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Sigla de três letras de abreviação de Complexo do Alemão, “CPX”, é usada pela extrema-direita como fake news em ação racista ao associar Lula e moradores de favela ao crime organizado.
Há pouco menos de uma semana do segundo turno das eleições de 2022, o Complexo do Alemão, conjunto de 13 favelas na Zona Norte do Rio de Janeiro, tornou-se mais uma vez um dos assuntos mais comentados no Brasil no Google Trends.
O ex-Presidente Lula participou de ato de campanha no Complexo do Alemão. Ele esteve na sede do jornal Voz das Comunidades, localizado na parte baixa dos arredores do Morro do Adeus, em um encontro com mobilizadores e lideranças comunitárias de favelas. Em seguida, realizou a caminhada na Estrada do Itararé, com milhares de moradores do Complexo e de bairros vizinhos, além de ativistas de diversas correntes políticas e movimentos sociais. Durante a caminhada, Lula ganhou um boné, onde estava escrito CPX, abreviação afetiva de Complexo do Alemão. O momento em que Lula ganha o boné de presente foi transmitido ao vivo no YouTube.
A Estrada do Itararé é a principal via que corta o bairro de Ramos em direção a Inhaúma e que dá acesso às favelas do CPX. Trata-se de uma via com pontos de ônibus, taxis e carros de aplicativo, com escolas, Unidade de Pronto-Atendimento (UPA), supermercados, bares e restaurantes. Portanto, o ex-Presidente Lula ficou “nos acessos”, como falam os crias do CPX e de outras favelas do Rio.
No entanto, na construção das fake news, a extrema-direita tentou emplacar a teoria de que CPX, ao invés de complexo, representaria o termo “cupinxa”, que significa, na grafia correta da palavra, com “ch” (cupincha), “um indivíduo com quem se tem amizade, companheirismo, um camarada”, e que o boné representava uma ligação entre Lula, os moradores do Complexo do Alemão e o tráfico de drogas.
Trata-se de uma prática de criminalização dos trabalhadores, da pobreza, de cunho racista—uma vez que majoritariamente a população das favelas é negra—conforme criticou a jornalista da GloboNews, Flávia Oliveira.
“Criminalizar a CPX, que o Rio sabe que é abreviação de Complexo do Alemão, é horror à favela. É racismo. Não tem outro nome.”
É importante notar que o uso da sigla CPX é comum, já foi usada inclusive em postagens feitas pela Polícia Militar do Rio de Janeiro para se referir aos complexos de favelas. Em post publicado em 2017, a PMERJ usou a sigla para se referir ao Complexo da Penha.
A sigla ainda aparece na Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2023 do Estado do Rio de Janeiro e até em músicas que citam as comunidades. E mesmo assim, observou-se, na reta final da corrida eleitoral, o presidente fazendo declarações públicas de racismo, criminalização da pobreza e estigmatização da favela.
Revoltado com as falas do presidente, um morador do CPX denunciou Bolsonaro (PL), candidato à reeleição, no Supremo Tribunal Federal (STF) por crime de injúria. Afirma a defesa do morador em um dos trechos da ação:
“Trata-se de Ação Penal que visa condenar [Bolsonaro] pelo crime de injúria, uma vez que a associação indevida da sigla ‘CPX’—que, na verdade, representa a expressão ‘Complexo de Favelas’—diretamente a traficantes e ao crime organizado é uma grave ofensa à reputação dos moradores do Complexo do Alemão.”
A queixa-crime foi protocolada no dia 21 de outubro e será relatada pelo Ministro do Supremo Ricardo Lewandowski. Na ação, a defesa do morador afirma que Bolsonaro cometeu crime ao associar a sigla CPX, que é a abreviação de Complexo de Favelas, ao crime organizado.
No processo, o morador classifica o discurso de Bolsonaro como preconceituoso, baseado em fake news e desinformação. Ele cita como argumento a confusão do presidente, que trocou o Complexo do Alemão pelo Complexo do Salgueiro durante debate eleitoral em rede nacional, na tentativa de ligar a visita de Lula à comunidade ao crime organizado. Na ocasião o Bolsonaro disse:
“Eu conheço o Rio de Janeiro, o senhor esteve no Complexo do Salgueiro. Não tinha um policial do seu lado, só traficante. Tanto é verdade sua afinidade com traficantes e bandidos que nos presídios do Brasil, a cada cinco votos, você teve quatro.”
“Essas declarações preconceituosas, proferidas inclusive em rede nacional, colocam ainda mais à margem da sociedade milhares de pessoas honestas que residem na região—e que muitas vezes também são vítimas de violência”, informa um trecho do documento.
E complementa:
“Ressalte-se que o presidente, apesar de afirmar que conhece o Rio de Janeiro, confundiu o Complexo do Salgueiro com o Complexo do Alemão—onde de fato foi realizado o evento ao qual ele se referia. Mas o pior de tudo foi que, mesmo depois de ter tido tempo suficiente para se informar sobre o real significado de ‘CPX’, [Bolsonaro] continuou desqualificando durante o debate todos os moradores e participantes do ato realizado na agenda de campanha do candidato Lula, afirmando que ao lado dele só havia ‘traficante’.”
https://twitter.com/eurenesilva/status/1581797146516664321
Em entrevista ao RioOnWatch, Rene Silva, fundador do jornal Voz das Comunidades, afirmou que a declaração de Bolsonaro quer usar o preconceito da sociedade contra a favela e os pobres para ganhar votos. No entanto, Rene acredita que a maior parte da população não concorda com essa discriminação.
“Não me admira essa declaração do Bolsonaro. Pelo simples fato dele sempre ter deixado claro que não gosta de pessoas pobres. Ele foi contra todos os programas sociais, até que usou como estratégia política para tentar votos. Mas antes mesmo dele ser eleito no primeiro turno, era contra o Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida e diversos programas criados pelo PT. Eu acredito que muita gente não pensa dessa forma. Então, vendo um presidente que pensa assim, é tempo de repensar seu voto.”
A disseminação das fake news sobre a sigla CPX segue a estratégia da repetição em diferentes redes de distribuição de conteúdo, usada pela campanha de Bolsonaro ao longo do primeiro e segundo turnos. As equipes jurídicas dos dois presidenciáveis têm travado batalhas no Tribunal Superior Eleitoral por publicações e programas devido ao uso de fake news. Ao todo, foram 72 decisões favoráveis à campanha de Lula, contra seis a favor de Bolsonaro.
Nesse embate, as favelas do Rio de Janeiro, especialmente o Complexo do Alemão, vêm sendo alvo da desinformação, criminalização, preconceito social e racismo estrutural, em conteúdos falsos que ligam Lula e os moradores ao crime.
Entre o dia 12 de outubro—data da visita do candidato do PT—e dia 13, posts fazendo essas falsas associações somaram ao menos, de acordo com levantamento feito pela Agência Aos Fatos, 345.000 curtidas no Instagram, 54.000 interações no Facebook, e 42.000 no Twitter.
No Instagram e no Facebook, segundo Aos Fatos, a mentira foi disseminada em posts da Deputada Federal Carla Zambelli (PL-SP) e do Senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), coordenador da campanha à reeleição de seu pai. Em 17 de outubro, a Ministra Carmem Lúcia, do STF, determinou que o Twitter removesse a publicação do senador Flávio Bolsonaro.
De acordo com a advogada Letícia Mounzer, responsável pela ação, a queixa-crime “reitera que as falas de Bolsonaro não são acobertadas pela liberdade de expressão, já que ele agride a honra do autor da queixa-crime e de todos os moradores do Complexo do Alemão, induzindo seus seguidores a acreditarem que todos os moradores de comunidade têm envolvimento com o crime”, descreve em entrevista a O Dia. Afirma trecho da ação:
“Acontece que, na contramão das falas do [Bolsonaro], a população se reunia pacificamente, sem armas, em ato que transcorreu dentro da legalidade. Noutro viés, merece destaque que se estima existirem no Complexo do Alemão cerca de 300 fuzis. Ou seja, o total de traficantes que atuam na região é bem pequeno em cotejo com a população local de 250.000 habitantes.”
Pede-se à justiça, a condenação à pena máxima, segundo o artigo 140 do Código Penal, que prevê detenção de um a seis meses, ou multa, “com a causa de aumento de pena ao triplo, do art. 141, inciso 2º, do Código Penal, já que o crime também foi divulgado nas redes sociais”. A ação pede ao STF que o valor de uma eventual multa seja encaminhado para organizações de combate à violência no Complexo do Alemão.
Como Surgiu a Fake News do Boné do CPX?
A narrativa ligando Lula ao crime organizado começou a ser construída no começo de outubro, às vésperas do primeiro turno, utilizando informação de divulgação proibida pelo TSE, conforme publicou a Agência Pública.
Um áudio manipulado associa Lula ao chefe do PCC: Marcola. Porém, o “Marcola” citado por Lula na gravação de 4 de abril desse ano, é o sociólogo Marco Aurélio Santana Ribeiro, assessor do PT, e não a Marco Williams Herbas Camacho, o traficante, que está preso.
Em 8 de outubro, o próprio presidente Bolsonaro publicou novamente a fake news em sua conta no Twitter. Entre o último debate antes do primeiro turno e o dia do pleito, Bolsonaro atribuiu a Lula a pecha de criminoso em ao menos 34 ocasiões, como apurou Aos Fatos, com base na ferramenta Banco de Discursos. No entanto, essa narrativa ganhou mais força após o ex-presidente visitar o Complexo do Alemão.
O ato foi realizado através da organização comunitária voluntária de mobilizadores e lideranças comunitárias do Complexo do Alemão e de diversas favelas e movimentos sociais, em conjunto com a Prefeitura do Rio, secretarias municipais e Guarda Municipal. Ao longo do percurso, a Polícia Militar e a Polícia Federal escoltaram o ex-presidente.
Durante a caminhada, no dia 12, o Complexo do Alemão teve 68% de menções positivas, impulsionadas pelo sentimento de “expectativa, confiança e alegria”, conforme analisado pelo mestre em Ciências, Arcelino Neto.
Porém, no dia 13, o CPX apareceu entre os tópicos mais falados no Twitter, contudo, desta vez, a partir de posts que criminalizavam os moradores do Complexo do Alemão e que associavam Lula e as lideranças da comunidade ao Comando Vermelho.
O especialista em análise de redes sociais divulgou que o ato: “mobilizou 48.975 contas [Twitter], 203.566 interações, 1.175.670 curtidas e chegou ao 1º lugar dos assuntos mais comentados do Brasil. O motivo do expressivo volume de interações foi a presença do Presidente Lula no CPX (Complexo)”.
E completou: “O engajamento bolsonarista com tags da esquerda foi atípico, pois contou com participação de 17.456 (35,6%) contas e 50.976 (25,0%) interações. Eles perceberam a importância do ato, nas ruas e redes sociais e passaram a criar diversas fake news“.
Jaqueline Santos, moradora do Complexo do Alemão, afirma que passou a madrugada respondendo comentários de apoiadores do Bolsonaro no Twitter, na tentativa de contar a verdade sobre o ato:
“Nossa, eu tinha tido um dia lindo. Um feriado incrível com a vinda de Lula aqui. Toda a minha família foi. Afinal, é o primeiro candidato à Presidência da República que vem aqui, falar com o povo da favela. Aí, quando entrei no Twitter, começou um pesadelo. Vi aquela quantidade de mentiras. CPX sempre foi abreviação de Complexo do Alemão. Faz parte da nossa identidade. É comum todo mundo falar assim aqui.”
No entanto, ainda no dia 10 de outubro, as fake news sobre a visita ao CPX começaram, como reportou o Voz das Comunidades. Portanto, a criminalização dos moradores de favela e do ex-Presidente Lula realizada pela campanha da extrema-direita não foi um acaso em decorrência da sigla CPX. Trata-se de uma estratégia da campanha bolsonarista.
Em contrapartida, Rene Silva, Camila Moradia, Raull Santiago, além de jornalistas de diferentes veículos de mídia, produziram matérias informando a população sobre esta mentira. Personalidades se engajaram para produzir conteúdos desconstruindo a narrativa criada por essa fake news. A hashtag #CPXMereceRespeito se tornou uma das formas de contranarrativa à criminalização da pobreza e ao racismo neste episódio.
Ainda, o ministro do TSE, Paulo de Tarso Sanseverino, determinou a remoção de publicações de perfis de apoiadores de Bolsonaro que afirmam mentiras sobre a sigla “CPX”. O ministro deu cinco horas para o Twitter remover as falsas notícias sob pena de multa diária de R$50.000, conforme noticia os portais Jota, Jornal do Brasil, CNN Brasil, Estadão, entre outros.
Boné CPX: Criminalização a Símbolos de Resistência
O boné do CPX virou moda, usado por moradores do Complexo do Alemão e de outras favelas, parlamentares e até artistas, como Xuxa Meneghel, Felipe Neto, e Camila Pitanga. Seja no Twitter ou no Instagram, a pergunta de “geral”, como se diz na favela, tem sido a mesma: “gente, onde eu consigo o boné do CPX do Alemão. Onde eu encontro? Alguém sabe?”.
O Voz das Comunidades pegou carona no sucesso e está dando o boné para quem doar uma cesta básica. Aqueles que colaborarem doando uma cesta básica no valor de R$150 ou mais ajudam famílias do Complexo do Alemão e recebem um boné como forma de agradecimento.