Esta matéria faz parte de uma série gerada por uma parceria, com o Digital Brazil Project do Centro Behner Stiefel de Estudos Brasileiros da Universidade Estadual de San Diego na Califórnia, para produzir matérias sobre impactos climáticos e ação afirmativa nas favelas cariocas.
Na década de 1970, Elis Regina já cantava sobre “as águas de março fechando o verão”. O período que marca a transição das estações—do verão para o outono—é popularmente conhecido pela frequência e intensidade das chuvas. As altas temperaturas durante o verão podem ser, eventualmente, seguidas de pancadas fortes de chuva e rajadas de vento. Porém, é possível notar algo diferente nos últimos anos, algo capaz de tornar eventos naturais comuns em tragédias cada vez mais impactantes.
A cidade de Petrópolis, na Região Serrana do Rio, por exemplo, voltou a ser atingida por um forte temporal no domingo, dia 20. Em quatro horas, a cidade registrou 208 milímetros de chuva, quantidade esperada para todo o mês de março. Cinco pessoas morreram e centenas ficaram desalojadas por conta das consequências da forte chuva.
Este é o segundo temporal a atingir a cidade em pouco mais de um mês. No dia 15 de fevereiro deste ano, Petrópolis recebeu um volume de chuva recorde: 260 milímetros. Choveu em seis horas mais do que o esperado para todo o mês de fevereiro. Chover forte no verão é comum, mas a quebra de recordes em intervalos cada vez menores acende um alerta de que algo diferente está acontecendo. Segundo a Defesa Civil, a chuva do dia 15 foi a de maior volume já registrado na cidade desde 1932, quando a medição começou a ser feita pelo Instituto Nacional de Meteorologia (INMET). Até o fechamento deste texto, 234 pessoas haviam morrido em decorrência de deslizamentos, alagamentos e desabamentos provocados pela chuva. Outras três permaneciam desaparecidas.
Além do recorde no volume de chuva, o ocorrido em Petrópolis marcou também outro triste recorde: o de pessoas mortas em decorrência de temporais na cidade. A história nos mostra que episódios como esse são recorrentes na Região Serrana do Rio. Em 1988, uma forte chuva provocou deslizamentos de terra e enchentes, resultando na morte de 134 em Petrópolis. Em 2011, o rastro da tragédia entendeu-se por cinco cidades, matando 918 pessoas e produzindo cenas que, até hoje, são lembradas.
Apesar da chuva cair sobre o solo de forma indiscriminada, é nas áreas mais vulneráveis que ocorrem os maiores estragos. Do alto dos morros de Petrópolis, muitas casas foram varridas ladeira abaixo quando as encostas, encharcadas, deslizaram. Antes da lama chegar ao asfalto do centro da cidade ou da famosa Rua Teresa, muitas vidas já haviam sido perdidas no percurso dela pelas favelas da cidade.
No caso de Petrópolis, o Plano Municipal de Redução de Risco, entregue em 2017—elaborado sob os ecos da tragédia de 2011—já havia identificado mais de 27.000 casas edificadas em áreas de risco alto ou muito alto para deslizamentos de terra e enchentes. O mesmo estudo constatou, ainda, que 10% do espaço urbanizado de Petrópolis era compreendido como área de risco alto ou muito alto. Chama atenção que, mesmo após o mapeamento e análise, muito pouco tenha sido feito para mitigar os riscos às famílias que residiam nessas áreas. Das áreas mapeadas pelo estudo, aquela apontada como a de maior perigo de deslizamentos é a chamada Oswero Vilaça, onde está o Morro da Oficina, onde ocorreu o maior número de mortes na tragédia de fevereiro.
Histórias Que Se Repetem
O ocorrido em Petrópolis trouxe à memória dos fluminenses outra tragédia, que também combinou eventos naturais extremos e negligência do Estado: o deslizamento de terra que matou 48 pessoas no Morro do Bumba, em abril de 2010, na cidade de Niterói, no Grande Rio. A favela nasceu e cresceu em cima de um lixão desativado na década de 1980, tornando o solo ainda mais instável. As chuvas torrenciais que atingiram o estado do Rio no verão de 2010 causaram vítimas também na Rocinha, na Zona Sul, no Prazeres, na área Central, e no Morro dos Macacos, na Zona Norte.
Esses eventos entraram para a história do Rio e são demonstrativos do agravamento das consequências das tempestades nas periferias. Como já dissemos, a chuva cai indiscriminadamente sobre o solo, mas qual é o solo mais vulnerável a deslizamentos? Quais são as casas mais frágeis a desabamentos? Quem são as pessoas que residem mais próximo aos rios e córregos, por vezes assoreados que, com as tempestades, transbordam e, em casos extremos, criam enxurradas mortais?
Se pessoas de uma determinada classe social, gênero ou cor são mais atingidas do que outras por eventos climáticos extremos, fica evidente que há (in)justiça climática e racismo climático. Os atravessamentos sociais, políticos e econômicos que estruturam as relações de poder na sociedade também se fazem presentes no meio ambiente. Afinal, ainda que os eventos climáticos desta magnitude estejam ocorrendo em todo o planeta, é a população mais pobre que tende a sofrer mais com suas consequências. Isso acontece por estarem nas zonas mais vulneráveis, por terem menos recursos para se adaptar às novas condições climáticas, e principalmente por uma falta de responsabilização do poder público que é responsável pelo bem-estar de todos.
No Complexo da Maré, os moradores da Nova Holanda já estão habituados aos alagamentos. No território a combinação de fatores naturais e políticos convergem para uma situação frequente de prejuízos e riscos à saúde dos moradores. A área onde hoje se encontra a Maré é aterrada, era manguezal e água antes da construção da comunidade. A mudança no curso de rios e córregos, o assoreamento dos canais ainda visíveis, a ausência de espaços verdes, assim como a incapacidade das redes de esgotamento sanitário de conter a água e insuficiência na coleta de lixo deixam o território suscetível a inundações. Com chuvas cada vez mais intensas e frequentes, os alagamentos na Nova Holanda também tendem a se tornar mais intensos e frequentes, como discutiu-se no Maré de Notícias no artigo “Alagamentos na Maré: Nova Holanda ou Nova Veneza?”
Nesse mesmo verão, em dezembro de 2021, um volume de chuvas bem acima da média deixou mais de 100 cidades do estado da Bahia em calamidade. A cidade de Itamaraju, no Sul Baiano, registrou em quatro dias mais do que o dobro da chuva prevista para todo o mês de dezembro: 500 milímetros. Ao menos 20 pessoas morreram em virtude dos deslizamentos, enxurradas e desabamentos. O temporal também provocou estragos no Espírito Santo e em Minas Gerais. Mas por que tem chovido tão intensamente? Por que as consequências têm sido tão graves?
O Que Está Acontecendo com o Nosso Planeta?
Para começar, é preciso que a gente entenda o que é e como acontece o efeito estufa. Mônica Carneiro, doutora em meteorologia e professora associada da Universidade Federal Fluminense (UFF), nos ajudou a descomplicar essa discussão.
O efeito estufa é um fenômeno natural indispensável à vida no planeta. Esse fenômeno, sem interferências humanas, faz com que tenhamos uma média de temperatura nem muito quente e nem muito fria na superfície do planeta. Ele é criado pelos gases existentes na atmosfera que permitem a entrada da radiação necessária para a manutenção do aquecimento ideal à vida no planeta. Mônica explica que o efeito estufa funciona como a tampa de uma panela, que prende o calor na superfície. O problema é a intensificação desse efeito nas últimas décadas, causado, principalmente, pela queima de combustíveis fósseis por nós, humanos.
“A gente emite, cada vez mais, gases de efeito estufa na atmosfera, principalmente o CO2 [gás carbônico], mas existem outros gases também de efeito estufa. E esses gases, cada vez mais, prendem essa energia, esse calor no planeta e isso causa um aumento da temperatura global”, explicou Mônica.
Após a Revolução Industrial, por volta de 1850, houve um aumento significativo na queima de combustíveis fósseis, tanto para o funcionamento das indústrias, como para os meios de transporte, intensificando o aquecimento do planeta. “O que a gente percebe é que a velocidade com que isso [o aquecimento] tem acontecido não tem precedentes. Então, apesar de haver uma variabilidade natural da temperatura, nos últimos anos ela aumentou exponencialmente e isso bate com o aumento da emissão de gases de efeito estufa”, apontou Mônica.
Com o planeta mais quente, eventos extremos são cada vez mais comuns. Segundo a professora, com o planeta mais quente, ocorre uma evaporação maior de água dos oceanos, rios, lagos, além da evapotranspiração das plantas, então tem mais vapor d’água em suspensão na atmosfera. Mônica disse: “Quando você forma uma nuvem em um cenário de aquecimento global, essa nuvem pode ser muito mais intensa e pode chover muito mais porque tem muito mais vapor d’água naquela atmosfera”.
Para a professora, o fenômeno ocorrido em Petrópolis em fevereiro não é tão comum e foi resultado de uma junção de fatores meteorológicos, geográficos e estruturais. O vento arrastou um ar quente e úmido do oceano para a região metropolitana do Rio e, ao chegar na região, pela altitude de Petrópolis, ele subiu. “Na hora que esse ar quente úmido é obrigado a subir um relevo, ele pode formar nuvens extensas e chover muito. Então, já esperávamos que fosse ter uma precipitação em Petrópolis. O que não dá para prever é o quanto de chuva pode cair”. Ainda segundo a professora, tempestades costumam se formar em um ponto e se locomover para outro, mas o que aconteceu em fevereiro em Petrópolis foi diferente: “ela não andou, então choveu tudo aquilo em cima daquela região [específica] e em outras cidades próximas praticamente não teve chuva”, explicou a professora.
A Tempestade Pode Ser a Mesma, Mas o Barco Não É
A relação entre as mudanças no clima e seus efeitos nas periferias é atravessada por fatores diversos, que passam pelo aquecimento global e pelas políticas públicas que mitigam ou ignoram as potenciais consequências dessas tempestades nas áreas mais vulneráveis. Eu me chamo Aline Marieta, sou arquiteta-urbanista, especialista em design de interiores e conforto ambiental. Sou “cria” do Complexo da Maré e é desse lugar que discuto o papel da infraestrutura urbana em nossa reflexão.
As mortes e perdas materiais provocadas pelos eventos climáticos extremos atingem de forma mais intensa as populações mais vulneráveis: aqueles que residem nas periferias, em espaços mais suscetíveis a deslizamentos e alagamentos, regiões próximas a encostas e rios. Como lembra Mônica, “elas ocupam esses espaços porque é onde têm condições de pagar”. É também, por vezes, o território onde a família sempre morou, onde a pessoa cresceu e constituiu suas raízes materiais e simbólicas. Isso muitas vezes por ter sido o único local disponível para assentamento—exatamente pela sua vulnerabilidade—lá na sua origem.
Nesses locais, mesmo que não houvesse ninguém residindo, já ocorreriam deslizamentos naturalmente quando chovesse muito. Poderiam haver deslocamentos de massa ou, até mesmo, enchentes. De acordo com a professora Mônica, “são locais que não deveriam ser habitados, mas milhares de pessoas moram nessas áreas e estão correndo risco de perderem suas vidas quando acontece um evento desses”. Com tempo, muitos melhoram as condições do local para moradia, mas nem sempre ao ponto de garantir sua segurança.
“As populações mais vulneráveis vão sempre sofrer mais porque elas têm menos dinheiro para se reerguer. Por exemplo, um furacão que atinge Miami tem efeitos bem diferentes daqueles que acontecem na República Dominicana, no Haiti ou em Cuba. Pode ser um furacão com a mesma intensidade, porém a população seria atingida de maneiras diferentes em relação à vulnerabilidade, de terem para onde ir… Então, é uma conta injusta como várias outras que, infelizmente, a gente percebe na nossa sociedade.” — Mônica Carneiro
Alguns desses eventos são inesperados, mas muitos poderiam ser evitados ou ter suas consequências mitigadas. O sistema de alerta por sirenes, implantado em diversas comunidades do estado do Rio, se propõe a ajudar os moradores a entenderem o momento de saírem de casa em busca de um ponto seguro. Contudo, para ser uma medida efetiva, precisa de organização e infraestrutura, senão as pessoas não terão para onde ir quando a sirene tocar.
Seria necessário que existissem políticas públicas voltadas à assistência da população, sobretudo dos mais vulneráveis. Se as chuvas estão cada vez mais intensas, seria necessário repensar o sistema público de drenagem das vias, por exemplo. Isso é mitigar as consequências. No atual momento dessa emergência climática global, os anseios são por ações concretas em duas frentes: redução das emissões dos gases de efeito estufa, para frear o agravamento do cenário; e planejamento e adaptação dos Estados, para proteger a população, reduzir as perdas e recuperar-se de forma mais fácil e rápida após um evento extremo.
Existem alguns dispositivos voltados a ajudar a população lidar com essas situações, mas poucos sabem de sua existência, muito menos de como acessá-los. Um exemplo disso é a Lei 11.888, de dezembro de 2008, que assegura às famílias de baixa renda assistência técnica pública e gratuita para o projeto e a construção de moradia. O artigo 2º dessa lei diz que essa assistência “abrange todos os trabalhos de projeto, acompanhamento e execução da obra a cargo dos profissionais das áreas de arquitetura, urbanismo e engenharia necessários para a edificação, reforma, ampliação ou regularização fundiária da habitação”. Essa lei é um exemplo de proposta para mitigar os danos causados pelos eventos climáticos extremos, ao garantir mais segurança estrutural às moradias. A medida, no entanto, esbarra no desconhecimento público e, sobretudo, no desconhecimento ou má vontade política de implementar a lei nos municípios por meio das secretarias de habitação de cada cidade. É necessário não só lutar por legislações como essa, mas pressionar os órgãos públicos por sua implementação de fato.
Calor extremo, secas prolongadas e mais severas, chuvas mais intensas, extinção de espécies e dificuldade no cultivo de alimentos são algumas das consequências que o país enfrentará até 2050 se nada for feito. A informação faz parte das análises de cenários contidas no 6º Relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas da ONU (IPCC), divulgado em fevereiro de 2022. A adaptação das cidades é uma necessidade do presente, em um cenário onde os eventos imaginados para o futuro estão cada vez mais próximos. Como parte mais vulnerável das cidades, favelas e periferias possuem características específicas e precisam ser vistas como prioridade.
Sobre a autora: Aline Marieta, 32 anos, é arquiteta e urbanista. Nascida em São Paulo, foi criada nas favelas da Zona Norte do Rio e hoje mora no Complexo da Maré. É criadora do @edificandodecoracao e membro do coletivo Eco Maré, que visa levar para a favela a temática ambiental e conscientizar os moradores sobre a importância desse tema.