Esta matéria faz parte da série do projeto antirracista do RioOnWatch. Conheça o nosso projeto que traz conteúdos midiáticos semanais ao longo de 2021: Enraizando o Antirracismo nas Favelas.
Introdução à Branquitude Brasileira: Por Que Salvador, Bahia?
A capital baiana abriga uma elite branca advinda ainda do tempo do Brasil colônia. É a mais tradicional elite branca do país. Primeira capital colonial do Brasil, fundada ainda em 1549, manteve seu status até a transferência da capital para o Rio de Janeiro em 1793. Salvador foi também o primeiro porto da corte que veio fugida de Portugal para o Brasil, em janeiro de 1808. No entanto, ainda em março daquele ano, a corte seguiu para o Rio de Janeiro, tornando a cidade—que era capital do Brasil colônia somente há 15 anos—a capital do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, tomando o lugar de Lisboa como centro do poder no Império Português. D. João VI, ao se instalar no Rio, deixava para trás a elite soteropolitana, uma elite colonial tradicionalista, conservadora, que mais defendia seu caráter português, patrício, europeu, branco e escravista.
A cidade de Salvador e o estado da Bahia foram os que mais resistiram à independência do Brasil. Enquanto, historicamente, aceita-se 7 de setembro de 1822 como o Dia da Independência do Brasil, na Bahia, comemorou-se a independência em 2 de julho de 1823. Esse lapso temporal de cerca de um ano se deu pela resistência da elite branca baiana em largar sua filiação à Coroa portuguesa e em renegar seu caráter europeu.
Foi só com grande participação popular, indígena, negra e de mulheres como Maria Felipa, Joana Angélica e Maria Quitéria, que as tropas portuguesas finalmente deixaram a Bahia em 1823, o verdadeiro Dia da Independência para os baianos. Não foi pelas mãos dos patrícios, dos brancos da elite local, que a colônia chegou ao seu fim na Bahia, processo oposto ao que aconteceu em outras províncias brasileiras à época.
Durante o período colonial (1530-1822), Salvador e Rio de Janeiro foram os principais portos onde atracavam os navios negreiros. Durante esses três primeiros séculos do Brasil, aportaram na capital baiana cerca de 1.200.000 africanos escravizados, enquanto, neste mesmo período na Cidade Maravilhosa, aportaram 797.924 pessoas escravizadas. No entanto, no período pós-colonial, da independência em 1822 até a abolição da escravatura em 1888, o influxo de pessoas escravizadas se ampliou. Foi tão grande que, segundo uma recente pesquisa, o Rio de Janeiro teria recebido cerca de 2 milhões de africanos escravizados em toda sua história.
Portanto, apesar do Rio ter se tornado o maior porto escravista da história, Salvador foi o primeiro, mais duradouro e o maior porto negreiro do Brasil colônia. Salvador foi por mais tempo que o Rio de Janeiro o centro da escravidão no Brasil. Segundo dados do IBGE, Salvador é a capital brasileira com o maior número de negros: 82,1%. É a cidade mais negra não só do Brasil: é a cidade mais negra fora da África.
Ainda hoje, Salvador é o antro mais clássico da branquitude: concentra a menor e mais colonial elite branca do país. Com cerca de 17% da população soteropolitana, os brancos se privilegiam da maior desigualdade salarial por cor de pele do país, ganhando 67,8% a mais do que os soteropolitanos pretos, ainda segundo o IBGE. Além desses abismos raciais e econômicos, a desigualdade racial impacta até mesmo na chance de permanecer vivo na capital baiana. Nos diversos bairros da cidade, sem incômodos, agentes do Estado seguem ameaçando e aniquilando corpos negros, como faziam os capitães do mato na época da escravidão.
Com uma polícia altamente truculenta, o estado da Bahia perde apenas para o estado do Rio de Janeiro, campeão de assassinatos cometidos por policiais militares, com 1.239 mortes registradas em 2020. A Polícia Militar da Bahia (PMBa), por sua vez, deu fim à vida de 1.137 pessoas, ultrapassando, inclusive, a Polícia Militar de São Paulo, que promoveu 814 homicídios no mesmo período. É importante ressaltar que a população do estado de São Paulo é três vezes maior que a da Bahia. E mais um dado assustador: todas as vítimas da polícia na Bahia em 2020 eram homens negros. Enquanto isso, outros vivem com seus privilégios.
Você Sabe o Que É Branquitude?
No último domingo de outubro, no Farol da Barra, Salvador, Bahia—a cidade mais negra do Brasil, apelidada de Roma Negra—eu, mulher negra de pele clara, abordei pessoas brancas e fiz perguntas. Diante da pergunta: “Você sabe o que é branquitude?”, a maioria ficou constrangida. A palavra “branquitude” causa certo desconforto. Ouvi respostas como: “Não quero participar da matéria, melhor você falar com uma pessoa negra”, “Não sou racista”, “Não sou branca, minha avó era índia!” e “O que é isso?”
O termo branquitude não é recente. A palavra começou a ser utilizada na década de 1950 por nomes como o psiquiatra Frantz Fanon, autor de Pele Negra, Máscaras Brancas, e ganhou destaque na década de 1990, nos Estados Unidos. De acordo com a antropóloga Izabel Accioly, a palavra serve para designar um grupo social de poder que detém o privilégio branco, tanto material quanto simbólico. A antropóloga continua:
“Muitas vezes, ao ter contato pela primeira vez com o termo [branquitude], as pessoas podem achar que se refere ao grupo social de gente branca, um mero sinônimo. Mas não é só isso. Representa também todo o sistema de poder que este grupo possui.”
Policiamento na “Roma Negra” e a Branquitude
O que para a maioria negra da população baiana é sinônimo de medo, para a população branca significa segurança e proteção. A tranquilidade estampada na cara de quem não precisa se preocupar com uma ação violenta da Polícia Militar é a face mais clara da branquitude brasileira. Afinal, mesmo que o branco não tenha dinheiro, ele tem o privilégio simbólico de ser visto como superior, de não ser visto o tempo todo como suspeito.
Enquanto pessoas negras são presas, humilhadas e mortas todos os dias no Brasil, vítimas da seletividade penal e do perfilamento racial, pessoas brancas têm “uma espécie de ‘crédito pré-aprovado’ [para agir]”, ou seja, conforme explica Izabel, só pelo fato de serem brancas, essas pessoas são recorrentemente eximidas de responsabilização perante a sociedade e o Estado brasileiro.
O professor Matheus Felipe, 29 anos, lembra de quando passou a entender o que era branquitude. Há cerca de dez anos, durante uma abordagem policial em um ponto de ônibus na Avenida Bonocô, que fica perto de onde ele morava, em Cosme de Farias, bairro pobre da capital baiana, ele viu uma situação clara de branquitude. Ele relatou:
“Era um domingo. Meus olhos estavam vermelhos, pareciam brasas, devido ao baseado que eu tinha fumado. Eu tinha por volta de 17, 18 anos e não estava nada arrumado. Havia outro rapaz próximo a mim que aguardava o ônibus e aparentava estar normal, com vestes simples como as minhas… Uma coisa que me marcou naquele dia foi que eu achei que a polícia me abordaria porque o baseado estava [no bolso], marcando a minha calça, e por causa dos meus olhos. Mas, em vez disso, enquadram o rapaz de maneira violenta, enquanto uma policial com o antebraço me empurrava do local me tirando de cena. Revistaram o rapaz e me deixaram ir embora. A nossa diferença [entre eu e aquele rapaz] é que eu sou um homem branco e ele era um homem preto retinto.”
Ciente do motivo que resultou no desfecho dessa história, Felipe afirma com exatidão que a causa da PMBa não o ter considerado suspeito foi racismo. Felipe não conseguiu acompanhar o que aconteceu com o jovem negro na abordagem, pois foi retirado do local pela policial. Mesmo sendo pobre e portando maconha, o professor não sofreu represália da PM, por ter o privilégio da cor, conforme explicou Izabel. O suspeito era o outro, mesmo que os indícios apontassem para Matheus Felipe, o sujeito branco.
Branquitude: um Dispositivo de Privilégio Estrutural
Diferente de Felipe, a cantora baiana Merjory Kênia sofreu processos que dificilmente seriam vivenciados por pessoas brancas. Em 2007, a jovem negra aportou em Salvador para fazer o vestibular para o curso de Oceanografia, na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Merjory foi aprovada e passou a ser a única mulher preta da turma. Mas, a menina do interior, nascida e criada em cidades com populações menores que 30.000 habitantes, foi atormentada pelo racismo e pela branquitude na capital baiana, com seus quase 3 milhões de habitantes. Em 2011, Merjory também foi aprovada no curso de Canto na Escola de Música da UFBA, onde percebeu por diversas vezes a preferência de professores por alunas brancas para fazerem a canção solo.
Apesar dos atravessamentos do racismo, Merjory conseguiu se formar, é cantora lírica e atua em escolas de canto da cidade de Curitiba, onde mora. Perguntada sobre racismo na capital sulista do estado do Paraná, ela lembrou que teve um aumento de 65% no número de mortes de pessoas pretas durante a pandemia, em 2020, naquela cidade. Ela foi enfática:
“Eu já vi gente branca que prefere ficar em pé do que sentar ao meu lado no ônibus. Eu sei porque basta ter um espaço para sentar ao lado de outra pessoa branca que ela senta; quando entro em lojas, sempre vejo os seguranças se comunicando por meio do walkie talkie; percebo como as vendedoras me olham desconfiadas e me abordam achando que vou roubar algo.”
Isso não é diferente em Salvador e nem em qualquer outra cidade do Brasil. A razão para Merjory saber, sentir e entender esses olhares condenadores e de suspeita de vendedoras e seguranças vem, sobretudo, de uma abordagem sofrida pela jovem em Salvador, mas que é relato frequente de jovens negras e negros por todo o Brasil:
“Certo dia, após o expediente, passei em um mercado e comprei um guaraná natural, que na época custava dois reais e adentrei na padaria Master Pães, no bairro Canela, próximo de onde eu morava, com a bebida aberta na minha mão. Não havia o que eu procurava, então entrei em outra padaria, a Canaã, quando fui surpreendida pelos gritos de um homem me acusando de ter roubado o guaraná natural. Eu fui humilhada ali. Ninguém me defendeu, mesmo tendo comprovado com nota fiscal que havia comprado o produto anteriormente.”
Merjory foi à delegacia prestar queixa, e a delegada, branca, a desencorajou a continuar o processo, alegando que “não daria em nada”. Merjory disse:
“Eu li o depoimento do dono da padaria e ele não havia negado a situação. Para variar a delegada é branca. Me senti um lixo. Não tinha como pagar advogado. E ele era um homem branco e rico, com certeza tinha advogados. Isso até hoje não saiu da minha cabeça. Fui humilhada e injustiçada por ser preta.”
Além de sofrer esses e outros crimes de racismo, Merjory aponta os momentos em que ia ao shopping com uma ex-colega da universidade: “ela sempre era atendida, enquanto eu ficava aguardando alguém vir falar comigo que não fosse com olhares de desconfiança”.
Heranças da Colonialidade: Branquitude e Privilégios Materiais e Simbólicos
A branquitude é um sistema material e simbólico que atinge pessoas negras em diversos aspectos, entre eles o profissional. A falta de contratação de pessoas negras, especialmente para cargos de chefia, está intimamente ligada à branquitude e ao racismo. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) do IBGE, apresenta dados específicos sobre o desemprego no Brasil, em 2020, período de pandemia. Segundo o levantamento, as pessoas negras representam 72,9% dos desempregados do país, o total de 13,9 milhões de pessoas. Além disso, muitos processos seletivos exigem requisitos que somente uma pequena parcela da população brasileira teria acesso, sendo impeditivos para a maioria.
Tais discrepâncias são vistas cotidianamente em editais com vagas de empregos que exigem requisitos como saber um segundo idioma fluentemente. Sim, algumas pessoas conseguem estudar por conta própria e alcançar o tão solicitado idioma que, na maioria das vezes, nunca é posto em prática durante o período de trabalho. Algumas pessoas negras acabam tendo que escolher entre trabalhar para sobreviver ou pagar um cursinho e se dedicar horas a fio para conquistar o idioma.
Nesse caso, quais pessoas passam nesses processos seletivos? Uma pessoa negra, moradora da favela, que sempre precisou lutar para sobreviver e, mesmo assim, conseguiu aprender o idioma? Ou alguém que teve todos os recursos necessários e fez um mega intercâmbio para os EUA ou algum país europeu e que teve oportunidade de conversar com nativos, retornando ao país com fluência na língua?
O lado afetivo de mulheres negras também é impactado pela branquitude. A paulistana Simone Santos* é uma mulher negra, de 41 anos, e relata nunca ter tido um namorado ou marido, mesmo tendo um filho de um homem que nunca a assumiu:
“A gente ficou junto por um tempo, mas ele nunca me apresentou à família, mesmo eu tendo engravidado. Hoje sei que ele é casado com uma loira que tem filhos de outros homens. Eu fico pensando: todas as mulheres brancas que eu conheço, mesmo não sendo tão bonitas ou com condições melhores que a minha, sempre estão em um relacionamento, e eu sozinha, mesmo ouvindo de pessoas próximas que era bonita e inteligente.”
A realidade de Simone é a mesma que a de muitas outras mulheres negras do Brasil. Entre os livros que abordam o tema, A Solidão da Mulher Negra: Sua Subjetividade e Seu Preterimento pelo Homem Negro na cidade de São Paulo, fruto da dissertação de Claudete Souza, é um marco no apontamento da desvantagem da mulher negra em comparação com a mulher branca quando um homem negro escolhe uma parceira para relacionamento afetivo e sexual. Izabel Accioly explica:
“A ideologia da branquitude convence pessoas negras de que são feios o seu cabelo, o nariz, o tom de pele. E que o bonito é o branco que tem o cabelo liso, pele e olhos claros. A branquitude é todo esse sistema de supremacia branca.”
Pessoas Brancas Podem Fortalecer a Luta Antirracista?
No entanto, é possível se unir à luta antirracista sendo uma pessoa branca. É o que afirmou Izabel:
“Pessoas brancas precisam entender que, se elas foram criadas em um país que é racista estruturalmente, desde que os portugueses invadiram essas terras, ela foi criada e condicionada pelo racismo. O primeiro passo é entender que faz parte do problema e parar de negar que ele existe.”
Izabel lista atitudes antirracistas que podem ser tomadas por pessoas brancas: “A contratação de pessoas negras; olhar o próprio contexto; ter noção dos seus privilégios; educar as crianças para respeitarem pessoas negras”. Segundo a antropóloga, se a pessoa branca estiver em posição de chefia, é importante que ela observe se há a contratação de pessoas negras e qual é a abrangência desses mecanismos de contratação.
Sendo assim, não é coerente abrir um edital para pessoas negras pedindo inglês fluente ou vivência em intercâmbio, pois estruturalmente há um déficit para as pessoas cujos antepassados foram escravizados durante a história recente do país. Não é coerente especialmente considerando que até hoje, pessoas negras ainda detêm menos poder material e menos acesso à educação do que pessoas brancas. Num país onde só 5% das pessoas falam inglês e só 1% falam a língua inglesa fluentemente, quantos dentro deste seleto grupo devem ser negros?
O abismo no Brasil é tão grande que, segundo o relatório Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil, divulgado em 2019 pelo IBGE, os brancos representam 70% da parcela mais rica da população brasileira, enquanto as pessoas negras são 75% entre os mais pobres.
Por fim, de acordo com Izabel, o privilégio branco é uma espécie de vantagem indevida que toda pessoa branca tem, mesmo que a pessoa não queira desfrutar dele. Afinal, situações vivenciadas por pessoas negras todos os dias, como ser seguida dentro de um supermercado e ser acusada de não pagar um produto, não são vivenciadas rotineiramente por pessoas brancas, que não são vistas como ameaças. É privilégio da branquitude ir ao mercado, fazer suas compras e voltar vivo para casa. Como bem nos mostrou o caso de João Alberto, morto por seguranças do Carrefour, em Porto Alegre, e de tantos outros cujos nomes nem soubemos. Mesmo que a branquitude não goste de ouvir, é importante falar: vidas negras importam!
*Simone Santos é um pseudônimo, escolhido para preservar a identidade da fonte, que prefere não ser identificada.
Sobre a autora: Camila Fiuza é jornalista formada pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), oriunda da escola pública, e integrante do movimento Mães de Maio do Nordeste. Mulher negra, periférica e ativista de direitos humanos e antirracismo, Camila contribuiu para rádios comunitárias e passou pela Record TV Itapuã e rádio Band News FM em Salvador.
Sobre a artista: Natalia de Souza Flores é cria da Zona Norte do Rio de Janeiro e integrante das Brabas Crew. Formada em Design Gráfico pela Unigranrio em 2017, trabalha como designer desde 2015. Lançou a revista em quadrinhos coletiva ‘Tá no Gibi’, em 2017 na Bienal do Livro. Sua temática principal é afro usando elementos cyberpunk, wica e indígena.
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