O Despertar de Jane

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Imagine-se sentado, meio sonolento, em frente à televisão. De repente, você desperta com a notícia, dada em alto e bom som pelo Prefeito Eduardo Paes, de que a comunidade em que você mora há 40 anos vai ser removida. Foi exatamente isso o que aconteceu com a artesã Jane Nascimento de Oliveira, uma moradora de 54 anos da Vila Autódromo, em Jacarepaguá, Zona Oeste do Rio de Janeiro, na sexta-feira 2 de outubro de 2009. Nesse dia, o Presidente do Comitê Olímpico Internacional, o belga Jacques Rogge, anunciou para o mundo que o Rio de Janeiro havia ganho a batalha contra Chicago, Madri e Tóquio e se tornaria a sede das Olimpíadas de 2016. A antiga colônia de pescadores, onde hoje vivem de 2 a 3 mil pessoas, daria lugar ao Centro de Mídia e ao Centro Olímpico de Treinamento.

Aquela não era a primeira vez que a Vila Autódromo, um conjunto de cerca de 900 casas espremidas entre a Lagoa de Jacarepaguá e o Autódromo Nelson Piquet, tinha sua existência ameaçada por um decreto governamental. Também não seria a primeira vez que Jane Nascimento se engajaria numa campanha de tons épicos para salvar sua comunidade, que, por se encontrar em plena região de crescimento, vem sendo acossada pelo poder público e pelo mercado imobiliário desde o anúncio da Eco 92, um outro evento internacional que deu grande visibilidade ao Rio de Janeiro. “Naquela época, o governo alegava que a área era de interesse ambiental”, conta a militante. “A Prefeitura chegou a colocar um trator na entrada da comunidade, para derrubar as casas. Aí o povo fechou a comunidade e não deixou ninguém entrar.” A mesma pressão foi feita na preparação do Pan-Americano, em 2007.

A resistência da Vila Autódromo agora está sendo menos heróica e mais política, com um intenso trabalho de mobilização da comunidade e de formação de uma rede capaz de dar visibilidade e sustentação à campanha das 123 comunidades ameaçadas de remoção pelas Olimpíadas. “Estamos presentes em todas as manifestações contra as remoções”, conta Jane, que sempre faz questão de reafirmar a liderança de Altair Guimarães, o presidente da Associação de Moradores da Vila Autódromo, na resistência da sua comunidade. A comunidade também utiliza as novas mídias criadas pela web 2.0, como emails, posts do Facebook e scraps do Orkut, além de uma difusão de notícias por intermédio de promoções das empresas de telefonia celular, que permitem que o grupo fale entre si gratuitamente. Os líderes do movimento também descobriram setores da Justiça sensíveis à causa popular e dialogam com frequência com a Defensoria Pública.

Os resultados desse trabalho têm sido para lá de razoáveis em um momento em que o movimento social anda tão em baixa e enquanto o governo está em alta. Desde que a mídia e a população compraram a idéia de que os ganhos da Copa do Mundo e das Olimpíadas justificam qualquer medida do poder municipal em nome de sua realização.

Perímetro de segurança

“Agora (que mudaram o Centro de Mídia para o Porto) eles criaram um perímetro de segurança ao redor do autódromo, que os moradores da comunidade não poderão cruzar durante os jogos”, conta Jane Nascimento. A líder comunitária já tem pelo menos duas respostas para o novo argumento do Prefeito. “Nunca houve um assalto nos dias de corrida no autódromo”, lembra. Também não há nenhum registro de violência em eventos de grande porte promovidos naquelas imediações, como a Eco 92 e o Pan-Americano. “Se o governo de fato estivesse preocupado com atentados terroristas, ele interditaria os prédios aqui no entorno”, acusa. Segundo ela, o melhor lugar para que um atirador de elite aja impunemente é uma das muitas sacadas nos apartamentos que não param de ser oferecidos na área, o novo eldorado do mercado imobiliário. É óbvio que o Prefeito sequer cogita em derrubar os prédios construídos no entorno do autódromo.

Outra contradição do governo denunciada por Jane é a usura do poder público na hora de disponibilizar recursos para a saúde e a educação e a generosidade com que investe dinheiro do contribuinte para que empresas privadas destruam favelas e ergam elefantes brancos em seu lugar, que tão logo acabe o evento cairão no ostracismo, como aconteceu com o complexo esportivo construído às pressas para o Pan-Americano. “A saúde está péssima, a educação está péssima, mas o governo dá dinheiro para obras que, além de expulsar a população pobre para construir obras em cima de suas casas, não podem ser desfrutadas pelos trabalhadores.” De acordo com a líder comunitária, o governo é severo na hora de interpretar a lei que lhe dá o direito de pressionar os moradores da Vila Autódromo, mas, quando ela beneficia a comunidade, ele a ignora. “O artigo 429 determina que o Estado não pode, ao desapropriar uma comunidade, colocá-la a uma distância superior a sete quilômetros”, lembra ela, consciente de que essa lei foi criada para impedir a desarticulação social das pessoas. Na prática, no entanto, a Secretaria Municipal de Habitação está oferecendo casas numa Zona Oeste profunda.

Como conta a Jane, o governo está sempre tentando esvaziar o movimento da Vila Autódromo, abordando a comunidade com uma estratégia que, embora criada há 500 anos por Maquiavel, continua eficaz: dividir para governar. “O governo procura as pessoas que têm uma casa pior e oferecem uma boa casa longe dali”, conta a líder comunitária. “Se a pessoa aceitar a casa, eles já a forçam a sair dali logo, mas se não aceitarem, eles começam a oferecer uma boa indenização, até que a pessoa saia.” Esse esforço de desmobilização vem rendendo dividendos para a Prefeitura nas outras comunidades ameaçadas pelas obras prometidas para a Copa do Mundo e as Olimpíadas. “As comunidades que se acomodaram, que acreditaram na promessa de que o Prefeito não ia mexer, foram pegas de surpresa”, alerta Jane, para em seguida lembrar o exemplo de uma comunidade que uma semana antes do encontro com a reportagem do favela.info havia sido dizimada. “Só restaram oito casas”, lamenta.

Foram muitas decepções ao longo do processo, como a distorção da mídia em todos os depoimentos públicos que dá e, principalmente, a descoberta de que os títulos de posse distribuídos pelo ex-governador Leonel de Moura Brizola em 1994 não têm o menor legal. “O Prefeito Eduardo Paes nos disse em um ato público que aquele ‘papelzinho’ na valia nada”, lamenta. A artesã admite inclusive a possibilidade de derrota política, mas só se renderá no dia em que os técnicos do governo apresentarem uma prova de que a Vila Autódromo de fato se encontra em uma área de risco. “Mas se for por ambição, para atender aos interesses do mercado imobiliário, nós não arredamos pé daqui”, afirma ela. A resposta da população, que praticamente não a deixa andar quando circula pela comunidade, é o suficiente para que ela enfrente inclusive as cobranças das duas filhas, que se ressentem de sua falta de presença em casa. “Eles querem deixar o povo meio bobinho, achando que a coisa já foi resolvida e que é pra baixar a cabeça. Eu não descanso não, vou até morrer”, anuncia.

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