Encontro das Águas na Cidade de Deus: Projeto Eco Rede Fortalece Identidade e Resgata Memória dos Rios da Comunidade

Confrontando a Tendência de Reduzir Rios de Favela a Valões

Rio Grande visto da ponte nova, na Cidade de Deus. Ao fundo, vê-se o Maciço da Tijuca. Foto: Gabrielle Conceição
Rio Grande visto da ponte nova, na Cidade de Deus. Ao fundo, vê-se o Maciço da Tijuca. Foto: Gabrielle Conceição

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Centro Behner Stiefel de Estudos Brasileiros

Esta é a matéria final de uma série sobre justiça hídrica nas favelas escrita por jovens moradores de favela e resultado do curso “Justiça Climática no Jornalismo Comunitário: Da Construção da Pauta à Redação da Notícia”. O curso, realizado pela equipe do RioOnWatch, em parceria com o GT Jovem da Rede Favela Sustentável (RFS), aconteceu nos meses de julho-setembro de 2023. Ela também faz parte de uma série gerada por uma parceria com o Digital Brazil Project do Centro Behner Stiefel de Estudos Brasileiros da Universidade Estadual de San Diego na Califórnia, para produzir matérias sobre justiça ambiental nas favelas fluminenses.

As Enchentes e o Racismo Ambiental na História da Cidade de Deus

Pessoas sendo resgatadas e transportadas de barco, durante enchente no Rio de Janeiro, em 1966. Foto: Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro
Pessoas sendo resgatadas e transportadas de barco durante enchente que afetou grande parte do Rio de Janeiro, em 1966. Foto: Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro

A primeira enchente que marcou a história da Cidade de Deus (CDD), na Zona Oeste do Rio de Janeiro, foi a do ano de 1966, que afetou toda a cidade. Neste ano, a marca que a enchente deixou foi do crescimento repentino da nova comunidade ao receber os atingidos das enchentes em outras favelas. Temos em nossa raiz a memória de sermos resultado da desapropriação de outras favelas para a Cidade de Deus, que teve sua fundação antecipada e justificada para abrigar essas pessoas em 1966.

No entanto, esta não seria a única enchente a marcar a história do território. A Cidade de Deus e, a região do entorno, de Jacarepaguá, AP 4, é uma área propícia a alagamentos, delimitada pelo Maciço da Pedra Branca, Maciço da Tijuca e o Oceano Atlântico, com uma rede intensa de sub-bacias hidrográficas. A CDD está na planície de inundação do Rio Grande, o que significa dizer, que desde seu planejamento, parte de um conjunto habitacional público, estaria exposto a alagamentos.

Já a enchente de 1996, a maior na história da favela, evidenciou que, apesar de ser uma característica da região, o sofrimento e os transtornos causados não seriam distribuídos de forma igualitária entre Jacarepaguá, Cidade de Deus e Barra da Tijuca. Foram 53 mortes oficiais e mais de 2.000 desabrigados na Cidade de Deus.

Passamos a interagir de maneira diferente com o meio ambiente. As pessoas carregam na recordação momentos em que, quando crianças, foram colocadas em beliches, bancadas, muretas para não entrar em contato com a água. Os adultos se preocupavam com a perda dos bens materiais, que tanto trabalharam para comprar, mas o principal medo era perder seus filhos, levados pela força da água ou acometidos por alguma doença, fruto da contaminação com água suja.

Gradativamente, as histórias foram deixando de ser sobre a sensação de se refrescar nos rios, as lembranças de brincadeiras aquáticas e às suas margens e a segurança alimentar que as águas forneciam à população. Aos poucos, as falas passaram a descrever o rio como uma fonte de medo e de morte. É uma constante sensação de vulnerabilidade, amenizada apenas pela rede de apoio que a vizinhança proporciona em momentos de urgência. São os vizinhos os que socorrem os atingidos, ajudam na limpeza das casas, lutam pelo direito à moradia digna e pela memória das pessoas vitimadas em localidades devastadas da favela.

Marcia Esteves, ex-moradora e mobilizadora comunitária da Cidade de Deus, que atuou como liderança no curso de pesquisa de Justiça Hídrica e Energética nas Favelas, lamenta o fato de suas memórias sobre os rios da Cidade de Deus serem apenas as da enchentes de 1996.

“Acho importante abordar as memórias. Muitos não sabem que o rio já foi local de pesca e de brincadeiras. Acho que desenvolve outro olhar por parte de muita gente que desconhece a história local.” — Marcia Esteves

A tristeza de se vivenciar uma enchente—e o prejuízo de perder roupas, alimentos, móveis, eletrodomésticos, documentos e registros de memórias (fotografias e cartas)—muda a forma como nos relacionamos com os rios, com as chuvas e com a gente mesmo. O medo, engatilhado por memórias tão traumáticas, causa o que hoje é chamado de ansiedade climática ou ecoansiedade. Ela se manifesta de diversas maneiras, como, por exemplo, através da dificuldade de dormir durante fortes tempestades, independente do cansaço físico da pessoa. Esse é um tema que vem sendo aprofundado por estudiosos na área da saúde.

Na dinâmica do racismo ambiental, também está incluída a culpabilização dos moradores pelas tragédias. Em artigos científicos que abordam as enchentes ou a poluição dos rios de favela, a população é apontada como a responsável. Frequentemente, esses discursos são incorporados nas falas, até dos próprios moradores, sem uma avaliação crítica aprofundada sobre a realidade.

Um exemplo dessa lógica foi exposto pelo coletivo Construindo Juntos, que atua na CDD. Em 2020, o coletivo publicou os resultados de uma pesquisa comunitária que revelou que apenas 52,9% têm acesso à coleta de resíduos sólidos de três a quatro dias por semana. Para 33,3% dos entrevistados, a coleta ocorre de uma a duas vezes por semana, para 6,7%, menos de uma vez por semana, e para 7,2%, o serviço de coleta não atende sua localidade. É preciso se colocar contra esse discurso de que tudo na favela é feio e sujo por culpa do morador, quando o principal problema é a negligência do Estado.

Alfazendo e a Importância das Bases Comunitárias

Na Cidade de Deus, o projeto Eco Rede lidera diversas ações educativas através da metodologia participativa, voltada para os alunos de escolas municipais do território que em 2022 e 2023 teve como tema gerador “Encontro das Águas”. Seu principal objetivo é despertar olhares diferentes e práticas cuidadosas com o meio ambiente e os rios da favela. A Eco Rede, criada em 2011, é uma tecnologia social reconhecida pela Organização das Nações Unidas (ONU), fruto de anos de luta socioambiental do Grupo Alfazendo junto aos movimentos sociais através da Rede Comunitária de Desenvolvimento Socioambiental.

Oficina de educação socioambiental na C. M. Sempre Vida Nise da Silveira, na Cidade de Deus, em novembro de 2022. Foto: Lidiane Santos
Oficina de educação socioambiental na C. M. Sempre Vida Nise da Silveira, na Cidade de Deus, em novembro de 2022. Foto: Lidiane Santos

O projeto Eco Rede visa contribuir para a construção da identidade dos jovens do território com a atuação deles como educadores. As ações envolvem o fortalecimento da identidade como favelado e seu pertencimento ao território. O ambiente é trabalhado a partir de percepções de povos tradicionais, do entendimento de que a Natureza é um sujeito de direito, de que tudo que está ao seu redor é Natureza, incluindo as formas de relação, que se iniciam no útero. Os participantes envolvidos têm a possibilidade de enxergar a favela com outros olhos, de afeto e cuidado. É uma possibilidade de estudar com, a partir e para a Cidade de Deus e não só sobre.

O Alfazendo tem um longo histórico de debate e desenvolvimento da educação crítica no território. Em 1998, ano de sua fundação, implementou o primeiro Pré-Vestibular para Negros e Carentes (PVNC) do território, além de turmas de alfabetização de jovens e adultos. A lista de ações seguem por incidência política, fórum de educação, Jornadas de Educação Socioambiental, Festivais de Juventude na Favela, cineclubes, entre outros. Atuante desde 2011, Eco Rede foi replicada no Timbau, no Complexo da Maré, pelo Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (CEASM).

Eco Rede é um amplo e integrado projeto que prevê ações de formação continuada de jovens e adultos, garantindo-lhes trabalho, emprego e renda; rede de fortalecimento do trabalho do catador; ponto de coleta seletiva solidária; oficinas de educação socioambiental; formação de professores, educadores e profissionais das escolas da rede pública; e implementação de estruturas socioeducativas (espaços sensoriais, brinquedotecas sustentáveis, hortas pedagógicas). Essas ações são desenvolvidas segundo a metodologia participativa do educador Paulo Freire, que empodera os educandos do conhecimento, gerado a partir do diálogo horizontal dos temas geradores.

Em seu primeiro ano, a equipe de Eco Rede criou o mini-documentário O Rio Grande em Cidade de Deus:

Olhares Novos para Nossos Rios

“Não só no Rio Grande, mas em todos os rios da Cidade de Deus dava pra pescar. Quando a gente era criança, a gente pegava rã com balde nas margens e os mais velhos faziam um caldo para as crianças. A gente pegava broto de abóbora. As margens eram cheias de plantas, de ervas.” — Iara Oliveira

O Rio Grande tem sua nascente localizada no Parque Estadual da Pedra Branca e atravessa a Cidade de Deus. Moradores mais antigos, como Iara Oliveira, nascida na comunidade em seu ano de fundação, 1966, relatam a importância social, a riqueza natural e os muitos usos que os rios locais tinham décadas atrás.

Ainda hoje, no trecho dentro do Parque Estadual da Pedra Branca, as águas do Rio Grande são limpas. Neste ponto, o rio é, inclusive, ponto de captação para o abastecimento hídrico da população. Mas, ao longo do caminho até chegar na Cidade de Deus, ele vai recebendo esgoto doméstico e industrial. Além disso, como muitos rios dos centros urbanos, alguns de seus trechos estão canalizados, o que provoca uma perda de sua identidade enquanto rio.

Na Cidade de Deus, o Rio Grande se encontra totalmente visível e descoberto. Em alguns trechos, suas margens estão ocupadas por construções, mas ele ainda é um elemento central e referencial para as localidades do Tangará, Karatê, Treze, Predinhos e Tijolinho. Já os rios Estiva e Banca da Velha não estão nomeados nos mapas que tivemos acesso.

Rio Estiva, na Cidade de Deus. Foto: Lidi Santos
Rio Estiva, na Cidade de Deus. Foto: Lidiane Santos

O Rio Estiva, com 1,4 km, passa pelas áreas conhecidas como AP 2 e Treze, até desaguar no Rio Grande. Nos limites da favela, ele está encoberto por construções e, por isso, não é possível traçar todo seu trajeto. Já o percurso do Rio Banca da Velha tem cerca de 4,3 km, passa pelo Capenha, Pantanal 2, Pantanal 1 e AP até que, nos Tijolinhos, embaixo da Linha Amarela, ele se encontra com o Rio Grande e passa a ser nomeado de Arroio Fundo.

Em agosto de 2022, a Coordenadoria Regional de Educação (CRE) inaugurou o programa Esse Rio é Meu, uma parceria entre a concessionária Águas do Rio e a OSCIP planetapontocom. As escolas precisaram desenvolver, dentro do projeto político pedagógico, atividades de conscientização sobre a condição, a importância e a recuperação de um rio próximo à unidade escolar. O tema gerador “Encontro das Águas” e o trabalho que já vinha sendo desenvolvido pelo Grupo Alfazendo, em 12 anos de Eco Rede,  facilitou com que as escolas desenvolvessem a atividade.

Nas escolas da Cidade de Deus, essa realização foi desafiadora para os educadores. Eles enfrentaram dificuldades de inserir em suas rotinas uma busca ativa de informações sobre os rios da região. Os professores notaram que há um apagão de informações sobre os rios do território, que têm sua identidade reduzida a valão.

“Quando vi que o projeto da Eco Rede seria o Encontro das Águas, eu amei. A minha equipe da escola também adorou, porque viria de encontro com tudo que a gente [trabalhou durante o ano]… É um trabalho de formiguinha… aos poucos, para tentar mudar hábitos e costumes que as pessoas já têm. As pessoas já têm o costume de não cuidar do rio, de não olhar o rio como uma coisa necessária.” — Tathiany Sampaio, coordenadora pedagógica da Escola Municipal Augusto Magne e moradora da Cidade de Deus

Tathiany também confessou que, mesmo sendo moradora, nunca tinha olhado a fundo para os rios de sua favela e para as dinâmicas sociais no entorno deles. Ficou evidente para ela o quanto é importante manter viva a nossa relação com os rios. Trajetória semelhante foi traçada por Maria Eduarda Silva, agente de promoção socioambiental da Eco Rede, que expressa a importância do projeto para ela, também enquanto moradora.

“Quando eu entrei na Eco Rede foi quando eu olhei pros rios de verdade! Olhei com importância e vi o quanto aqueles rios estão danificados e o quanto a Eco Rede luta pela melhoria deles… É importante [contar] as histórias dos rios e saber das nascentes deles.” — Maria Eduarda Silva

Encontro das Águas: Eco Rede nas Escolas da CDD

As oficinas de educação socioambiental foram a principal atividade da Eco Rede em 2022 e 2023, pensadas a partir do tema gerador ‘Encontro das Águas’. Através de materiais pedagógicos criados, da oralidade e de práticas educativas afetivas, os conhecimentos sobre os rios e a natureza local estão sendo mantidos vivos. O desenvolvimento dessas ações, a partir da base e construídas coletivamente, fortalece a identidade da favela junto com moradores, promovendo o senso de pertencimento e de comunidade.

No período de um ano, o projeto realizou 203 oficinas de educação socioambiental em 21 unidades escolares, a partir do livro Caminho das Águas: O Rio Grande e do jogo cooperativo Encontro das Águas. O público atingido foi de 5.962 alunos da educação infantil ao ensino fundamental.

O livro conta a história do Rio Grande de uma forma lúdica e proporciona às crianças uma troca a partir do que elas vivem e vêem. Nele, tem o jacaré, a capivara e a garça, animais que ainda resistem nos nossos rios da Cidade de Deus. No livro, há a representação de um rio que está com muitos resíduos sólidos e as crianças são convidadas a ajudar a limpar a casa dos animais. A partir disso, elas vêem que podemos dar um novo sentido para os resíduos, pois são ensinadas a transformá-los em brinquedos, por exemplo. E, ao final da atividade, os animais do livro retornam para o rio, que agora está limpo graças às crianças. Já para o ensino fundamental, foi elaborado e confeccionado um jogo de tabuleiro cooperativo, nomeado “Encontro das Águas”. O jogo se ambienta nos rios Grande, Banca da Velha e Estiva e também conta com a presença da fauna local.

Oficina de Educação Socioambiental na E. M. Frederico Eyer, em outubro de 2022. Foto: Lidi Santos
Oficina de Educação Socioambiental na E. M. Frederico Eyer, em outubro de 2022. Foto: Lidiane Santos

Sua jogabilidade inclui a limpeza dos rios e a destinação dos resíduos sólidos a um ponto de coleta seletiva solidária, condicionado ao acerto de perguntas. Nas fichas há informações sobre o meio ambiente, histórias e dados do território a serem respondidas com a colaboração de todos os alunos da turma. É um momento de troca com e entre os alunos, a partir do que eles conhecem.

Oficina de educação socioambiental, na E. M. Augusto Magne, em setembro de 2022. Foto: Beatriz Fortunado
Oficina de educação socioambiental, na E. M. Augusto Magne, em setembro de 2022. Foto: Beatriz Fortunado

Em resumo, Alfazendo, Eco Rede e Encontro das Águas abordam a boniteza de se reconhecer enquanto Natureza no seio da Cidade de Deus. São sobre o fortalecimento da nossa identidade enquanto morador de favela. Os três—instituição, projeto e tema gerador—carregam a missão de mudar nossa visão, que normaliza o absurdo da morte de rios, lançando olhares afetuosos para as águas de nosso território.

Sobre as autoras:

Gabrielle da Conceição é cria da área do Quinze, na Cidade de Deus, e faz parte do Alfazendo há 6 anos. Integrante do projeto Eco Rede, atuou por cinco anos como agente de promoção de educação socioambiental, e hoje está como coordenadora pedagógica. Em 2022, foi jovem pesquisadora no curso Monitorando a Justiça Hídrica e Energética Nas Favelas.

Lidiane Santos gosta de dizer “sou Água”. Nascida em Esplanada, Bahia, foi criada pela avó Maria e suas filhas. Dona Rose, sua mãe, é moradora da CDD desde 1996. Coordenadora do projeto Eco Rede (Alfazendo/CDD) desde 2015 e mãe do Arthur, Lidiane é professora de biologia (UFRJ). Mestranda em Ecoturismo e Conservação (PPGEC/UNIRIO) pesquisa “Escrevivendo a Conservação das Naturezas da(na) Cidade de Deus: A Geopoética das Águas em Movimento”.

*A Rede Favela Sustentável (RFS) e o RioOnWatch são ambas ações tocadas pela organização sem fins lucrativos, Comunidades Catalisadoras (ComCat).


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