Em 1807, o Parlamento do Reino Unido aprovou uma lei abolindo o tráfico internacional de escravos dentro do Império Britânico. A maioria da pressão para a aprovação da lei veio de grupos religiosos liderados pelos Quakers, que iniciaram em 1787 uma cruzada humanitária anti escravidão, baseada em valores liberais de liberdade e na ideia de que todos os homens nascem iguais. No entanto, havia uma grande variedade de fatores que levaram o Reino Unido a erradicar um sistema que trouxe consideráveis lucros (estima-se que os Britânicos transportaram 3 milhões de africanos entre 1700 e 1810), sendo um deles que a escravidão teve seu sentido esvaziado, de um ponto de vista econômico, conforme a Revolução Industrial floresceu com o livre comércio e mão-de-obra.
Seguindo a abolição na Grã-Bretanha, abolicionistas britânicos começaram a visar outras nações. Em 1810, a Grã-Bretanha assinou um acordo de aliança com Portugal, que tinha começado a enviar africanos como escravos para o Brasil já em 1533. O acordo incluía planos para a gradual abolição do comércio de escravos e foi seguido por um tratado em 1815 que melhor definiu o caminho para a abolição. No entanto, como este comércio permaneceu um dos aspectos mais importantes da economia colonial de Portugal, pouco foi feito para colocar o acordo em prática.
Com a independência do Brasil em 1822, a Grã-Bretanha acreditava que aumentaria a cooperação do jovem país, sobretudo considerando que o Brasil recebia mais africanos escravizados que qualquer outro país naquele tempo. Em retorno ao reconhecimento internacional de sua independência, a Grã-Bretanha exigiu que o Brasil assinasse um acordo semelhante ao que tinha sido assinado com Portugal. Em 1827, um tratado foi ratificado prometendo que a importação de escravos para o Brasil terminaria em um prazo de três anos. Durante este período, o número de africanos entrando no Brasil cresceu rapidamente. Temendo as (supostas) futuras restrições, os comerciantes aumentaram seus negócios, ampliando em cerca de 25.000 vendidos em 1825 para 44.250 em 1829.
Por várias razões, houve forte resistência ao plano proposto. Em primeiro lugar, ele ameaçou destruir a economia agrícola do Brasil, que era baseada fortemente no trabalho escravo. Em segundo lugar, seria colocar a elite negociante de escravos, politicamente influente, para fora do negócio. Além disso, a abolição foi vista como uma ameaça à soberania nacional; foi alegado que, em vez de motivos humanitários, a Grã-Bretanha queria reduzir a influência brasileira na África, visando estender o seu império.
Entretanto, em 7 de novembro de 1831, o tratado definitivo, conhecido como Lei Feijó–em nome de um padre que foi fundamental nas negociações–declarou que todos os africanos que entrassem no Brasil a partir daquela data seriam livres. Os primeiros anos do acordo foram relativamente bem-sucedidos: embora o comércio de escravos não tenha parado, apenas 26.095 escravos entraram no país entre 1831 e 1836. No entanto, entre 1836 e 1840, esse número explodiu para 201.140 pessoas. Assim, a Lei Feijó veio a ser conhecida como a “lei para inglês ver”. Mercadores de escravos, que eram alguns dos homens mais ricos da sociedade brasileira, conseguiram impedir a aplicação prática da lei e o número de escravos no Brasil, na verdade, aumentou dramaticamente.
Os mercadores de escravos foram capazes de mitigar os impactos da lei, por fazerem parte de uma elite dominante que controlava todos os aspectos da sociedade brasileira. Eles tinham redes de fornecedores na África, relações com agentes comerciais em vários países, além de empregarem muitas pessoas. Além disso, eles tinham fortes ligações nas cortes de Justiça e na Câmara dos Deputados, bem como o apoio da polícia e outras autoridades locais. O tratado de 1827 tinha dado a Grã-Bretanha o direito de deter e prender suspeitos navios negreiros brasileiros, mas, no tratado de 1831, que anulou o antigo, os suspeitos seriam julgados por meio do sistema judiciário brasileiro. O sistema brasileiro estava cheio de pessoas que se beneficiavam do comércio de escravos. Nos termos da lei, os donos de escravos eram agora considerados sequestradores e sujeitos a pesadas sanções financeiras; no entanto, com o apoio daqueles no poder, a impunidade era praticamente garantida para infratores. Além disso, muitos dos navios que possam ter sido usados para aplicar a lei foram dirigidos para reprimir revoltas no norte e no sul do país, em vez de controlar o porto do Rio de Janeiro (o destino No. 1 de escravos no mundo).
A noção de “para inglês ver”, portanto, sugere que a assinatura da lei pelo Brasil foi puramente para aplacar a Grã-Bretanha, quando realmente não houve intenção de realizar as promessas nela expressas.
O que “para inglês ver” significa hoje
Atualmente, uma lei, política ou projeto “para inglês ver” (PIV), é algo que, visto de fora, parece resolver o problema, mas que na prática é apenas uma alteração superficial, uma melhora temporária ou exercício de relações públicas destinado a apaziguar os interesses comunitários e a opinião pública doméstica e internacional. Faz pouco para beneficiar aqueles que se propõe a ajudar, ou porque apesar de bem-planejada, a execução da política é mal conduzida e facilmente corruptível, ou porque é projetado por motivos políticos em vez de sociais ou filantrópicos. Esta situação se apresenta quando as autoridades públicas não têm o desejo genuíno ou vontade política para instituir a mudança necessária, e é costume que seja acompanhada por uma extensa campanha publicitária destinada a promover a política. As favelas do Rio, cujas origens são intrinsecamente ligadas ao fim da escravidão no Brasil, e cujo território e cidadãos têm sido historicamente negligenciados pelos criadores de políticas públicas, são particularmente afetados por estes tipos de política.
Podemos separar os projetos PIV recentes no Rio de Janeiro em três categorias. Primeiro são os projetos arquitetônicos caros e muito visíveis, com boa aparência, mas que são vistos mais como atrações turísticas do que como forma de atender às verdadeiras necessidades dos moradores das favelas. Segundo são os projetos que são lançados com grande alarde e cujas promessas são amplas, mas que no final das contas são apenas parcialmente concluídos, mal mantidos, ou acabam largados completamente. E, por último, os projetos-legado dos megaeventos que geram ibope, mas têm pouca ligação com a realidade. Aqui estão alguns exemplos:
O PAC e o teleférico do Alemão
O teleférico do Complexo do Alemão foi lançado em 8 de junho de 2011, a um custo de R$210 milhões. A população do Alemão é de aproximadamente 70.000 habitantes de acordo com o censo 2010, no entanto, a capacidade máxima do teleférico–incluindo turistas–é de 30.000 por dia, o que tem levado as pessoas a colocarem em questão se é uma atração para os visitantes ao invés de um tão necessário método de transporte para os moradores. Debates sobre a capacidade são mínimos, no entanto, pois mesmo com a redução de custos para os moradores (R$ 1), apenas 28% dos moradores do Alemão são registrados e cerca de apenas 17% utilizam o teleférico diariamente, enquanto 30% dos usuários são turistas. O ativista local Alan Brum alegou desde o início das propostas para o teleférico que os moradores não iriam subir o morro para chegar a uma estação, que o que era necessário, na verdade, eram outros modos de transporte alternativo e melhor acesso à estrada. Ele também destacou que os potenciais gastos de turistas só afetariam um restrito número de empresas em torno das estações, enquanto pouco alcançaria a maioria da comunidade. Porém, o mais importante é que o teleférico do Alemão foi construído pelo PAC após um amplo processo de consulta popular na comunidade, durante o qual os moradores claramente ressaltaram suas prioridades: esgoto e saneamento básico no topo da lista. Entretanto, estas reivindicações não se concretizaram.
Também conhecido por prioridades públicas equivocadas, o programa do PAC em Manguinhos escolheu ignorar o esgoto que transborda pelas ruas da comunidade e ao invés disto desenvolver uma biblioteca, e ter o arquiteto mundialmente famoso Jorge Jauregui projetando um viaduto ferroviário na vizinhança, enquanto há esgoto a céu aberto regularmente nas ruas, visitadas pelo Papa em 2013. Na favela da Rocinha, os investimentos iniciais do PAC favoreceram a altamente visível passarela projetada pelo Niemeyer, para substituir uma já existente, e um complexo desportivo visível a partir da estrada principal, mas que exala esgoto. Os moradores estão lutando contra o projeto de teleférico da prefeitura em favor da sua prioridade: saneamento básico.
Providência e o Porto Maravilha
Apresentado como o “segundo Pão de Açúcar” pelo Prefeito Eduardo Paes, o segundo teleférico em uma favela da cidade liga a Providência, a estação ferroviária Central do Brasil e o bairro da Gamboa, abrangendo uma distância de 721 metros. Um ano após a finalização da construção do teleférico na Providência, nenhuma das gôndolas estava em funcionamento. Embora seu lançamento tenha sido amplamente promovido, seu funcionamento tem sido limitado, operando apenas por algumas horas na parte da manhã e, em seguida, um pouco na parte da tarde. Isso significa que muitos moradores não conseguem utilizar o teleférico durante a semana. A fim de construir a estação, a Prefeitura destruiu a Praça Américo Brum, o principal espaço de lazer da comunidade, com a construção de um centro esportivo prometido em troca nunca iniciado. Dezenas de famílias foram removidas à força para o projeto e, em última instância, a Prefeitura teve de parar maiores alterações na área devido à vitória jurídica da comunidade, baseada na falta de consulta pública para as ações. Em uma entrevista, o morador Roberto Marinho lamentou o fato das favelas muitas vezes receberem construções de altíssimo investimento financeiro, quando o que eles realmente necessitam é o investimento nas necessidades mais básicas, como saneamento. Ele diz que se a mobilidade fosse realmente o foco da Prefeitura, o governo teria construído um elevador, como o do Cantagalo. É importante notar, no entanto, que, após um lançamento com grande alarde, a torre superior do elevador do Cantagalo, terminado em 2010, nunca operou. Apenas a torre inferior é operável.
Morar Carioca
Teoricamente, o Morar Carioca foi planejado para ser o mais progressista e abrangente programa de modernização de favelas da história do Rio: como um dos principais legados olímpicos, o Prefeito Eduardo Paes prometeu que todos os serviços de infraestrutura seriam entregues a todas as favelas cariocas até 2020. Com um orçamento de R$8 bilhões, o maravilhosamente bem redigido programa era destinado a “integrar todas as favelas na cidade formal”, através de extensas melhorias em sistemas de saneamento e redes de transportes, instalação de sistemas de drenagem, pavimentação e iluminação das ruas e construção de espaços verdes, áreas de lazer e centros de serviço social. O Morar Carioca foi projetado para ser desenvolvido a partir dos sucessos e limitações do programa Favela-Bairro da década de 1990, apresentando em maior grau consultas constantes entre as equipes de arquitetos e os moradores que seriam afetados. Depois de muita promessa e esperança gerada entre os moradores de favelas, lideranças locais e os urbanistas, o programa foi abandonado e seu nome reapropriado. A falta de investimento e vontade política fez o real programa ser lentamente desmontado. Enquanto isso o seu nome ainda é amplamente utilizado pela Prefeitura e seus funcionários, que inclusive ganharam um prêmio internacional com base no programa praticamente inexistente. Hoje, Morar Carioca tornou-se um rótulo associado às remoções, já que a Prefeitura chegou a usar a marca bem-considerada do programa como faixada para remoções em diversas comunidades.
UPP Social
UPP Social foi o programa paralelo às Unidades de Polícia Pacificadora de favelas (UPPs), para proporcionar integração social e econômica, articulando e promovendo serviços públicos faltantes para além da segurança nas favelas pacificadas. Isto seria realizado por meio da criação de fóruns de discussão nas comunidades, estimulando atividades culturais e de lazer, além de oferecer programas de formação profissional para a juventude. O site oficial do programa era atualizado regularmente com os relatórios e fotografias profissionais dos eventos comunitários organizados pelo programa, e no ano passado a UPP Social foi reconhecida pela Organização das Nações Unidas como uma “sólida inspiração para intervenção em regiões marginalizadas de países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento”. No entanto, muitos moradores de comunidades pacificadas, nem sequer sabem o que foi o programa. A UPP Social prometeu altos níveis de participação dos moradores de favelas, mas na maioria dos casos as sugestões ou reivindicações dos moradores nunca chegaram perto de se concretizarem. Em uma entrevista, um morador do Cerró-Cora resumiu o programa como o típico “para inglês ver“: “Eu não acho que eles estão interessados na opinião dos moradores de favelas. Eles perguntam porque eles tinham que perguntar, para poderem dizer que perguntaram”. O elemento social, tão importante como um complemento ao programa de policiamento, nunca chegou, o que significa que a UPP é mais uma política de policiamento do que o programa global que poderia ter sido. Tal foi o estigma associado ao programa que, em agosto de 2014, o Estado alterou o nome do programa para Rio+Social em uma tentativa de dar novo impulso ao mesmo.
Eduardo Paes no Palco do TED Talks
Na edição de 2012 das palestras TED–vista quase 750.000 vezes no site do TED–o Prefeito Eduardo Paes define os seus “quatro mandamentos para as cidades,” destacando a favela como uma das quatro áreas-chave da política da Prefeitura do Rio de Janeiro. Primeiro, ele enfatiza a necessidade de serviços básicos nas favelas. Ele mostra imagens de uma limpa e moderna escola primária construída na Colônia Juliano Moreira, e uma clínica da família em uma favela sem nome. Embora tenha havido investimento em determinadas favelas, ampla melhoria em serviços fundamentais não foram vistos. Em particular, o saneamento básico é terrível (não só em favelas, mas principalmente nestas) e em 2013 foi estimado que pelo menos 30% da cidade não teria um sistema de saneamento formal. Na palestra, Paes também afirma que as favelas precisam ter infraestrutura para integrá-las à cidade formal e que elas são “parte da solução”. Isto contrasta brutalmente com o desmantelamento do Morar Carioca e com a simultânea remoção de 67.000 cidadãos de comunidades do Rio sob sua administração.
Estatísticas do ISP
Em 2007, o ISP registrou o maior número de autos de resistência, o termo para as mortes causadas quando os suspeitos “resistem à prisão”, na história do Rio de Janeiro–1.330 em apenas um ano–confirmando que a Polícia Militar do Rio é uma das (se não a) mais violentas forças policiais no mundo. Pouco tempo depois, a antropóloga Ana Paula Miranda foi demitida como chefe do Instituto e substituída pelo Coronel da Polícia Militar Mario Sergio Duarte. Governado por Sergio Cabral, os homicídios caíram no Rio, tornando-o um lugar, estatisticamente, menos perigoso. No entanto, Ana Paula Miranda questiona publicamente estes dados oferecidos por seu sucessor. O que foi escondido sob estes dados, e que têm vindo a ser cada vez mais destacado na preparação para os megaeventos, foi o surgimento de cada vez mais “mortes violentas sem intenção determinada” que não são registradas como homicídios. Em 2006, 1.676 pessoas foram vítimas de mortes violentas sem intenção determinada, mas em 2009 houve 5.647 casos, sendo responsável por 60% de todas as mortes violentas. O Estado, então, reavaliou algumas mortes daquele ano, levando o número até 3.587. Já o pesquisador do IPEA, Daniel Cerqueira, estima que cerca de 3.165 assassinatos em 2009 não foram reportados como tal. Além disso, os desaparecimentos em todos estes anos foram reportados desproporcionalmente, especialmente em áreas como Campo Grande, extremo da cidade dominado por milicianos na Zona Oeste, onde o número de desaparecimentos subiu para 278 em 2013 e a taxa de homicídios caiu em 60%, fazendo com que os agentes de polícia recebessem R$9.000 em bônus pelo resultado das ações. Embora os políticos tenham ido publicamente elogiar a queda significativa na taxa de homicídios, na realidade, o Rio estava tão violento quanto antes.