“Ser mulher negra é resistir e sobreviver o tempo todo.” A frase foi dita por Marielle Franco, a mulher que mudaria o curso da história política brasileira, em entrevista ao Brasil de Fato, durante as jornadas de lutas das mulheres, em março de 2017. Hoje, essa é a premissa de mulheres negras que atuam no campo da política. São as sementes de Marielle Franco, nascidas e forjadas na luta antirracista por direitos humanos, igualdade de gênero e democracia.
A baixa representatividade de mulheres negras na política sempre foi um obstáculo. A forma díspar de ocupação dos espaços de decisão segue alimentada pela exclusão social, enraizada no racismo e no machismo que estruturam a sociedade. Nas eleições de 2020, os homens foram 84% dos vereadores eleitos no Brasil. Entre os 16% da vereança feminina eleita, 59% eram mulheres brancas e 34% negras. Isso significa dizer que para cada 100 vereadores eleitos no país em 2020, apenas 16 eram mulheres e, dessas, só 5 eram mulheres não brancas. Apesar das mulheres negras serem o maior grupo demográfico do país—28% da população—ocupam só 5% dos cargos à vereança. As informações são de um levantamento do projeto ONU Mulheres em parceria com a Gênero e Número, a partir de dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
A taxa de mulheres eleitas em 2020 é baixa, porém já é maior do que na eleição anterior. Em 2016, apenas 13,5% da vereança eleita era feminina. Nesse contexto, Marielle Franco, cria do Complexo da Maré, na Zona Norte do Rio, não se deixou silenciar no campo social ou político. A sua trajetória possibilitou o reconhecimento da importância da mulher negra e favelada para o fortalecimento da democracia. Renata Souza, deputada estadual, e Mônica Cunha, vereadora suplente e fundadora do Movimento Moleque, são duas mulheres negras forjadas na luta por direitos que tiveram suas vidas marcadas por Marielle Franco e o seu legado.
“Marielle Mostrou que Mulheres Negras e Periféricas Sabem Fazer Política”
Mônica Cunha é defensora dos direitos humanos e educadora social. Em 2003, fundou o Movimento Moleque para combater as violações sofridas por adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas. Sua militância começou ali, quando seu filho passou a ser considerado um adolescente autor de ato infracional. Em dezembro de 2006, seu filho, Rafael da Silva Cunha, foi assassinado aos 20 anos por um policial civil, o que só intensificou ainda mais a luta de Mônica.
Meu filho Rafael da Silva Cunha foi assassinado no dia 5 de dezembro de 2006, aos 20 anos. Mas minha militância não começou com a morte dele, e sim quando ele tinha 15 anos e foi cumprir medidas socioeducativas em um estabelecimento do Degase, no Rio de Janeiro. 👇🏿 pic.twitter.com/5EOOl8dIV6
— Monica Cunha (@monicacunhario) August 22, 2020
Mônica conheceu Marielle quando Marielle era coordenadora da Comissão dos Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ), ao buscar ajuda para os casos de abuso e violência sofridos pelos adolescentes acautelados no Departamento Geral de Ações Socioeducativas (DEGASE). Após o primeiro contato, Mônica passou a se encontrar mais vezes com Marielle, frequentando a Comissão, desenvolvendo projetos de lei visando as medidas do sistema socioeducativo, além de participar da construção de audiências públicas sobre o tema. Pensar politicamente o sistema socioeducativo se tornou um elo comum entre elas. Marielle, por meio de sua atuação política, apoiava as mães do Movimento Moleque e estimulava, talvez sem perceber, o empoderamento político de Mônica.
Em 2016, Marielle havia se candidatado para concorrer ao cargo de vereadora da cidade do Rio e convidou Mônica para ajudá-la na campanha, colocando-a como responsável pela pauta das medidas socioeducativas. De imediato, Mônica aceitou, porque sentiu que Marielle enquanto mulher negra e favelada, que criava sua filha com bastante sacrifício, iria entender o que as mães passam para criar seus filhos dentro da favela. Mônica se identificava com Marielle. Ela não viu problema nenhum em fazer a campanha, passando a apoiar com muito fervor a candidatura. Participou de encontros, frequentou o comitê de campanha e, com isso, elas ficaram ainda mais próximas.
Com um esforço incansável, Marielle conseguiu pleitear uma cadeira na Câmara como a 5ª vereadora mais votada do Município do Rio. Muito emocionada com a vitória, após assistir à apuração em casa, Mônica lembra de pegar um mototáxi e ir direto para a Cinelândia, no Centro. Encontrou Marielle e a abraçou com euforia, verbalizando que conseguiram vencer a campanha. Daí em diante, passou a ter a certeza de que tudo o que elas haviam conversado em campanha iria acontecer. Mônica diz que na época ficou muito feliz em saber que tinha se esforçado para eleger uma mulher preta de favela.
A força da representatividade política de Marielle fez Mônica perceber que a mulher negra merece, sim, ocupar um cargo político, disputando as narrativas e protagonizando em espaços ocupados, majoritariamente, por homens brancos. “O mandato de Marielle foi um aprendizado. Me fez perceber que a mulher preta pode e sabe fazer política”, conta Mônica. Em sua avaliação, era notório que havia certo desconforto por parte dos membros da Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro em saber que Marielle havia ocupado um lugar naquele espaço: “Marielle causava incômodo quando passava nos corredores da Câmara, com aquele cabelo volumoso, alta, com as roupas coloridas”, lembra a amiga.
Marielle foi uma mulher que congregava diversos grupos e pessoas ao seu redor para fazer política. A vivência próxima a parlamentar fez Mônica entender ainda mais o lugar do povo negro na política e a urgência de pessoas negras, especialmente mulheres, ocuparem esse espaço. Ela lembra de uma conversa específica com Marielle, em que a vereadora dizia já estar na hora, depois de 20 anos de militância, de Mônica se candidatar à vereadora.
No primeiro momento, ela rejeitou a ideia, não se achava capaz de tolerar posicionamentos e falas racistas de outros membros da Câmara. A negativa foi prontamente respondida por Marielle: “Não. Você vai aprender! Você aprendeu a conviver esses anos todos sem o seu filho, você está nesse mundo sem ter quem você mais ama. Então, como é que você não vai aprender a conviver dentro dessa Câmara? Um lugar hostil mas que é nosso, que temos que assumir”.
Mônica começou a pensar na ideia, mas quando Marielle foi assassinada, em 14 de março de 2018, ela definitivamente desistiu. No ano seguinte, Marcelo Freixo, deputado federal pelo Rio também a incentivou. Segundo Mônica, Freixo dizia que ela estava mais do que pronta para dar esse passo. Ele falava, também, que as pessoas deveriam entender o assassinato de Marielle como um legado: o legado das mulheres negras na política. Esse modo de encarar a perda de Marielle foi um divisor de águas para Mônica e ela começou a tocar sua campanha à vereança para as eleições de 2020. Estava convicta do que queria fazer e, mais do que nunca, tinha a certeza de que “lugar da mulher é na política, principalmente as mulheres negras!”
Espaços de Visibilidade, Memória e Mobilização
“O fato [é que a gente é] muito ameaçada, eu sou uma delas. É porque quem sabe de fato tocar política, não só de livros, mas de práticas, somos nós. A gente pega condução cheia, a gente leva os filhos para a escola, a gente vai ao mercado, a gente fala com o vizinho, desce e sobe morro. Enfim, vive a vida. Então, obviamente quem vai saber o que é melhor para o povo, somos nós.” — Mônica Cunha
Entre os dias 14 e 15 deste mês, Mônica estará nos Estados Unidos para participar de um painel de discussão durante o evento “Vozes Insurgentes da Democracia Letal no Brasil–Relembrando Marielle Franco” na Universidade Estadual de San Diego. Além de Mônica, também estarão presentes Débora Maria Silva e Rute Fiuza, mães de Rogério Silva e Davi Fiuza, vítimas do genocídio da população negra promovido pelo Estado. A presença delas no evento tem como objetivo denunciar o assassinato de jovens negros, além de outras violações de direitos humanos cometidas nas favelas brasileiras.
Já a Deputada Estadual Renata Souza está em Nova Iorque, onde participa de um ato em memória de Marielle Franco e onde fará uma denúncia internacional sobre a falta de respostas sobre quem mandou matar a vereadora e defensora de direitos humanos e por quê. A deputada ainda se encontrou com o Prefeito Ras Baraka, da cidade de Newark Nova Jérsia, para debater a redução da letalidade policial e encarceramento da juventude negra. Segundo Renata, Newark tem muitos imigrantes brasileiros e portugueses e não é difícil encontrar uma churrascaria bem brasileira na cidade que tem quase o português como segunda língua. A deputada destaca que lá, a maioria do corpo de secretariado da prefeitura é composto por mulheres negras.
Foi a sobrevivência que motivou a luta antirracista de Renata Souza. Mulher negra, feminista, cria da Maré e defensora de direitos humanos, antes de ser chefe de gabinete de Marielle, aprendeu a fazer política na favela. Percorreu um caminho comum a muitas mulheres negras de periferia: começou ocupando espaços de ativismo em seu território e na luta por direitos sociais para a sua comunidade, aprendendo, vivendo e lutando por direitos humanos na prática.
Aos 16 anos, Renata já estava envolvida com as instituições que atuam na Maré, promovendo acesso à educação e à cultura. Foi no pré-vestibular comunitário que conheceu Marielle. O entrosamento com os movimentos sociais era grande. Decidiu juntar esforços para a luta antirracista dentro da favela. “Na época, todos diziam que era uma luta contra o assassinato dos jovens pretos”, recorda Renata, que hoje percebe se tratar de uma luta ainda mais ampla, que impacta, sobretudo, às mulheres pretas e faveladas. “Se a gente está lutando contra o racismo, estamos falando do direito dessa mulher de não perder o seu filho, também negro, para a violência policial. Estamos falando, também, dessa mulher que perdeu o seu companheiro negro para a violência policial”, explica a deputada.
Violência Política Contra Parlamentares Negras
Marielle morreu por violência política. Mulheres negras que ocupam cargos públicos recorrentemente sofrem ameaças e são vítimas de violência política. Um estudo realizado pelo Instituto Marielle Franco, publicado em 2021, constatou que 98,5% das 142 mulheres negras entrevistadas relataram terem sofrido mais de um tipo de violência política. A violência virtual (78%), a moral ou psicológica (62%) e a institucional (53%) foram as violações mencionadas com maior frequência. Em agosto do ano passado, Renata Souza sofreu violência política por parte de um colega deputado, durante sessão na ALERJ, e não teve direito de resposta durante a plenária.
“Penso que a cada violência política, eu tenho mais certeza que é no parlamento que devemos estar por ser uma das ferramentas de luta essenciais nesse momento político. Quanto mais mulheres pretas no parlamento, melhor.” — Renata Souza
Casos de violência contra mulheres não brancas na política são frequentes. Apenas este ano, Benny Briolly, vereadora na Câmara de Niterói, Região Metropolitana do Rio, foi alvo de seis ameaças de morte. Em menos de um ano, segundo a equipe da parlamentar, foram 20 ameaças à vida de Benny, uma mulher preta, cria de favela e travesti. Benny já foi atacada no plenário diversas vezes e, inclusive, precisou deixar o país por algum tempo para se proteger de ameaças à sua vida. A Deputada Federal Talíria Petrone precisou deixar o Estado do Rio após ameaças de morte. O Disque Denúncia recebeu informações de que a milícia planejava a execução da parlamentar, que precisou se afastar durante um período das atividades legislativas e de ativismo.
As mulheres negras têm um enorme desafio dentro dos parlamentos. Renata afirma que esse espaço na política é historicamente negado para as mulheres, especialmente para as mulheres pretas e de favela: “é um ambiente hostil, mas, de fato, a cada hostilidade e violência política, tenho mais certeza que é ali que devemos estar para que o parlamento seja uma ferramenta de luta institucional contra o racismo, machismo, misoginia, a própria LGBTFobia”, pontuou Renata.
A presença de mulheres nos espaços de poder não se traduz, de forma direta, em uma maior representatividade das pautas. Como explica Renata, muitas mulheres que atuam como deputadas vêm de famílias de políticos. São, portanto, “herdeiras da política familiar, herdeiras políticas do marido e do pai. Dificilmente são herdeiras políticas de um movimento social, de uma causa social”. A deputada estadual da Maré conclui: “A gente [mulheres pretas] não entra no parlamento herdando a política, nós entramos para subvertê-la”.
Sobre a autora: Camila Fiuza é jornalista formada pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), oriunda da escola pública, e integrante do movimento Mães de Maio do Nordeste. Mulher negra, periférica e ativista de direitos humanos e antirracismo, Camila contribuiu para rádios comunitárias e passou pela Record TV Itapuã e rádio Band News FM em Salvador.