Esta matéria faz parte de uma série gerada por uma parceria com o Digital Brazil Project do Centro Behner Stiefel de Estudos Brasileiros da Universidade Estadual de San Diego na Califórnia, para produzir matérias sobre justiça ambiental nas favelas fluminenses. Esta matéria também faz parte da série #OQueDizemAsRedes que traz pontos de vista publicados nas redes sociais, de moradores e ativistas de favela sobre eventos e temas que surgem na sociedade.
O ano de 2024 tem batido recordes negativos com relação às queimadas que devastam o Brasil, colocando em risco praticamente todos os biomas do país. Setembro de 2024 se encerrou com a maior média de queimadas para o mês na série histórica, sendo o mês mais seco no Rio de Janeiro dos últimos 27 anos. Já na Amazônia, a estação menos chuvosa, que, em geral, vai de maio a setembro, em 2024, acumula os impactos de dois anos seguidos de seca extrema. No início de outubro em São Paulo, no que já deveria ser o início da estação chuvosa, os incêndios florestais aumentam 648%. Como um todo, em 2024, o Brasil registrou no período de janeiro a outubro, um aumento de 73% dos incêndios, já no período mais seco do ano, geralmente auge dos incêndios, houve um aumento de 104% nos focos de fogo com relação ao mesmo período de 2023.
A maior parte do fogo que tem pulverizado o Brasil é fruto de incêndios criminosos, com origem na ação humana. É o que constatou a doutora em geociências Renata Libonati, coordenadora do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais (Lasa) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Em entrevista à Agência Brasil, ela afirmou que:
“A ocorrência dos incêndios no Brasil está intimamente relacionada ao uso da terra… Nosso estilo de vida atual é incompatível com o bem-estar da nossa sociedade no futuro.”
A fumaça tóxica das queimadas ilegais no sul da Amazônia, no Cerrado e no Pantanal cobriu não só o Centro-Oeste, como geralmente acontece nesta época do ano. Desta vez, todo o país, está sendo obrigado a respirar o ar tóxico.
Da mesma maneira, partes da Bolívia, do Peru, do Equador e da Argentina, o Paraguai e o Uruguai têm sido expostos à péssima qualidade do ar. A fumaça emitida pelas queimadas está sendo carreada pelas correntes de ar popularmente conhecidas como “rios voadores“, que, em geral, oferecem as condições para que haja chuva e umidade no interior da América do Sul, o que sustenta as vastas florestas alagadas do Pantanal e a Mata Atlântica, uma floresta úmida.
Ao entrar nos “rios voadores” no lugar do vapor d’água, ao invés de chuva, a fumaça é soprada primeiramente para o oeste até bater na Cordilheira dos Andes e se desviar na direção Sul-Sudeste, contaminando o ar das maiores cidades da América do Sul, como São Paulo, Buenos Aires, Brasília, Montevideo, Assunción, Santa Cruz de la Sierra e Rio de Janeiro. Nestes locais, condições climáticas semelhantes—tempo seco, estiagem, temperaturas mais altas que a média—também causam incêndios e reforçam a toxicidade do ar em quase todo o subcontinente.
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Rio de Janeiro em Chamas
A população do estado do Rio de Janeiro também viu o fogo devastar sua paisagem. Com um sol vermelho ao longo de semanas, sem o típico céu azul da primavera, o Grande Rio foi a região mais afetada no estado do Rio de Janeiro. O Rio, São Gonçalo e Duque de Caxias foram as cidades que mais registraram queimadas no estado. Municípios do interior também foram atingidos por queimadas e incêndios criminosos.
Na Tijuca, Zona Norte do Rio, o Portal Grande Tijuca vem documentando uma sequência de queimadas, sobretudo nas favelas do bairro. No Morro dos Macacos, em Vila Isabel, houve um incêndio na mata no dia 10 de setembro. Nenhum morador ficou ferido.
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O mesmo portal de notícias voltou a registrar um incêndio na Grande Tijuca em outubro, desta vez, no Morro da Formiga. Em um dos vídeos, é possível ver o helicóptero do corpo de bombeiros jogando água para conter o fogo na região de mata da favela.
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Ainda no Maciço da Tijuca, em parte da maior floresta urbana do mundo, o Sumaré pegou fogo persistentemente, o que assustou moradores da região. Durante mais de 24 horas, o corpo de bombeiros tentou controlar as chamas com o uso de todos os recursos disponíveis, inclusive helicópteros. A fumaça tóxica tomou parte da Tijuca, afetando a saúde, sobretudo, de moradores das favelas à sudoeste do incêndio, para onde o vento estava soprando naquele momento: Salgueiro, Borel e Formiga. Até o Turano, a nordeste do incêndio, na direção contrária ao vento na maior parte do tempo, teve sua qualidade do ar afetada.
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Ainda na Zona Norte, no Complexo do Alemão—e na maioria das favelas cariocas—a gestão de resíduos sólidos, uma responsabilidade da Prefeitura através da COMLURB, é uma questão muito série de saúde pública. Historicamente negligenciada pelo Estado, com a falta de coleta regular, moradores são obrigados a lidar por si próprios com o lixo. Para alguns, sobretudo nas partes altas das favelas, queimar os resíduos se apresenta como a única forma de evitar o acúmulo de lixo.
No entanto, em um momento de extrema secura e estiagem, com a vegetação seca, o potencial destrutivo desta ação é incalculável. Foi o que aconteceu em agosto na Pedra do Sapo. Em um triste episódio, uma moradora viu sua casa ser totalmente destruída pelo fogo. Dona Altamira Lourenço da Silva, 65, por sorte e ajuda dos vizinhos, não se feriu.
Outra localidade do Complexo do Alemão que também sofreu com o fogo recentemente, no meio de setembro, foi a Matinha, região da Serra da Misericórdia, zona de mata que liga o Complexo do Alemão ao Complexo da Penha. As chamas começaram pela manhã e se alastraram, colocando em risco centenas de moradores e dezenas de moradias. Mesmo sem água, sem o fornecimento da Águas do Rio há três dias, os moradores resolveram usar todo o estoque que vinham economizando para combater o fogo, que durou horas.
Já no Centro, no dia 25 de setembro, no bairro de Santa Teresa, houve um incêndio na área de mata do Morro do Fogueteiro da parte baixa do morro. Não há relatos de vítimas fatais, feridos ou casas de moradores atingidas pelas chamas.
No dia seguinte, na mesma serra, outra queimada colocou em risco a vida dos moradores. Desta vez, no Morro do Querosene, comunidade do Complexo de São Carlos, no Rio Comprido, o incêndio atingiu a mata na parte baixa do morro, destruindo duas casas. Nenhum morador ficou ferido neste episódio.
A situação se tornou tão preocupante que, em setembro, o Instituto Estadual do Ambiente (INEA) determinou o fechamento dos parques estaduais e unidades de conservação do estado do Rio de Janeiro como medida de segurança. Da mesma forma, na cidade do Rio de Janeiro, os parques municipais tiveram que enfrentar uma verdadeira prova de fogo. Esse foi o caso do Parque Natural Municipal da Prainha, no Recreio dos Bandeirantes, na Zona Oeste, que sofreu com o avanço das chamas também em setembro.
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Ainda na região da Prainha, Realengo TV publicou sobre um incêndio de grandes proporções na mata de Grumari.
Niterói foi outra cidade que viu seus parques queimarem. O Parque Florestal da Cidade, por exemplo, sofreu com queimadas que destruíram parte da mata do Morro das Andorinhas. Foi necessário um esforço conjunto do quartel dos bombeiros de Charitas e Itaipu para conter as chamas, que só foram controladas 24 horas depois. Moradores filmaram pessoas suspeitas de atearem fogo à mata. A Polícia Civil continua investigando o caso.
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Da Reserva Biológica de Tinguá, localizada na cidade de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, viralizou uma das imagens mais impactantes dessa temporada de incêndios no Rio de Janeiro. Um dos símbolos do horror das queimadas. Um guarda-parques do INEA publicou uma foto de um bicho-preguiça totalmente carbonizado. Na mesma postagem, o perfil incentivou denúncias contra pessoas que tenham colocado fogo nas matas.
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Da mesma maneira, os incêndios têm sido devastadores no interior do estado, com impactos não menos graves. Nova Friburgo, por exemplo, uma cidade conhecida por ser um roteiro turístico de baixas temperaturas, não ficou imune ao calor acima do normal e aos incêndios. No Facebook, Nova Friburgo em Foco deu destaque às chamas que se alastraram por um morro do município. Moradores também registraram o ocorrido.
Como um todo, o estado do Rio de Janeiro registrou neste ano de 2024 o maior número de queimadas desde 2017, a maioria deles com indícios criminosos. Até o dia 20 de setembro, a Polícia Civil já havia identificado 34 autores de incêndios. No entanto, ainda há muito mais a ser investigado.
A Amazônia, o Pantanal e outros Biomas em Chamas
No fim de agosto, viralizou um vídeo do fogo chegando à Aldeia Ytu, na Terra Indígena Apiaka Kaiabi Munduruku, na Amazônia do Mato Grosso. Um dos bombeiros presentes na aldeia filmou cenas dramáticas de famílias correndo das chamas, levando consigo só a roupa do corpo e o que podiam carregar nas mãos. No post, ele fazia uma crítica à infraestrutura precária disponível para os brigadistas e à falta de pessoal para combater os incêndios.
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A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB)—preocupada com a vida dos indígenas brasileiros e com o uso criminoso do fogo, inclusive como arma de remoção de aldeias e grilagem de terras—denunciou o agronegócio pelas queimadas. O movimento indígena espera investigação, punição para os incendiários e mitigação dos danos causados.
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Mídias comunitárias de favela, como o Voz das Comunidades, também denunciaram o papel do agro nas queimadas generalizadas que têm atingido o Brasil nos últimos meses. Também submetidos à lógica do racismo ambiental, assim como os brasileiros do norte, comunicadores populares das favelas cariocas entendem a importância de preservar a Amazônia, de manter a floresta em pé.
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É importante remarcar que os povos originários no Brasil são os maiores responsáveis por manter a Floresta Amazônica, a Mata Atlântica, o Cerrado, o Pantanal e a Caatinga de pé. O Brasil já apresenta um mapa com temperaturas acima da média esperada. Não é coincidência que os locais mais impactados com os recordes de temperatura, de seca, de incêndio e de péssima qualidade do ar estão nas áreas de intenso desmatamento e de interesse para a expansão do agronegócio e do garimpo ilegal.
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Essa correlação inegável entre agronegócio, aumento das temperaturas, das recorrências das secas e das queimadas florestais fez com que o Ministro Flávio Dino do Supremo Tribunal Federal (STF) levantasse a discussão da desapropriação de terras com desmatamento e queimadas criminosas. Para o ministro, é preciso a alargar o entendimento do Artigo 243° da Constituição Federal do Brasil. Segundo o dispositivo, propriedades rurais e urbanas onde haja “culturas ilegais” ou exploração de trabalho escravo devem ser expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular. Segundo Dino, a aplicação do artigo 243 no combate às queimadas pode se mostrar efetivo, já que afasta o incendiário da posse da terra e a coloca sob a guarda da reforma agrária, da agricultura familiar e dos programas de habitação sociais, opções que, em geral, resguardam relações bem mais saudáveis com os recursos naturais e com a terra.
Sobre o autor: Euro Mascarenhas Filho é jornalista, colaborador do Núcleo Piratininga de Comunicação, comunicador popular, e autor do programa de podcast Antena Aberta.