A Economia Informal no Rio: Histórias da Pedra do Sal e Além

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“Uma promoção pra você: dez Reais, três Antárticas!” “Queijo Minas! Queijo Minas! Cinco Reais!”

Os gritos dos vendedores ecoam na noite abafada, sobressaindo-se ao burburinho das risadas dos foliões e ao som das batidas das rodas de samba. À luz baixa, o tráfego de pedestres para por um momento quando uma mulher com roupas coloridas em pernas de pau abre caminho pela multidão.

Para o visitante de primeira viagem, essa pode parecer uma ocasião especial, mas é só mais uma noite de segunda-feira na Pedra do Sal no bairro Gamboa na Região do Porto do Rio, uma comunidade quilombola histórica conhecida por ser o berço do samba e considerada hoje o local das festas semanais mais populares da cidade.

A mundialmente reconhecida vida noturna no Rio, como tantos outros aspectos da cidade, é marcada pela informalidade e improvisação, inclusive na Zona Sul. Depois que escurece, da Lapa até a Gávea, de Botafogo à Praça São Salvador, espaços oficiais ficam em segundo plano enquanto um aglomerado de foliões conforme a festa que toma a rua, junto à cachaça, música e danças improvisadas.

Espalhados pela cidade, porém, há milhares de vendedores ambulantes, que passam despercebidos, mas abastecem a festa com caipirinhas, churrasco e água, mantendo-a viva e crescente até de manhã. Muitos desses trabalhadores moram em favelas da Zona Norte e Oeste, e na Baixada Fluminense, e se deslocam por longas distâncias trabalhando fora do mercado formal, como empreendedores independentes, alguns por escolha própria, outros por necessidade.

Eles são apenas uma pequena parte da grande “economia informal” do Rio, que, de acordo com algumas estimativas, compreende cerca de 60% da força de trabalho nesta cidade de 6,5 milhões de habitantes.

Festa na rua:  Milhares de pessoas vão para a Lapa todos os fins de semana, onde as festas de rua geralmente vão até o amanhecer. É uma área tanto lucrativa quanto arriscada para os vendedores–a demanda é alta, mas a ação da polícia é comum e imprevisível.

A “Economia Informal”: Uma breve introdução

Enquanto o nome e escopo são assuntos de debate entre economistas e sociólogos, a “economia informal”–também conhecida como “economia subterrânea”, “Sistema D” ou “mercado cinza”–é, certamente, uma força na economia global. É geralmente caracterizada por trabalhos sem registro e não regulamentados, desprotegidos pelos governos, frequentemente sem contribuição de impostos e com transações, em sua maioria, em dinheiro. É considerado um sistema espontâneo e improvisado por natureza, aparentemente caótico, mas muitas vezes mantido por redes complexas, baseadas em confiança e auto-organização.

Quando analisados como um todo, os valores da economia informal equivalem a 10 trilhões de dólares por ano, sendo a segunda maior economia do mundo, ficando atrás dos Estados Unidos.

E está crescendo rapidamente.

Em 2009, o número de habitantes em cidades ultrapassou o número de habitantes em áreas rurais pela primeira vez na história do mundo. Com quase toda a população em crescimento do planeta concentrada em países em desenvolvimento, demógrafos e economistas estimam que nos próximos 15 anos, cidades em economias emergentes corresponderão a 50% do crescimento econômico do mundo.

Em 2016, estimou-se que 2 bilhões de pessoas trabalham sem registro em todo o mundo. Essa fusão de mudanças demográficas, globalização e urbanização criou uma economia global e moderna em que, até 2020, dois em cada três trabalhadores terão empregos informais, de acordo com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

No Rio, a semanal festa de rua na Pedra do Sal oferece um vislumbre da estrutura de um grande ecossistema econômico informal e uma brecha para as vidas e motivações de diversos trabalhadores individuais.

‘Caipirinha! Caipirinha!’: Histórias da Pedra do Sal

Apoiado em seu carrinho de supermercado abrigado de modo improvisado por seu guarda-chuva vermelho, um jovem fala sobre seu modelo de negócio.

“Eu compro as cervejas, por R$4,00 cada garrafa. Aqui, posso vender por R$6,00, até R$7,00 se estiver lotado”, comenta Gabriel. “Se tiver muita gente, ganho R$800,00 em vendas, o que dá R$300,00 de lucro”.

Gabriel cresceu e ainda mora em Duque de Caxias, município vizinho do Rio de quase 1 milhão de habitantes e que fica a uma hora ao norte do Centro do Rio. Devido à atual crise econômica no país, oportunidades de empregos formais para jovens sem educação avançada são raras.

Assim, ele improvisa.

São duas viagens por semana a um depósito, onde ele pode comprar caixas de Heineken, Brahma e Antárctica a preço de custo. Toda segunda-feira de manhã, ele vai até a casa de seu amigo Francis, no Morro da Providência, nas proximidades da Pedra do Sal, onde guarda seus produtos em seu carrinho.

“O objetivo é simples. Tento vender tudo que tem no meu carrinho”, ele conta. “Às vezes leva algumas horas, às vezes a noite toda, mas quando eu vendo tudo, vou pra casa, porque significa que foi uma noite boa”.

Francis, seu companheiro mais experiente, ri. “Você é preguiçoso, cara! Quando eu vendo tudo rápido e ainda tem muito movimento, eu pego um táxi para casa e pego mais cerveja para vender”.

Negócio de família: Gabriel (à esquerda) guarda seus produtos na garagem de Francis (à direita) no Morro da Providência. A esposa de Francis é tia da noiva de Gabriel. Toda segunda, Gabriel vai até o Rio de trem e se encontra com Francis na Providência para então fazer o trajeto de meia hora com seu carrinho até a Pedra do Sal.

Para Gabriel e tantos outros jovens vendedores excluídos da formalidade, a venda de cerveja se tornou um meio de vida em tempo integral. Eles buscam festas e eventos no Facebook e outras redes sociais e algumas vezes chegam horas antes para instalar seus carrinhos nos melhores lugares, com base na ordem de chegada.

Mas para outros, o negócio informal na madrugada é apenas uma forma de fazer as contas fecharem em uma economia cada vez mais opressiva para a classe trabalhadora. O salário mínimo no Brasil de R$5,85 por hora, junto a um crescente custo de vida, contribuíram para o aumento do setor informal.

Rafael, vendedor de meia idade na Pedra do Sal, tem um emprego formal como recepcionista e ajudante de cozinha em um restaurante italiano há 22 anos. Ele ganha mais do que o salário mínimo, mas mal chegando a R$1400,00 por mês. O salário cobre as necessidades básicas da família que mora em uma favela próxima, mas não deixa margem para investimentos, como a escola particular que ele gostaria que as duas filhas frequentassem, devido à baixa qualidade da rede pública no Rio.

“Às vezes eu ganho mais dinheiro em poucas horas vendendo caipirinhas do que em uma semana no restaurante”, ele comenta. “Claro que prefiro não trabalhar até tarde da noite, mas vale a pena para poder ajudar minhas filhas”.

Rafael prepara uma caipirinha. Ele complementa sua renda de trabalho formal trabalhando na economia formal algumas noites por semana.

Rafael não está sozinho. As margens de lucro no setor informal podem ser incrivelmente altas, algumas vezes tirando trabalhadores do setor formal completamente.

Um vendedor de caipirinha chamado Manuel explica como ele compra garrafas inteiras de Cachaça 51 por R$8,00 e vende caipirinhas por R$8,00 cada, sendo uma garrafa suficiente para fazer de oito a nove bebidas. Mesmo considerando o custo dos limões, do açúcar e do transporte para comprar os ingredientes, ele ainda calcula sua margem de lucro acima de 600%.

“Eu vendia cerveja, mas vale mais a pena fazer caipirinhas, porque a margem de lucro é bem melhor.”

Essas margens não se restringem às bebidas. Robert Neuwirth, jornalista americano cujo trabalho abrange mercados informais, descobriu que a média de comerciantes de rua que vendem sapatos em Lagos, Nigéria tem margem de lucro, sobre um par de tênis, maior do que grandes lojas varejistas internacionais.

Níveis de informalidade: Cantinho do Zé funciona como um pop-up bar (bar sazonal) na garagem de uma família que mora na rua principal na Pedra do Sal.

Informalidade estruturada

Na Pedra do Sal, vendedores de fora da comunidade, como Gabriel e Rafael, operam nas margens de um ecossistema informal em camadas capaz de mover dezenas de milhares de dólares em uma noite movimentada.

No nível mais formal, operam dois bares na rua principal, sendo que um deles também funciona como uma discoteca em noites de festa. Há também diversas casas que abrem suas garagens para vender bebidas e salgados, muitas vezes cobrando até para o uso de banheiros. No nível das ruas, pontos de venda no cruzamento da rua central ficam reservados para vinte barracas vermelhas e brancas. Para ter uma barraca é preciso morar na comunidade, em uma espécie de sistema de licenciamento, pagar R$50,00 para um homem que guarda as barracas e oferece serviços de “segurança”.

Caso um vendedor de fora da comunidade, como Gabriel, tente colocar seu carrinho em um ponto reservado para as barracas, este homem o expulsa. Ter uma barraca na rua principal tem seus benefícios: vendedores dizem que conseguem R$2000,00 em vendas, R$1200,00 em lucro por noite, geralmente divididos entre as duas ou três pessoas que trabalham na barraca. Mais afastado do coração dos eventos, ficam os carrinhos e bicicletas de vendedores que não são moradores da comunidade. Eles operam perto das entradas e saídas da rua.

A economia de “serviço de vendedor” cresceu em torno das vendas informais. Manuel conta que paga R$50,00 por semana a um homem dono de um depósito próximo para tomar conta de seu carrinho e produtos em estoque, que são muito pesados para levar morro acima até sua casa na favela toda noite. A taxa cobre tanto o armazenamento quanto o seguro, já que este tipo de depósito tem sido alvo de batidas policiais organizadas pela prefeitura nos últimos anos. Mas o acordo feito com Manuel garante que o dono do depósito irá compensá-lo caso suas mercadorias sejam confiscadas.

Pedra do Sal vista de cima. As barracas no cruzamento central são as mais desejáveis, e os vendedores devem pagar R$50,00 por noite de aluguel, para um homem que oferece a segurança do espaço. Imagem de Luke Kon

Debate Político: A formalização é o melhor caminho para todos?

Os camelôs são os exemplos mais visíveis da economia informal, portanto não é surpreendente ver que eles foram alvos da Prefeitura para a “formalização” e “limpeza” de sua imagem (veja: “É Para Inglês Ver”) antes da Copa do Mundo e dos Jogos Olímpicos. O Prefeito Eduardo Paes tratou isto como uma prioridade desde o início de seu mandato, aprovando uma variedade de decretos que regulam o comércio de rua e registram os vendedores ambulantes.

Enquanto isso, o governo federal instituiu o programa Microempreendedor Individual (MEI), que pretende encorajar trabalhadores informais a se formalizarem, em um sistema livre de impostos–para começar a receber os benefícios do governo é preciso pagar uma taxa mensal. Mundialmente elogiado por seu processo online de registro simples e não burocrático, a licença também oferece acesso ao sistema financeiro por sua facilidade em gerar uma conta em banco, criação de negócio online sem impostos e subsídio para máquinas de cartão de crédito para os vendedores de rua.

Irenaldo da Silva, presidente da Associação de Moradores de Pica-Pau, uma favela na Zona Norte, onde a maioria dos moradores trabalha informalmente, acredita que o programa de licenciamento é um passo na direção certa: “Esta é uma política do governo que eu sou a favor. Encorajo todo mundo na comunidade que tem um negócio a se inscrever, porque traz muitos benefícios”.

Um lojista chamado Roberto concorda. “Eu vendia roupas caras, mas por causa da crise as pessoas da comunidade não têm dinheiro para comprar roupas caras, então eu mudei de negócio, agora vendo material escolar e de escritório”, ele explica, mostrando sua nova loja cheia de cadernos e outros materiais escolares. “Me inscrevi no MEI e por ter a licença, consegui descontos em produtos para começar esta loja”.

Mas alguns proprietários nessa comunidade ainda não se convenceram. Um morador chamado Marcelo, que vende frango assado em frente à sua casa reclama que paga R$45,00 mensais pela licença, mas não recebe benefícios. Irenaldo da Silva sugere que alguns proprietários na comunidade talvez não entendam completamente os benefícios que o programa oferece e, portanto, se ressentem.

Falta de conhecimento sobre os benefícios do programa pode ser uma explicação para o percentual relativamente baixo de adesão. Outra possibilidade, sugerida pelo professor de estudos sociais e políticos Adalberto Cardoso, é que para pessoas que tiveram toda a sua sociabilização formada em meio à informalidade–desde da casa, acesso à eletricidade e seu relacionamento com o estado–tornar-se formalizado e, portanto, ‘visível’ a um governo no qual não vale a pena confiar, é visto como arriscado e caro.

Outras críticas ao MEI afirmam que ele contribui para a criminalização da pobreza. No revitalizado bairro da Lapa, a prefeitura se uniu à Antárctica para criar um “Mercado Noturno” de 82 boxes de vendas com o patrocínio da marca, reservando a exclusividade na comercialização de cerveja. Vendedores atuando fora dos 82 boxes formalizados são submetidos a frequentes batidas policiais nas quais seus carrinhos e produtos são confiscados.

Vários vendedores por toda a cidade afirmam ter receio de trabalhar na região, apesar das grandes multidões e potencial de negócios.

Alguns vendedores adotaram a nova licença da prefeitura de “microempreendedor”, que, entre outros benefícios, permite que eles conquistem facilmente um terminal de vendas com cartão de crédito. Outros reclamam que os custos da formalização superam os rendimentos.

O relacionamento entre governos, empresas e economia informal terá um papel crucial na formação da economia em cidades e países em desenvolvimento no século 21. Em vez de submeter empreendedores informais à condenação geral e formalização forçada, uma tentativa para melhor entender o valor da informalidade no trabalho é um importante passo inicial para a criação de políticas que guiarão e sustentarão a economia global moderna.