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No sábado, dia 28 de janeiro, aconteceu a terceira e, por enquanto, última edição do projeto A Hora do Cine, em Cavalcanti, na Zona Norte do Rio de Janeiro. O evento foi realizado em parceria pelo Coletivo Primavera e Coletivo Agbara, por intermédio do edital Agenda Rio 2030, lançado pela Casa Fluminense para apoiar iniciativas articuladas no Grande Rio, organizadas a partir das justiças econômica, racial, de gênero e climática, com uma abordagem intersetorial e interseccional.
O projeto A Hora do Cine é uma ação de cineclube desenvolvida por moradores das favelas de Cavalcanti, principalmente do Morro da Primavera, para promover cultura e educação entre as crianças e adolescentes da região. Teve sua primeira edição em novembro de 2022 no alto do morro e sua última edição na Rua Tumucumaque. O projeto tem como objetivo exibir filmes com os temas de justiça racial e de gênero. No último evento, foram exibidos os filmes: Os Indígenas – Raízes do Brasil e Dúdú e o Lápis Cor da Pele.
Nesta edição, cerca de 30 crianças de diversos pontos da comunidade estiveram presentes. Além dos filmes e do tradicional lanche, os pequenos também se divertiram com músicas, pintura facial e fazendo desenhos com materiais oferecidos pelo projeto. Entre um filme e outro, voluntários dos coletivos Primavera e Agbara faziam pequenas falas explicativas sobre a importância da promoção do debate racial, sobretudo para o público infanto-juvenil e em territórios de maioria negra.
Como em grande parte das Zonas Norte e Oeste, em Cavalcanti também não há opções de cinema. Os moradores têm que ir até bairros vizinhos como Madureira ou Cachambi para conseguirem usufruir de uma sala de exibição. Além da distância, o custo da sessão, do transporte e da alimentação podem tornar inviável assistir a um filme. E, além da falta de acesso a cinemas que exibem blockbusters, produções cinematográficas de grande sucesso de bilheteria, quando se trata de filmes infanto-juvenis, que pautam debates sociais, o quadro é muito pior: é preciso se deslocar até centros culturais e cinemas da Zona Sul e Centro. Por isso, ações como A Hora do Cine são muito importantes em territórios culturalmente negligenciados pelo Estado.
Em entrevista, os organizadores do A Hora do Cine compartilharam a importância da ação no território, ao pensar na representatividade negra e em como construir outro imaginário sobre as favelas, enquanto territórios de produção e consumo de cultura e arte. Foram entrevistados Suellen Souza, 25, aluna de pedagogia da UERJ e professora de ensino infantil, co-fundadora do Coletivo Primavera; Juliana Andrade, 22, estudante de direito da UERJ e membro do Coletivo Agbara; e Matheus Fernando, 23, estoquista, membro do Coletivo Primavera.
“A sessão de hoje teve um gostinho especial para mim, porque foi no lugar onde eu nasci e tenho vivido até hoje. Eu tenho 25 anos e foi no meu morro [em que o projeto] A Hora do Cine foi pensado, para ser itinerante e ao ar livre. Nosso intuito com o projeto sempre foi que ele acontecesse nas praças e ruas, para que a gente pudesse ocupar esses espaços com cultura, arte e educação, pensando na promoção da justiça racial.” — Suellen Souza
“A gente pensou, na verdade, em um projeto que falasse sobre arte e cultura aqui no território de Cavalcanti, que é majoritariamente negro, então falar de arte e cultura não poderia ser algo apartado também do tema racial… A gente entende que é importante subverter essa lógica que é propagada hegemonicamente de que as favelas só produzem o mal. A gente está aqui para provar que a gente tem produzido várias outras coisas, inclusive saberes.” — Juliana Andrade
“O cinema está escasso também para nós, que somos adultos. Eu não estou na faculdade, então pago inteira. A meia-entrada já está cara [imaginem a inteira]! Vamos dizer que tu vá em família, um pai ou uma mãe mais duas crianças. Não dá para o cara sair e levar pro cinema menos de R$150. Entre lanche, passagem e o cinema, isso custa dinheiro. Quando a gente traz o cinema para o nosso bairro, para a nossa favela, a gente acaba matando a corporação do próprio cinema, que criou isso de que a gente tem que ir a um cinema dentro de um shopping, consumir da praça de alimentação e das lojas do shopping, [o que] vai ser gasto para caramba. [Quando, em resposta a isso] a gente pode vir com um projetor e tacar [o filme] na parede, a gente monta um cinema para muitas crianças e tudo de graça!” — Matheus Fernando
O Estado falha em diversos aspectos por se fazer muito presente só através das forças de segurança, fato que já atrapalhou, inclusive, as atividades culturais e artísticas do A Hora do Cine. No sábado, 28 de janeiro de 2023, dia deste evento, enquanto era organizado o local para a exibição dos filmes, um caveirão, veículo blindado da Polícia Militar, entrou na favela atirando.
“No meio da chuva, a gente ainda contou com a entrada do caveirão na nossa comunidade, na hora que a gente estava montando o telão. A gente saiu correndo, porque ‘a bala comeu’, no português mais claro. A gente teve que se abaixar.” — Suellen Souza
Tiros disparados pelo Estado não são fato incomum na região. Em agosto de 2022, três dias após uma ação dos coletivos Primavera e Agabara no alto do Morro da Primavera, a polícia esteve no morro e matou uma pessoa. Na edição de Natal do A Hora do Cine, um caveirão estava na entrada da favela, enquanto lá dentro as crianças brincavam, assistiam a filmes e tiravam fotos com o Papai Noel.
“De uma forma geral, a gente vê que o Estado só está presente quando é para fazer guerra e para produzir morte. Hoje, por exemplo, na atividade de encerramento [do A Hora do Cine], os tiros que tiveram foram por conta de um caveirão, que chegou ali na esquina e simplesmente deu tiros. Toda a equipe de voluntariado, todo mundo que estava presente, teve que se esconder. Então, a gente vê que a presença [do Estado] só se faz nesses nesses momentos.” — Juliana Andrade
Coletivos Primavera e Agbara: Cultura de Morador para Morador
O Coletivo Primavera começou pela necessidade apresentada na pandemia, onde as favelas eram as áreas mais afetadas e não tinham a devida atenção do poder público. Nesse contexto se iniciaram ações para organizar arrecadações e doações de cestas básicas e kits de higiene. Em seguida, outras ações começaram a ser feitas, como na área da educação e da cultura. O coletivo é formado por pessoas que moram nas favelas da região de Cavalcanti.
“Quando a gente se junta e faz um coletivo, é meio que acabar com esse abandono que a gente sente. Eu não estou sozinho nesse mundo que eu quero mudar… A gente faz um bagulho diferente, um cineminha para as crianças, uma entrega de cesta básica. O morador já fica pensando, ‘pô, já não estou tão sozinho’.” — Matheus Fernando
O Coletivo Agbara é construído por mulheres negras e atua na promoção de ações que afetem positivamente comunidades negras. Com atuação nacional e principalmente no Rio de janeiro, o Coletivo Agbara se uniu ao Coletivo Primavera em ações ao redor do território de Cavalcanti.
“O Coletivo Agbara atua onde a gente vê que é estratégico para a população negra como um todo.” — Juliana Andrade
“Eu gostei muito [do A Hora do Cine], principalmente porque é uma ação que não tem [igual] por aqui. Aqui não tem nada… Sou nascida e criada aqui há 30 anos.” — Thaine Maria, voluntária que fez as pinturas artísticas nas crianças presentes.
Em Cavalcanti e no Morro da Primavera, os moradores são peça fundamental na realização das ações sociais. O Coletivo Primavera, assim como outros coletivos de favela, segue a lógica do nós por nós em suas atividades. Ajudam a construir o evento ali, na hora, na organização ou até mesmo fornecendo apoio estrutural. Seja em edições que aconteçam no alto do morro ou na Rua Tumucumaque, sempre existe apoio dos moradores. Nesse evento de sábado, 28 de janeiro, a moradora Fabiane Martinelli, mais conhecida como Dona Fabiane, cedeu as cadeiras do seu trailer para a sessão na rua. Outras moradoras trabalharam como voluntárias no evento, como a Thaiane Maria, 30, que fez pintura facial nas crianças, e a Lorhany Miguel, 29, que fez algodão doce após a sessão. Lorhany, além de voluntária, é mãe do pequeno Jordan Oliveira, 6, que sempre frequenta as atividades do Coletivo Primavera.
“Eu acho muito legal, porque eu amo essa festa. É muito animada, tem desenho, tem tudo! Isso é que é vida.” Jordan Oliveira, 6 anos
Segundo moradores e mães da comunidade, como Lorhany, Dona Fabiane e Thaiane, A Hora do Cine é muito mais do que um projeto de exibição de filmes em favelas. Ele contrói possibilidades futuras e novas subjetividades, ao conferir novas visões sobre si a crianças que, em geral, têm o direito à autoestima negado.
“Eu acredito que o projeto chegou na comunidade numa hora excelente. A gente vê que tem muitas crianças que não conhecem a representatividade, que é passada em um desenho ou em um filme. E eu tenho isso comigo. Eu sempre tento mostrar ao meu filho Jordan, de 6 anos de idade, o que é representatividade, o que é ver um desenho representar a sua origem, a sua perspectiva de vida.” — Lorhany Miguel
Vinícius Ribeiro é nascido e criado na Zona Oeste, entre a Estrada da Posse, em Santíssimo, e o Barata, em Realengo. Atualmente mora na Ladeira dos Tabajaras. Jornalista, cineasta e fotógrafo, é membro do Coletivo Fotoguerrilha. Assina direção e roteiro dos curtas Sobreviver, Dame Candole, Sob o Mesmo Teto e Entregadores. Atualmente, está em um projeto sobre uberização e precarização do trabalho.