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A tradicional Feira de Acari, que há cinco décadas animava as manhãs de domingo nas imediações da estação do metrô de Acari/Fazenda Botafogo, foi abruptamente fechada no dia 22 de janeiro, pelo Prefeito Eduardo Paes, que publicou em suas redes sociais que, após uma conversa com o Governador Cláudio Castro, publicaria um decreto proibindo a Feira de Acari em qualquer dia da semana. A decisão da Prefeitura, tomada menos de duas semanas após as devastadoras enchentes que assolaram o bairro, aprofundou o sofrimento de milhares de pessoas que dependem da feira para seu sustento. No mesmo post, o prefeito ainda disse: “Não é aceitável que uma ‘feira’ repleta de produtos de origem desconhecida tenha seu funcionamento normalizado na cidade”. Para o prefeito, a solução autoritária e simplista para um desafio complexo seria a extinção de uma tradicional feira de rua, patrimônio imaterial da cidade do Rio de Janeiro, que acontece regularmente aos domingos desde a década de 1970. Como consequência de sua decisão arbitrária e sem consulta dos afetados, fevereiro foi um mês amargo e triste para feirantes e moradores de Acari.
Feira de Acari: Espaço Multifacetado na Vida da Comunidade Local
A Feira de Acari, citada em uma das músicas mais icônicas da MPB, a “W/ Brasil (Chama o Síndico)”, de 1992 por Jorge Ben Jor, onde canta melodicamente que “A Feira de Acari é um sucesso”, é uma feira livre realizada aos domingos no bairro de Acari, na Zona Norte do Rio de Janeiro há mais de 50 anos. Ou realizada, até janeiro deste ano. Era conhecida por vender produtos de diversos tipos, a preços baixos. Sendo um importante ponto de comércio para a comunidade local, ela também atraía visitantes de outras partes da cidade. Era um local onde as pessoas podiam encontrar de tudo, desde roupas e eletrônicos, até alimentos frescos e produtos de higiene pessoal.
Em janeiro de 2024, a Prefeitura do Rio de Janeiro decretou o fim da Feira de Acari. A decisão foi tomada após uma série de operações policiais na feira, que resultaram na apreensão de produtos falsificados e contrabandeados. A decisão da Prefeitura foi recebida com críticas por parte da comunidade local, que argumenta que a feira era uma importante fonte de renda para muitas famílias. A Feira de Acari também era vista como um patrimônio cultural da comunidade e seu fim é considerado uma perda significativa.
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“Eliminar a Feira de Acari em resposta a alegações isoladas e criminalizadoras é uma tentativa de solução simplista, além de higienista, elitista e racista para um problema complexo. Em vez de proibições drásticas, seria mais benéfico para a região explorar estratégias de cooperação entre os órgãos reguladores e os próprios feirantes, para garantir a continuidade do comércio. A proibição da feira não apenas afeta os feirantes, mas também prejudica os moradores, que dependem dessa fonte confiável de produtos acessíveis.” — Coletivo Fala Akari
Letícia Pinheiro, moradora, assistente social e mestranda, atuante nos coletivos Agenda Acari 2030 e Fala Akari, conta que o bairro foi impactado por duas grandes enchentes, uma seguida da outra, no espaço de uma semana. Em certas localidades, a água chegou a três metros de altura. Muitas famílias tiveram suas residências alagadas duas vezes. E, logo em seguida, vem a notícia da proibição da feira pela Prefeitura.
“A forma de criminalização da feira traz características muito específicas sobre como a Prefeitura observa as periferias e favelas. E a gente sabe que isso não aconteceria em outras feiras em localidades da Zona Sul, por exemplo. Se tiver uma irregularidade ou qualquer outra questão, é um caminho que temos que pensar em conjunto. Como vamos regulamentar a feira e regularizar os feirantes? Pois o trabalhador autônomo, muita das vezes, está ali sem nenhum tipo de assistência. A primeira medida da Prefeitura foi a proibição. É uma característica péssima e rotineira da forma como o Estado age nas favelas.” — Letícia Pinheiro
Uma das parlamentares da Câmara Municipal do Rio de Janeiro a se posicionar foi a Vereadora Thais Ferreira, que discursou contra a proibição da feira. Ela sugere mais fiscalização ao invés de proibição.
“Num momento em que Acari sofre com o impacto das chuvas de verão, graças à falta de políticas públicas, a Feira de Acari, reconhecida como patrimônio cultural de natureza imaterial da cidade, é ameaçada pela Prefeitura com uma justificativa que demonstra ainda mais a ausência das autoridades na garantia dos direitos básicos da população desse território. Se o problema são os produtos desconhecidos, que tenha fiscalização!” — Thais Ferreira
‘Acari Chora’: Ato pela Volta do Patrimônio Cultural e Imaterial do Rio
Duas manifestações pacíficas aconteceram após a proibição da Feira de Acari. A primeira por volta das 8h15, em 28 de janeiro, no mesmo dia da operação da Prefeitura. Feirantes e moradores se reuniram na Avenida Martin Luther King Jr., nas proximidades da estação do metrô de Acari/Fazenda Botafogo. Manifestantes gritavam: “Queremos trabalhar, queremos trabalhar” e carregavam cartazes com dizeres: “Chuvas, mortes, alagamentos e o fim de nossa feira: Acari chora”. A segunda manifestação ocorreu no dia seguinte (29), após uma assembleia convocada e realizada pelos trabalhadores da feira.
Declarada Patrimônio Cultural de Natureza Imaterial da Cidade do Rio de Janeiro pela Lei nº 7.468, de 14 de julho de 2022, a Feira de Acari é um símbolo. É a representação cultural de como as favelas se movimentam e traçam estratégias próprias de sobrevivência. Mesmo com a dinâmica urbana de desigualdade e violência na região, a feira sobrevive há mais de 50 anos. A proibição dela impacta muitas famílias e atinge toda a economia local.
“O fim da feira impacta diretamente na economia local. Estamos falando de feirantes. Boa parte são moradores de Acari ou de bairros vizinhos, que tiravam seu sustento na feira. Ela foi proibida sem ter nenhum tipo de diálogo anterior com a população, sem ter um processo de pensar uma outra estrutura para a feira. Isso prejudica diretamente a economia local e boa parte dessa população, que, inclusive, sofreu com as enchentes.” — Letícia Pinheiro
Dona Maria Paula*, feirante e moradora de Acari, trabalha há mais de 35 anos na feira do bairro. Ela tinha um brechó e tirava, em média, R$15-$20 por dia. Em depoimento, ela conta que nunca imaginou que a feira fosse ser proibida:
“Sinceramente, não sei o que dizer. Fiquei sem chão. Vivo com um salário mínimo e trabalho com brechó (onde são comercializados artigos usados) na feira, o que complementava minha renda… E o que comemos até chegar o dia do pagamento? Essa feira foi muito útil pra mim. Agora só Jesus sabe o que estou passando. Tenho que comprar ração dos meus bichos, que estão ficando sem comida. Essa feira era, primeiramente Deus no céu, e ela na Terra. Era meu ganha pão!”
Mesmo com a Feira Proibida e com Acari Devastada por Enchentes, Ainda Há Esperança
Acari possui o terceiro menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do município do Rio e a segunda menor renda. Seu IDH, no ano 2000, era de 0,720, sendo o 124º colocado entre 126 regiões da cidade. Também está no 139º lugar entre os 159 bairros do Rio de Janeiro no Índice de Progresso Social da Cidade do Rio de Janeiro (IPS), com nota de 57,75 e uma renda per capita de R$377.
A Vereadora Thais Ferreira contou que propôs uma série de indicações legislativas e fez um requerimento sobre a situação da feira, além de estar fazendo a escuta de feirantes e frequentadores do território visando receber demandas prioritárias que a realidade do decreto impôs.
“Propusemos um Projeto de Decreto Legislativo para sustar o efeito do decreto do prefeito… A Lei nº 7.648 [que tombou a Feira de Acari como patrimônio da cidade] vai ser importante embasamento do projeto de decreto do legislativo para reverter o decreto do prefeito, já que a lei prevê a valorização da Feira de Acari e não sua extinção.” — Vereadora Thais Ferreira
Letícia explica que, ao contrário da Prefeitura, coletivos e movimentos sociais locais, como a Agenda Acari 2030, têm muitas estratégicas e planos de políticas públicas pensados para a Feira de Acari, seus feirantes e clientes, sempre considerando-a enquanto ativo econômico e cultural do bairro e de toda a cidade.
“Depois da proibição, teve diálogo com alguns feirantes… Uma das estratégias é sobre a valorização da Feira de Acari. Ela já é um patrimônio do Rio de Janeiro, mas isso não resguarda os feirantes e nem impede que a Prefeitura faça o que fez… Pensamos na feira como um espaço para além do vínculo como morador, das pessoas que acessam esse espaço cotidianamente. Eu sou a terceira geração da minha família que frequenta a Feira de Acari, por exemplo. Ela é uma referência cultural e um espaço que tem história. Esse é um fundamento muito importante para a gente pensar qualquer atitude com relação à feira.” — Letícia Pinheiro
No dia 31 de janeiro, a Subprefeitura da Zona Norte se reuniu com alguns trabalhadores da Feira de Acari. Em publicação, o Subprefeito Diego Vaz comentou a reunião.
“A pedido do Prefeito Eduardo Paes, me reuni com um grupo de trabalhadores de Acari que desejam se regularizar e vender produtos lícitos e com procedência comprovada. A ideia é a inclusão desses trabalhadores em uma feira já existente na região, comercializando seus produtos no mesmo molde da Feira Basílio de Brito e da Feira da Glória, entre outras.” — Diego Vaz
Até o momento da publicação desta matéria, não há possibilidade, segundo a Prefeitura, do retorno da Feira de Acari. Há semanas sem trabalhar, Dona Maria Paula* aguarda contato da prefeitura e ainda tem esperança no retorno da feira:
“No dia 26 de janeiro, eu e um montão de gente estivemos na Subprefeitura da Zona Norte. Era uma fila imensa, tinha muita gente mesmo. Pediram meu nome, número de contato e perguntaram com qual mercadoria trabalhava… Querem nos realocar em outra feira, mas até agora nada. Ninguém foi realocado e eu continuo aguardando o contato. Você não sabe como estou triste, muito triste. Só Deus sabe o que estou passando. Mesmo assim, eu tenho fé. Tenho fé de que essa feira não pode acabar. Ela vai retornar sim, pode demorar, mas tenho fé em Deus que ela irá voltar.”
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*O nome da entrevistada é fictício, para preservar a identidade da moradora e feirante.
Sobre o autor: Felipe Migliani é formado em Jornalismo pela Unicarioca e tem especialização em jornalismo investigativo. Atua como jornalista independente e repórter freelancer nos jornais Meia Hora e Estadão. É colaborador do Coletivo Engenhos de Histórias, que investiga e resgata histórias e memórias da região do Grande Méier, e do PerifaConnection.