Museus de Contranarrativas e Resistência, Parte 3: Museu da Maré #SemanaDeMuseus

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Esta é a terceira matéria, de uma série de cinco partes, sobre museus comunitários e resistência nas favelas do Rio em homenagem à 16ª Semana de Museus (16 a 20 de maio de 2018).

Claro que têm pessoas que são coitados, que são violentos, mas essas pessoas não representam este lugar.” – Diretora do Museu da Maré Cláudia Rose Ribeiro 

O Complexo da Maré, na Zona Norte do Rio, é composto por 16 favelas. Com mais de 130.000 habitantes, segundo o Censo de 2010 (embora estimativas recentes calculem aproximadamente 140.000 habitantes), a Maré é o maior complexo de favelas do Rio. Antes dos primeiros colonos chegarem ao que hoje é conhecido como Morro do Timbau, essa parte da Baía da Guanabara era formada por um arquipélago de nove ilhas onde pequenas comunidades pesqueiras indígenas residiram por mais de 8.000 anos.

Desde o final do século XIX, no entanto, a Maré tem sido a base sobre a qual “vários governos realizaram seus experimentos”, segundo o museólogo Mario Chagas. Uma grande intervenção veio como parte das reformas urbanas durante o governo do Prefeito Pereira Passos (1902-1906), no qual o Rio seria transformado em uma “Paris tropical”. Muitas pessoas foram removidas das áreas mais pobres da Zona Sul e do Centro da cidade e se estabeleceram na região da Maré. Uma onda de desenvolvimento industrial no Rio nos anos 1940 e 1950 fez com que as áreas ao redor da Maré se tornassem alvos imobiliários, restando aos pobres ocupar o pântano à beira da Baía de Guanabara. Esses projetos industriais atraíram migrantes das regiões Nordeste e Centro-Oeste, que também se estabeleceram na Maré. Um desses projetos foi a construção da principal rodovia do Rio: a Avenida Brasil. Durante esse período, o Morro do Timbau não era apenas a única área continental da Maré, mas também era cercado por água e pântanos. Com o aumento da migração, as famílias construíram suas casas sobre palafitas na água.

Essas casas de palafitas estavam inevitavelmente atreladas ao estigma das favelas e se tornaram um “símbolo da pobreza nacional”, escreve Mario. A ditadura militar comandada por João Baptista Figueiredo concebeu o Projeto Rio, um grande projeto de recuperação de terras que removeu os moradores das palafitas, aterrou e construiu casas pré-fabricadas nestes terrenos. As comunidades Vila do João, Vila do Pinheiro, Conjunto Pinheiro e Conjunto Esperança foram formadas desta forma. Mais à diante na Zona Sul do Rio nos anos 1950 e 1960 sob a gestão do Governador Carlos Lacerda favelas inteiras foram removidas e muitos moradores se mudaram também para a Maré. Nova Holanda, por exemplo, é uma favela que começou como um projeto habitacional provisório construído para abrigar moradores removidos de favelas como Praia do PintoFavela do EsqueletoMorro da Formiga e Morro do Querosene.

O nome “Maré” reflete a história única de uma comunidade que se desenvolveu literalmente fora da água por meio de ações formais e informais. Em 1994, a Maré foi oficialmente reconhecida como um bairro. Hoje, a Maré passa por processos de ocupação militar e invasões policiais e a introdução do narcotráfico na década de 1990 dividiu o complexo de favelas em áreas controladas por facções rivais, dificultando a circulação na comunidade. Apesar disso, o complexo de favelas é unido por sua rica e variada cultura, diversidade histórica e voz de resistência, tudo o que seu museu comunitário conscientemente exibe.

Contranarrativa no Museu da Maré

O Museu da Maré foi criado em 2006. O museu é afiliado à ONG CEASM (Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré), que desenvolve um pré-vestibular comunitário altamente bem sucedido. Um dos principais objetivos do museu, portanto, é preservar as memórias e a história da Maré, a fim de proporcionar aos jovens um senso de orgulho e valor para com o local onde vivem quando vão para a universidade. A diretora do Museu da Maré, Cláudia Rose Ribeiro da Silva, explicou:

Queremos que nossas crianças entendam que a memória pode ser utilizada como ferramenta para elas se identificarem com suas casas e com sua comunidade. Quando elas forem para a faculdade queremos que elas sintam orgulho de onde vieram. Elas não precisam sentir que não pertencem naquele lugar, ou se sentirem gratas por estar ali. Elas têm o direito de estar ali.”

O Museu da Maré coleta dois tipos de informações: informações sobre como era a Maré e as mudanças que ocorreram na comunidade até os dias de hoje, e histórias pessoais dos moradores. Os líderes do museu coletam recortes de jornal das aparições da Maré nos principais jornais O Globo e Extra (o mais antigo remonta a 1936), bem como fotos, objetos, vídeos, histórias orais de moradores e documentos relevantes do Arquivo Nacional. Material acadêmico e um arquivo do jornal comunitário O Cidadão também são armazenados.

O museu, no entanto, não registra ou coleta informações sobre violência e tráfico de drogas além dos recortes da mídia nacional. A arquivista do museu, Marli, explicou que, além do perigo de manter tais registros, “elas são memórias que não vamos esquecer facilmente”. Isso não quer dizer que a questão da violência seja evitada, mas é tratada na exposição, em vez do arquivo.

A face mais pública da contranarrativa do Museu Maré é apresentada em sua exposição permanente, onde as principais representações negativas da comunidade, pela mídia, são abordadas em seções como ‘Tempo da casa’ e ‘Tempo do medo’.

O ponto central da exposição do museu é uma réplica de uma das palafitas removidas como parte do Projeto Rio. Restaurar essa imagem simbólica da comunidade é em si mesmo um ato de desafio. A cor azul brilhante da casa representa e celebra a estrutura, e objetos doados por moradores de suas próprias casas são dispostos no interior, enchendo a casa de lembranças pessoais. A descrição da seção ‘Tempo da casa’ começa com “tempo da casa, do aconchego e da segurança”, transformando a casa de “símbolo da pobreza nacional” em um espaço de proteção. Dessa forma, a casa que uma vez foi apresentada como uma imagem de miséria é exibida com orgulho como parte fundamental da história da comunidade.

A exposição não vê a história da Maré com óculos cor-de-rosa. A descrição da seção ‘Tempo da casa’ termina com “Tempo da casa, do aconchego… mas e a segurança?”. Ocupações militares, invasões policiais e guerras de drogas criaram um clima de instabilidade na comunidade. A seção ‘Tempo do medo’ não apenas aborda isso, mas também as representações hiperbólicas da mídia sobre a Maré como zona de guerra e seus habitantes como perpetradores de violência. Uma busca rápida pelo “Complexo da Maré” no site do maior órgão de mídia do Brasil, a Globo, por exemplo, produzirá histórias exclusivamente de violência e invasões relacionadas às drogas na primeira página.

O museu reformula a presença de violência na comunidade. Cláudia explicou que “muitas pessoas queriam que este tempo fosse ‘Tempo da violência’. Mas existe violência fora da comunidade também. Aqui o maior problema é medo”. Assim, o museu desafia as representações dominantes sobre os moradores de favelas e os mitos da marginalidade, demonstrando que os moradores de favelas, como moradores do asfalto, também são vítimas da violência. Claudia refletiu:

Acho que pessoas de fora vêem este lugar como um lugar de privação ou de violência, ou como lugar do pobre coitado favelado ou do agressor. Claro que têm pessoas que são coitados, que são violentos, mas essas pessoas não representam este lugar.”

A exibição é incrivelmente poderosa. Possui uma caixa de vidro contendo balas e suas cápsulas, que foram coletadas nas ruas da comunidade, atrás das quais há uma parede composta de mais de cem moldes de gesso de buracos de bala ao redor da favela. O cenógrafo do museu Marcelo Vieira trabalhou com alunos do ensino médio para coletar essas balas e fazer os moldes. Ao requerer que esses estudantes prestassem muita atenção à estrutura, à textura das paredes, à forma e profundidade do buraco da bala–desenvolvendo uma técnica artística que pudesse ser aplicada a outros objetos–o projeto visou provocar uma mudança na maneira como os participantes percebem o ambiente ao fazer do familiar não familiar. Ao trazer à realidade da favela para o museu, o museu também consegue colocar o visitante na pele de um morador, ajudando-o a entender o clima de medo do ponto de vista da comunidade, para mostrar o morador da favela como alguém que também “tem medo”, e não como o criador do medo.

O museu é usado como uma ferramenta para diretamente inverter a dinâmica do poder, abordando a ausência da comunidade nos registros nacionais, reformulando as percepções do público e moldando ativamente o processo de produção histórica para produzir a própria narrativa da comunidade. Enquanto o Museu da Maré coloca uma forte ênfase na documentação, o próximo estudo de caso mostrará como o arquivo do Horto é usado como ferramenta de contestação.

Esta é a terceira matéria, de uma série de cinco partes, sobre museus comunitários e resistência nas favelas do Rio em homenagem à 16ª Semana de Museus (16 a 20 de maio de 2018).

Gitanjali Patel é pesquisadora e tradutora. Ela é mestre em Antropologia Social pela SOAS, Universidade de Londres. Sua pesquisa analisa a memória e a produção da história nas favelas do Rio de Janeiro.


Série Completa: Museus de Contranarrativas e Resistência

Parte 1: Museus Brasileiros no Contexto
Parte 2: Um Novo Tipo de Museu
Parte 3: Museu da Maré
Parte 4: Horto Florestal
Parte 5: Museu das Remoções