nível mundial. Com só 24 anos, ela já ganhou 36 medalhas nas Olimpíadas, das quais 27 foram de ouro. Porém, algo mudou este ano: na metade da primeira semana, a supercampeã anunciou que não iria participar das competições em Tóquio por tempo indefinido, nem pelo time dos Estados Unidos, nem nas disputas individuais. Isso geralmente acontece em Jogos Olímpicos nos casos de lesões físicas—como torções, fraturas, contraturas musculares, rompimento de ligamentos e outros. Mas Simone Biles deixou nítido que a situação dela era diferente: era sobre saúde mental, sobre a pressão pela perfeição. Todos os atletas sempre estão sob pressão, algo que afeta severamente o psicológico das pessoas. Mas para Simone e para outros atletas negros de alto nível, essa pressão fica ainda maior. Segundo as palavras da supercampeã, postadas em suas redes sociais, ela se sente carregando “o peso do mundo” sobre os ombros.

“preliminares ☑️ agora é se preparar para a final.

não foi um dia fácil ou o meu melhor, mas eu consegui. Eu realmente sinto como se tivesse o peso do mundo sobre os meus ombros às vezes. Eu sei que eu disfarço bem e faço parecer que a pressão não me afeta, mas caramba, às vezes, isso é duro hahaha! A olimpíada não é piada! MAS estou feliz que minha família pôde estar comigo virtualmente 🤍 eles significam o mundo para mim!”

Naomi Osaka, japonesa, negra e uma das maiores tenistas da história do esporte, acende a Pira Olímpica durante a cerimônia de abertura Tokyo 2020.Nos últimos anos, vários atletas olímpicos têm falado mais abertamente sobre saúde mental como um obstáculo, alguns lidam com depressão ou têm mencionado que têm começado a tomar tratamentos anti-depressivos, inclusive a tenista Naomi Osaka decidiu retirar-se este ano do French Open, também conhecido como Roland Garos, e de Wimbledon, dizendo querer focar na sua saúde mental. Apesar de se retirar só em 2021, a tenista disse já vir sofrendo mentalmente durante suas participações em competições esportivas anteriores, pelo menos desde o US Open 2018.

O professor da Universidade de Denver, Mark Aoyagi, explica que, de muitas maneiras, as competições de elite são inerentemente prejudiciais à saúde: “às vezes a saúde mental nesse contexto é sobre gerenciar a capacidade de funcionar”. Simone Biles e Naomi Osaka têm capacidade física perfeita, corpos moldados por anos para seus respectivos esportes, mas que não são máquina. O corpo pressupõe a mente para funcionar e, quando há problemas de saúde mental, quando a cabeça não está saudável, deve-se reconhecer o momento de parar.

“Olá, pessoal, essa não é a situação que eu imaginei ou esperei quando postei há alguns dias. Acho que agora a melhor coisa para os outros jogadores e para o meu bem estar é me retirar [do torneio] para que todos possam voltar a dar atenção ao tênis que está acontecendo em Paris. Eu nunca quis ser uma distração e eu aceito que o tempo não foi o ideal e que minha mensagem poderia ter sido mais clara. Mas o mais importante é que nunca menosprezaria a saúde mental ou usaria o termo de forma irresponsável. A verdade é que eu tenho sofrido com crises depressivas desde o US Open em 2018 e não tem sido fácil lidar com isso. Todos que me conhecem sabem que eu sou introvertida e qualquer um que me veja durante os torneios vai perceber que eu quase sempre estou usando fones de ouvido, já que ajudam a minimizar minha ansiedade social. Apesar da mídia que cobre o tênis ter sempre sido gentil comigo (e eu quero me desculpar especialmente com aqueles jornalistas legais que eu possa ter ferido), eu não sou uma comunicadora natural e tenho ondas gigantescas de ansiedade antes de falar com a imprensa internacional. Eu fico muito nervosa e acho estressante sempre tentar me engajar e dar para vocês as melhores respostas que eu posso. Então, aqui em Paris, eu já estava me sentindo vulnerável e ansiosa então eu pensei que seria melhor praticar o autocuidado e pular algumas coletivas de imprensa. Eu anunciei preemptivamente porque eu realmente sinto como se as regras fossem muito ultrapassadas em partes e queria apontar isso. Eu escrevi privadamente para o torneio pedindo desculpas e dizendo que seria um prazer falar com eles depois do torneio, já que os Slams—torneiros de tênis—são intensos. Eu passarei um tempo longe das quadras agora, mas quando a hora certa chegar, eu quero muito trabalhar com o torneio para discutir maneiras de tornar as coisas melhores para os jogadores, para a imprensa e para os fãs. De qualquer maneira, espero que vocês estejam bem e ficando seguros, amo vocês pessoal. Até logo, quando for a hora certa.”

Adolf Hitler assista as competições no Estádio Olímpico de Berlim, em 1936, na Alemanha Nazista, ao lado do príncipe da coroa italiana.Para atletas negros, há ainda mais uma camada de pressão psicológica. Por quase um século, a própria instituição dos Jogos Olímpicos tem sido formada por uma história racista, sobretudo com os atletas negros. A história racista olímpica é feita de atletas como o Jesse Owens, que competiu durante os Jogos Olimpícos na Alemanha nazista em 1936, e ganhou quatro medalhas de ouro. Hitler, que assistia as competições de atletismo no Estádio Olímpico de Berlim, se retirou do local para não testemunhar a coroação de um campeão olímpico negro. Ainda mais porque Owens ganhou de um ariano alemão, Luz Long, que ficou em segundo lugar. Jesse Owens e Luz Long tornaram-se grandes amigos, apesar das barreiras raciais e políticas entre seus dois países.

Naoto Tajima, medalhista de bronze (à esquerda), Jesse Owens, medalhista de ouro (no centro), e Luz Long, alemão medalhista de prata (à direita), fazendo a saudação nazista, durante a Olimpíada de Berlim de 1936, na Alemanha nazista. Hitler assistiu a competição no Estádio Olímpico, mas deixou o local para não testemunhar a cerimônia da premiação da vitória negra sobre os arianos em Berlim

Outro episódio clássico do racismo que estrutura a Olimpíada moderna foi o dos velocistas estadunidenses John Carlos e Tommie Smith, que levantaram seus punhos cerrados no pódio, em uma saudação Black Power, após terem ganhado as medalhas de ouro e prata nos jogos de 1968 no México. Avery Brundage, líder da Associação Olímpica Americana e presidente do Comitê Olímpico Internacional, fez que John Carlos e Tommie Smith fossem retirados da vila olímpica e do time olímpico americano de 1968.

John Carlos e Tommie Smith levantaram seus punhos no pódio fazendo uma saudação do poder negro, dos Pantera Negra, após terem ganhado.

O sociólogo Harry Edwards, da Universidade de Califórnia em Berkeley, escreve sobre isso há mais de 50 anos e diz que esses jovens olímpicos são forçados a lidar com a aspiração e o medo da “excelência negra”. As seguintes falas citadas são de Harry Edwards, em entrevista para Consider This:

Nunca houve intenção de que negros participassem dos Jogos. Em 1904, inclusive, houve umas olimpíadas da raça, em Saint Louis, EUA, na que trouxeram tribos africanas e colocaram eles na pista junto com atletas brancos para demonstrar a inferioridade preta e justificar que eles não pudessem participar dos Jogos Olímpicos.

Quando você combina a pressão de competir com a expectativa gerada sobre os atletas negros, são criadas camadas de pressão sobre esportistas olímpicos negros, que, às vezes, se tornam insuportáveis, como nos casos de Simone Biles e Naomi Osaka. E o pior é que o sistema ensina que negros deveriam se sentir felizes porque vão participar. E que ainda deveriam agradecer pela inclusão.

Eles se tornaram o foco não só de performance atlética e excelência, mas também de todas as aspirações de pessoas pretas no país, junto com muitos dos medos da sociedade branca dominante sobre a excelência negra. Isso é um peso enorme nos ombros de pessoas que em muitas situações são simplesmente jovens adultos, e que têm que lidar com esse medo branco sobre a performance preta, expectativas negras sobre alto desempenho preto, tudo isso focando ao mesmo tempo no objetivo principal, que é conquista atlética.

As lutas dos atletas negros nas Olimpíadas se comparam a situação geral da comunidade negra nos EUA:

Todos os esforços envolvendo atletas negros sempre estiveram ligados às lutas da sociedade. Aconteceu durante a Segunda Guerra Mundial, com a segregação e a onda de atletas ativistas. Também durante o Movimento dos Direitos Civis e o Black Power movement, ou quando os atletas se preocuparam com o apartheid da África do Sul. Existe uma conexão direta entre a legitimidade percebida de ativismo atlético e o grau no que isso se interpreta e se inclui nas lutas na sociedade americana em geral.

É essencial que atletas negros possam protestar durante as Olimpíadas. Inclusive a regra 50 da Carta Olímpica foi relaxada esse ano, mas o Comitê Olímpico Internacional ainda  diz que não pode ter nenhum tipo de propaganda política, religiosa ou racial em território olímpico. Para Harry Edwards, essa regra seria hipócrita, pois em vários momentos da história olímpica se perpetuaram situações de racismo ou supremacia branca. A própria organização não teve uma pessoa negra no comitê por décadas. Então, porque a manifestação do negro é vista como política?

O Comitê Olímpico Internacional tem uma longa história não só tolerando senão também promovendo discriminação e desrespeito a atletas negros. E ainda não evoluímos nessa etapa. A organização veio com esses problemas do século 20 e trouxe eles para o século 21, com várias das mesmas perspectivas, preconceitos e faltas de entendimento das circunstâncias da diversidade, da população ao redor do mundo.”

Países como os EUA colocam atletas negros num pedestal em eventos como as Olimpíadas, porém esses mesmos atletas são tratados como cidadãos de segunda classe quando voltam para casa.

A noção de que a performance atlética gera legitimidade inclusive para os atletas negros é um mito. Não é um problema de mostrar que você é um atleta bom, todas essas atrocidades em conta da população negra são cíclicas. Por isso as demonstrações são em suporte dessas comunidades. Enquanto a gente continue focando em formas de tratar a dor, e não nas origens dela em termos dos problemas, como a supremacia branca, a gente vai continuar reciclando os movimentos e demonstrações.

Escute, abaixo, em inglês, o podcast “Black Olympians Often Have ‘The Weight Of The World’ On Their Shoulders“, do programa de podcast Consider This da NPR:


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