Click Here for English
O curso de pesquisa “Monitorando a Justiça Hídrica e Energética nas Favelas” começou a ser concebido pelos coletivos do Painel Unificador Covid-19 nas Favelas (PUF)* no final de 2020, quando perceberam que haviam, juntos, coletados tantos dados sobre a situação da pandemia da Covid-19 nas favelas, e construído novos e importantes conhecimentos, e que não deveriam parar por ali. Um aprendizado chave foi o porquê ser importante as favelas tomarem as rédeas das pesquisas sobre elas mesmas. Com isso, os coletivos e grupos envolvidos, junto da Rede Favela Sustentável (RFS)* e de várias instituições parceiras, propuseram e consequentemente construíram o curso, ao longo de 2021, realizado em sequência em 2022.
O projeto do curso foi realizado entre março e setembro de 2022 e contou com a participação de 30 jovens e 15 lideranças, de 15 diferentes territórios do Grande Rio. O objetivo era desmistificar o processo de coleta e compreensão de dados. Isso ajuda a garantir o próprio controle na geração de dados e seu uso. As mais de 50 aulas foram realizadas duas vezes por semana, ministradas de forma online por aliados técnicos da RFS e sua equipe de gestão, e contando também com quatro encontros presenciais de dia todo. A estrutura do curso passou por todos os passos de planejamento, execução e incidência política de uma pesquisa, construindo os indicadores de forma coletiva, pelas organizações participantes. Deste modo, o resultado final não se resume aos relatórios de pesquisa, mas, sobretudo, a todo o processo de construção e realização do curso, que transformou seus participantes, e que está registrado no documentário Conheça o “Curso Monitorando a Justiça Hídrica e Energética nas Favelas”.
O curso passou pelos seguintes módulos: (1) A importância de pesquisas pelas e nas favelas; (2) O que é justiça energética e hídrica em relação aos temas de acesso, qualidade e eficiência; (3) A definição dos indicadores de acordo com prioridades dos territórios; (4) A coleta de dados em campo; (5) A análise e compreensão de dados e identificação de dados-chave; (6) Como incidir politicamente com os dados coletados; (7) Como realizar a relatoria, tanto popular, quanto técnica, e (8) como comunicar os dados para os devidos fins, de incidência política e conscientização popular. Alan Brum, que introduziu o curso, e do projeto Raízes em Movimento, do Complexo do Alemão, afirma que:
“A falta de dados nas favelas reflete na ausência de políticas públicas estruturantes e sobre a importância de produzir dados sobre a realidade da favela através de como ela é percebida pelos próprios moradores.” — Alan Brum
No primeiro módulo do curso, foi debatida a relevância da geração cidadã de dados nas favelas, ou seja, a importância das favelas produzirem seus próprios dados. Ao longo do módulo, foi visto como a ausência de dados das favelas faz parte do processo histórico e seletivo da ausência do Estado nas mesmas. Assim como outros direitos—tais como saúde, educação, saneamento, segurança, e mobilidade—são precarizados nas favelas, a produção de dados sobre esses serviços e outros desafios das favelas são igualmente escassos. Essa ausência de dados sobre a realidade das favelas funciona, então, como uma engrenagem de um ciclo vicioso, no qual não se quantifica o problema ou sua extensão e, consequentemente, não são desenvolvidas as ferramentas adequadas para resolvê-lo. A importância da geração de dados por e para as favelas é para romper esse ciclo, produzindo dados a partir das favelas para mensurar aquilo que as comunidades entendem como seus desafios e, a partir desse diagnóstico, propor ao poder público soluções adequadas às suas realidades. Novamente, o nós por nós preenchendo a lacuna do Estado. Nesse módulo entendemos como gerar dados a partir das favelas é um mecanismo de luta, de disputa política e de participação democrática da favela.
Uma vez tendo debatido a importância da autonomia na geração de dados, o curso entrou no módulo da justiça energética e hídrica, observando esse tema sob a ótica do acesso, da qualidade e da eficiência. Nesse sentido, buscou-se fortalecer a noção de água e energia elétrica como direitos e o entendimento de que sua privação é uma violação de um direito. Compreende-se que não basta ter o acesso, já que este deve vir acompanhado da segurança de que se cumpram diversos parâmetros de qualidade e eficiência. Ao longo do módulo, Alexandre Pessoa, da EPSJV/Fiocruz, falou sobre o caminho das águas, sobre os fatores e atores envolvidos nas múltiplas acessibilidades da água e também sobre os parâmetros da qualidade do serviço e sobre as obrigações da concessionária. Amanda Ohara, do Instituto Clima e Sociedade (ICS), trouxe a discussão sobre energia elétrica, cobrindo o sistema elétrico brasileiro, como a energia chega nos lares das pessoas, as agências de controle, a composição da conta de luz e a Tarifa Social de Energia Elétrica (TSEE).
Por fim, Katriana Dubytz e Colin Taylor, do CLASP, delinearam o papel da eficiência energética, aproximando de organizações e coletivos de favela a temática. Foi uma discussão que incluiu o cotidiano da favela, tanto para pensar os desafios desses locais, quanto suas potencialidades. O módulo fortaleceu a perspectiva de água e luz como direitos e, ao mostrar como os serviços devem ser prestados, jogou luz sobre a situação de injustiça hídrica e energética que as favelas vivem.
O módulo seguinte destinou-se a construir o questionário eletrônico de pesquisa que foi aplicado na vizinhança, de casa em casa, nas 15 comunidades participantes do curso. O questionário e os indicadores da pesquisa foram construídos coletivamente ao longo desse módulo, pensando nas especificidades de cada território e nas possibilidades de comparações. Já que a pesquisa era um produto do curso, o questionário deveria partir dos interesses e demandas que seus participantes tivessem, contemplando o acesso, a qualidade e a eficiência de água e de energia. Todo o processo de construção das perguntas, opções de respostas, extensão, anonimato dos respondentes, acessibilidade e compreensão de questionários foram debatidas em aulas até uma versão teste. Com esta versão produzida aconteceram treinamentos de aplicação do questionário, realização de teste presencial e dinâmica de compartilhamento da experiência no campo.
O questionário foi revisado coletivamente até a sua versão final, que totalizou cerca de 60 perguntas, com um tempo de aplicação de aproximadamente 15 minutos. Após a versão final, foram realizadas discussões com o objetivo de garantir que todos os alunos do curso se apropriassem do questionário. Neste módulo, foram utilizados mapas das 15 comunidades, divididas por seus setores censitários, de modo que todos os setores fossem contemplados com pelo menos um domicílio na pesquisa, buscando assim uma diversidade geográfica representada das favelas. O trabalho com os mapas foi feito pela pesquisadora colaboradora do curso, Renata Gracie, do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (ICICT), da Fiocruz.
O curso seguiu com a coleta de dados realizada nos 15 territórios. No total, foram 45 pesquisadores em campo, responsáveis por preencherem cerca de 1.200 questionários domiciliares, por volta de 75 por território. Ao longo da aplicação dos questionários, nos encontros semanais do curso, os alunos-pesquisadores relatavam as dinâmicas do campo. Tratando-se de uma pesquisa em favela, realizada por organizações locais, foi um momento muito especial de aproximação e construção de laços entre as organizações e suas próprias comunidades. Todos passaram a ter mais conhecimento sobre o próprio território e aproximaram-se mais de outros moradores. Diversos alunos-pesquisadores relataram o ânimo da comunidade em ser ouvida. Alunos da Cidade de Deus compartilharam, por exemplo, novas descobertas sobre sua própria favela.
“Ontem, saímos [para] fazer a pesquisa. Aqui na CDD, tem um rio no meio, que divide a região entre melhor e pior. E aí, ontem, fomos na outra parte, do outro lado do rio, e lá encontramos uma senhora que não tem acesso nenhum à água. A gente sabia que era uma área muito precária, mas não sabíamos o quanto.” — Caio Henrique
A pesquisa não passou ilesa aos desafios que os territórios enfrentam. A fase de campo foi atrasada em virtude do contexto de (in)segurança pública vivido em algumas dessas localidades. Dos 15 territórios participantes, três deles passaram por graves problemas que demandaram a extensão da fase de campo. O Complexo da Penha passou por operação policial que deixou 23 pessoas mortas. O Jacarezinho ainda está sob ocupação da PM pelo projeto Cidade Integrada. E o Morro dos Macacos sofreu com constantes tiroteios entre facções rivais, que disputavam o controle da favela. Este processo mostra que quando há autonomia local, apesar dos desafios, há produção de dados pela favela. Mesmo com as intercorrências de insegurança pública, a pesquisa foi conduzida em todas as favelas participantes do curso.
Com os dados coletados, deu-se início ao módulo de análise. O objetivo do módulo foi que os alunos-pesquisadores acompanhassem e se capacitassem no processo de análise dos dados por eles recolhidos, através da apresentação de algumas das noções e conceitos basilares de análise de dados. Primeiramente, foram introduzidos alguns conceitos fundamentais, tais como os tipos de dados, algumas medidas, como proporção, média e mediana, e algumas ferramentas de análise. Também foram introduzidos conceitos importantes como amostra, inferência e apresentadas algumas armadilhas que pesquisas e propagandas usam para tentar distorcer dados ou ganhar legitimidade científica usando dados limitados. Este módulo falou, também, sobre o Sistema Estatístico Nacional (SEN), coordenado pelo IBGE, indicando a importância das estatísticas públicas e apresentando algumas das principais pesquisas nacionais. Destacando a metodologia utilizada pelo instituto no que tangem às favelas e seu entendimento delas como “aglomerados subnormais”, o curso teceu críticas voltadas ao aprimoramento e à democratização do IBGE, sem com isso negar a sua importância.
No módulo seguinte, foi trabalhada a incidência política a partir do resultado da análise dos dados. A geração cidadã de dados nas favelas é um mecanismo que busca a transformação social, neste caso, a luta pelo direito à água e à luz, pensando em acesso, qualidade e eficiência. O módulo da incidência política contou com a contribuição de Henrique Silveira, da Casa Fluminense, e do Vinícius Lopes, do DataLabe. Ao longo do módulo, foram selecionados pelas comunidades participantes os dados mais emblemáticos e importantes a serem trabalhados. E foram discutidas quais intervenções de políticas públicas eram desejadas e poderiam ser propostas a partir destes dados. Todos os participantes foram incentivados a refletir sobre quais seriam os caminhos possíveis para materializar essas soluções. Para contextualizar o processo de incidência na temática da água e da energia elétrica, os parceiros do CLASP, Colin Taylor e Katriana Dubytz apresentaram uma visão geral do cenário de políticas de eficiência energética no Brasil, incluindo quem são as partes interessadas, histórico de vitórias e desafios.
O penúltimo módulo do curso foi sobre comunicação de dados e a produção do relatório do curso. Tendo os dados analisados e entendendo que tipo de incidência política era desejada, bem como quais caminhos percorrer, esse módulo trabalhou o aspecto de comunicação dos dados. Foram compartilhadas estratégias de comunicação, pensando favelas e periferias, como definir seu público-alvo, como tornar o conteúdo de uma pesquisa acessível, quais elementos estéticos podem ser usados para tornar os dados mais atrativos para o público, entre outros. O módulo contou com mediação de Polinho Motta, do DataLabe, e de Bruno Sousa, do LabJaca, apresentando exemplos e estratégias de comunicação periférica online e offline. Também nesse módulo, foram debatidos os elementos gráficos e escolhidos coletivamente os dados contemplados no relatório da pesquisa.
No último módulo do curso, o foco foi a realização da coletiva de imprensa para o lançamento do relatório “Justiça Hídrica e Energética nas Favelas: Levantando Dados Evidenciando a Desigualdade e Convocando para Ação”. Assim como todo o processo da pesquisa, a coletiva de imprensa também foi uma tarefa realizada coletivamente. Os próprios alunos definiram, em conjunto, como seria a apresentação dos dados, quem apresentaria e de qual forma. Antes da coletiva, foram realizados ensaios e preparações, até que, no dia 22 de setembro de 2022, aconteceu o evento de lançamento dos dados com a coletiva de imprensa.
Durante a coletiva, os jovens apresentaram o relatório da pesquisa destacando os dados centrais em sua perspectiva, compartilharam as experiências da pesquisa em campo durante a coleta de dados e apresentaram uma série de propostas elaboradas ao longo do curso para a resolução da falta de acesso, qualidade e eficiência de água e energia evidenciados durante a pesquisa. Ao final, os jovens e as lideranças respondem aos questionamentos dos jornalistas e técnicos presentes.
O primeiro relatório chamado “Justiça Hídrica e Energética nas Favelas: Levantando Dados Evidenciando a Desigualdade e Convocando para Ação” resume o resultado da pesquisa realizada pelos participantes do curso nos 15 territórios contemplados, trazendo dados de 1.156 famílias, representando 4.164 pessoas. O relatório inclui uma introdução aos temas da pesquisa, gráficos, depoimentos e propostas de ação. Um dos objetivos foi retratar os dados coletados de forma que possam informar e chamar atenção das autoridades e concessionárias sobre o cenário de injustiça energética e injustiça hídrica que o atual modelo implica.
O segundo relatório resultante do curso surgiu apenas esse ano, a partir da oportunidade de se aprofundar na análise sobre os dados gerados sobre eficiência energética. Este novo relatório, chamado “Eficiência Energética nas Favelas: Um Retrato dos Desafios de Eficiência Energética e Seu Impacto Sobre a Desigualdade e Justiça”, expõe detalhes inéditos sobre distribuição desigual de energia e impacto da ineficiência sobre a pobreza nas comunidades fluminenses. Nele, estão expostos, analisados e contextualizados, com maior profundidade, os desafios e a importância do assunto, cruzando-os com os aspectos sociais e raciais das comunidades onde a pesquisa foi conduzida, além de contemplar os achados e conclusões referentes aos dados gerados especificamente sobre o contexto e desafios de eficiência energética nas favelas.
A pesquisa e seus relatórios chamaram a atenção da imprensa, tornando-se pauta na Record, RJTV, TV Globo, Folha de São Paulo, Colabora, G1, Agência Brasil, TV Brasil, Brasil de Fato, Meia Hora, O Dia, Notícia Preta, Rádio Roquete Pinto, Diário do Rio, EPSJV, ICICT, CNN, CREA, e CLASP.
Em 2023, com a participação dos alunos, estão sendo realizados eventos de apresentação de relatórios locais dos dados junto de cada um dos 15 territórios da pesquisa. Já foram realizados eventos em Mesquita, na Baixada Fluminense, que contemplou os dados das comunidades da Coreia, Cosmorama e Jacutinga, no Dia Mundial da Água em 22 de março; na Zona Oeste com a Cidade de Deus e Rio das Pedras, em abril, e Engenho, Itaguaí em maio.
Assista ao documentário Conheça o “Curso Monitorando a Justiça Hídrica e Energética nas Favelas” Aqui.
Não perca o álbum abaixo, ou clique aqui para ver no Flickr:
*A Rede Favela Sustentável, o Painel Unificador das Favelas e o RioOnWatch são iniciativas realizadas pela organização sem fins lucrativos, Comunidades Catalisadoras (ComCat). O curso “Monitorando e Pesquisando a Justiça Hídrica e Energética nas Favelas” foi realizado de forma coletiva pelas seguintes organizações: Raízes em Movimento, ICICT e EPSJV (Fiocruz), Instituto Clima e Sociedade (ICS), CLASP, LabJaca, DataLabe e Casa Fluminense.
**As organizações comunitárias que participaram do curso e da pesquisa foram: Alfazendo (Cidade de Deus/Rio de Janeiro), Associação Centro Social Fusão (Jacutinga/Mesquita), Associação de Mulheres de Atitude e Compromisso Social (Dique da Vila Alzira/Duque de Caxias), Associação de Mulheres de Edson Passos (Cosmorama/Mesquita), Associação de Mulheres de Itaguaí Guerreiras e Articuladoras Sociais (Engenho/Itaguaí), Centro Comunitário Raiz Vida (Morro dos Macacos/Rio de Janeiro), Cooperativa Transvida (Vila Cruzeiro/Rio de Janeiro), LabJaca (Jacarezinho/Rio de Janeiro), Movimento de Mulheres Maria Pimentel Marinho (Itacolomi/Rio de Janeiro), Museu de Favela (Cantagalo e Pavão-Pavãozinho/Rio de Janeiro), Núcleo de Educação Social Popular em Economia Solidária (Coréia/Mesquita); Projeto Inclusão (Éden/São João de Meriti), Projeto Moleque (Pedreira/Rio de Janeiro); Projeto Social Semeando Amor (Rio das Pedras/Rio de Janeiro), S.O.S. Providência (Providência/Rio de Janeiro).