Esta matéria faz parte da cobertura, infelizmente contínua, do RioOnWatch, sobre remoções de favelas, apesar de consolidadas e com direitos estabelecidos por lei, no Rio de Janeiro.
As ameaças de remoção voltaram a bater à porta dos moradores da comunidade Estradinha, localidade do Tabajaras, com vista para o Cemitério São João Batista, em Botafogo, Zona Sul do Rio. Funcionários da Prefeitura do Rio estiveram na comunidade na última terça-feira, 17, acompanhados por policiais da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), e colaram notificações nas portas de, pelo menos, 30 casas. Os avisos informavam que as residências seriam demolidas no dia seguinte.
Na quarta, 18, os funcionários da Prefeitura não apareceram, conforme anunciado. O atraso, de apenas um dia, conferiu à comunidade uma oportunidade para se organizar e resistir. A Estradinha tem uma história antiga e longa de luta frente às políticas de remoção, mas a possibilidade de perder suas casas do dia para a noite deixou os moradores em pânico. A comunidade se mobilizou e entrou em contato com o Núcleo de Terras e Habitação (NUTH) da Defensoria Pública do Rio. Ainda na noite de quarta-feira, uma ação foi ajuizada no plantão noturno do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) para tentar frear as demolições que viriam a ocorrer no dia seguinte.
A decisão favorável à comunidade impediu a demolição das moradias na Estradinha, mas não foi suficiente para impedir a derrubada de uma casa na localidade vizinha, conhecida como Coroa. Nesse local, a Prefeitura demoliu uma e argumentou que o imóvel não estaria sendo utilizado como habitação. Porém, fotos e vídeos demonstram móveis e objetos sendo retirados do interior da casa e colocados na viela. Os moradores haviam saído quando os funcionários da Prefeitura chegaram. Vazia, a casa teve a porta arrombada para início da demolição. Quando retornaram, os moradores não puderam entrar para retirar seus pertences.
A Estradinha está no centro de embates judiciais que tiveram início junto às ameaças de remoção durante a primeira gestão de Eduardo Paes na Prefeitura do Rio. A ação realizada esta semana, como lembra a defensora pública Adriana Beviláqua, desconsidera uma ação judicial que data de 2010: “A gente argumentou que o município estava descumprindo uma decisão judicial em uma ação civil pública da defensoria, cujo acordo diz que para demolir na Estradinha o município precisa antes apresentar à população e à defensoria um estudo técnico de riscos no local. Sem a apresentação disso, que nada mais é do que o cumprimento da lei orgânica, eles não podem demolir”, explicou Adriana do NUTH, núcleo responsável pela liminar que impediu as demolições na favela.
Além disso, o curto espaço de tempo entre a entrega das notificações e o início das demolições, também, se apresenta como uma violação, ao impedir que os moradores tenham tempo hábil de se defender e recorrer da decisão. “Não pode notificar as pessoas que residem para uma imediata demolição, sem oportunizar aquilo que está na Constituição Federal e na nossa legislação que é o direito à ampla defesa”, indicou a defensora do NUTH. Adriana Beviláqua ressaltou, ainda, que nas notificações não consta o número do processo administrativo ou o prazo de resposta.
Apesar do parecer favorável, a decisão judicial que impediu a derrubada dos imóveis na Estradinha pode ser revertida a qualquer momento. Isso porque, o município pode entrar com um recurso e conseguir, na Justiça, a autorização para o despejo das famílias e demolição dos imóveis.
Para quem vive na Estradinha o sentimento que fica é de insegurança frente a uma possível nova onda de remoções no local. A habitação é um direito e a remoção é um atropelo à história das comunidades. Residência dos funcionários do Cemitério São João Batista, a comunidade Estradinha começou a se formar em 1952. De lá para cá, o território recebeu várias políticas governamentais direcionadas às favelas, inclusive a permissão do poder público para o assentamento de novas famílias na área.
Estradinha e o Legado Olímpico de Remoções
No período que antecedeu os Jogos Olímpicos na Cidade do Rio, em 2016, uma série de reformas e intervenções no espaço urbano promoveu a remoção direta e indireta de milhares de famílias. Comunidades inteiras foram removidas. Logo no começo deste processo, em janeiro de 2010, o município anunciou um plano de remoção da “comunidade localizada acima do cemitério São João Batista”, sob a alegação de que esta ocuparia uma área de risco. A contrapartida oferecida aos moradores seria a indenização, a compra assistida ou a inscrição no programa Minha Casa, Minha Vida.
A intimidação foi uma das estratégias utilizadas para remover as famílias. Conforme descrito pela liderança local, Maria de Fátima Amorim, conhecida como Irmã Fátima, com o rótulo de “invasores” e forte pressão do poder público, alguns moradores optaram em deixar o local. As fortes chuvas que atingiram o estado naquele ano também foram utilizadas na estratégia adotada pela Prefeitura. Os temporais provocaram deslizamentos em várias comunidades, fato que foi utilizado pelo poder público para criar pânico e estimular a saída dos moradores. Ainda que nenhum incidente com vítimas tenha sido registrado na Estradinha, os eventos foram usados para espalhar desinformação e reforçar o argumento de que a comunidade estava em “área de risco”.
Assim, as primeiras casas começaram a ser derrubadas ainda em 2010. Na medida em que as moradias eram derrubadas, os riscos à segurança e estabilidade das casas vizinhas, bem como o transtorno gerado pelos entulhos, empurravam outras famílias para fora da comunidade. O pânico construído servia como incentivo à negociação das moradias com o município. Com quase dois terços da comunidade no chão, era cada vez mais difícil resistir e permanecer na Estradinha.
As montanhas de entulho deixadas para trás após as demolições atraíam insetos e impediam o escoamento das águas pluviais, contribuindo para o enxarcamento do solo. Nessa época, um laudo da Geo-Rio, órgão responsável pelas avaliações de riscos geológicos, apontou a comunidade Estradinha e outras sete favelas como áreas de “alto risco”. Com isso, a Prefeitura do Rio passou a insistir na remoção de toda a comunidade.
É nesse contexto que a Irmã Fátima e toda a comunidade começa a se organizar e mobilizar para resistir e lutar pelo seu direito de existir. Além do suporte do Núcleo de Terras e Habitação da Defensoria Pública, a comunidade passa a contar com uma rede de apoio formada por engenheiros, advogados, arquitetos e muitos amigos. Surgiu, a partir desse esforço coletivo, tentativas mais organizadas de resistir às remoções no território, inclusive de realização de um laudo técnico independente, reunindo a comunidade em torno das discussões do projeto e do direito à moradia.
Carolina Pires, pesquisadora e doutoranda em Sociologia e Direito, é uma das integrantes dessa rede de apoio. Ela acompanha a situação na Estradinha desde 2010 e, também, integra a rede de apoio a outras comunidades ameaçadas de remoção, como o Horto Florestal, no Jardim Botânico. Ela concorda que a “proteção ao meio ambiente” passou a ser utilizada como um argumento pelo poder público para executar remoções: “É um argumento perverso que só é mobilizado para remover as comunidades, cuja maioria dos habitantes é de negros e pobres. Não removem as mansões construídas na floresta”, exemplifica Carolina.
Se a segurança da área foi o argumento acionado para promover as remoções em 2010, a preservação do meio ambiente surge como motivação principal as ações realizadas nesta semana na Estradinha, como explícita a nota publicada no site da Prefeitura do Rio. No entanto, essa lógica que coloca favela e meio ambiente como inimigos desconsidera o potencial dos territórios e de seus residentes em promover um estilo de vida que proteja e preserve a natureza, como demonstram diversas experiências em favelas no Rio de Janeiro.
Construção irregular no Parque Natural Municipal Paisagem Carioca, na Ladeira dos Tabajaras, foi demolida na manhã de hoje.
O imóvel estava em área de vegetação de Mata Atlântica, sendo um risco ao meio ambiente e às pessoas.
Clica aqui 👇 e veja a ação.https://t.co/uEJwq4K6Y2
— Prefeitura do Rio (@Prefeitura_Rio) August 19, 2021
Além disso, a defensora pública Adriana Beviláqua explica que existe um debate em curso no judiciário que busca entender se a comunidade Estradinha está ou não em área de proteção ambiental e quais os efeitos disso. Ela lembra, ainda, que o fato de ser uma comunidade bastante antiga pesa à favor dos moradores: “a gente tem uma legislação no Brasil que permite a regularização fundiária de comunidades consolidadas, ainda que estejam em áreas de preservação ambiental”, explica Adriana, que lista os diversos dispositivos legais para a garantia desse direito. Entre eles, a Lei 13.465, de 2017, a Resolução Conama e o Código Florestal, de 2012. Todos eles tornam possível a regularização e a permanência das moradias, reconhecendo o direito, as raízes e a história das comunidades.