Introdução à Crise da Água do Rio: Contexto Crítico Sobre Água, Esgoto e Educação Ambiental

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No dia 2 de fevereiro, especialistas, ativistas e cidadãos interessados no tema se reuniram no Encontro das Águas para discutir a crise de água no Rio de Janeiro. Organizado pelo grupo Se A Cidade Fosse Nossa no histórico Largo de São Francisco da Prainha, na região do Porto, o evento começou, à tarde, com uma oficina de coleta da água da chuva liderada pelo grupo Águas de Março, seguido por uma mesa redonda entre especialistas técnicos e cidadãos preocupados com a condição da água do Rio de Janeiro e à noite terminou com a o bloco carnavalesco Bloco das Águas. O evento também contou com uma exposição de fotografias da Daniela Fichino da ONG Justiça Global sobre o catastrófico rompimento da barragem de rejeitos tóxicos em Mariana.

O Águas de Março é um coletivo focado em divulgar e implementar tecnologias de captação de água de chuva de baixo custo. Na terça-feira, 2 de fevereiro, representantes realizaram uma oficina interativa onde demonstraram sua tecnologia e alguns dos 25 participantes desse segmento colocaram a mão na massa para construir um protótipo de coletor de água de chuva.

Depois, três especialistas participaram de um painel interativo para aproximadamente 35 pessoas. A pesquisadora ambiental Flávia Braga Vieira, o engenheiro sanitário Stelberto Soares, o qual também trabalhou para a CEDAE, e o pesquisador de educação ambiental Júlio Vitor deram pequenas palestras, onde oito membros da comunidade responderam, e os técnicos deram respostas e observações finais.

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As águas do Estado do Rio

Flávia Brava Vieira começou a discussão com uma chamada para acabar com a mercantilização e monetização e um chamado para denunciar o consumo industrial de recursos hídricos. Ela afirmou que as desigualdades na distribuição de água são uma preocupação mais política do que uma preocupação ambiental. Ela contextualizou a crise de água do Rio, dizendo que embora a escassez de água tenha chamado a atenção dos cariocas apenas no último ano, existe um problema de água a muito mais tempo.

Flávia continuou explicando que, historicamente, a água era usada individualmente, cada família buscava sua própria água. Desde a industrialização, a água passou pelo processo de mercantilização e privatização, e tornou-se o “ouro azul, lotado de valor econômico”, com aumentos de preços devido a mudança econômica de oferta e demanda causada por secas. Todos que usam água tratada devem pagar por isso ou correm o risco de ter o acesso à água cortado, e há alguns que não podem pagar o preço da água, apesar do acesso à água ser um direito humano básico.

Desde que alguns moradores do Rio que podem pagar os preços mais elevados da água privatizada começaram a enfrentar escassez de água pela primeira vez devido às condições meteorológicas, a consciência pública do problema vem crescendo, incluindo o reconhecimento de que algumas áreas nunca receberam acesso à água, mesmo em tempos sem seca, citando algumas regiões da Baixada Fluminense. A corrente “crise” é apenas para pessoas que utilizam água privatizada. Para aqueles que ainda fazem o uso da água cuja fonte é artesanal e acessada individualmente, o acesso à água tem sido sempre irregular. Por isso, Flávia disse que a distribuição de água não é um problema ambiental, mas socioeconômico: quaisquer soluções técnicas são benéficas apenas no curto prazo; problemas de longo prazo com a água só podem ser resolvidos politicamente.

Ela observou o uso industrial da água e as suas ineficiências: “A CEDAE perde cerca de 40% na entrada da água. Além disso, embora a indústria perca uma grande quantidade na entrada de água, eles pagam menos do que os indivíduos que usam apenas uma fração do que a indústria usa. Desligar a torneira enquanto escova os dentes ou tomar banhos curtos é parte da solução, mas abordar ineficiências em larga escala é o mais benéfico para a sociedade”.

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Estado do Saneamento no Rio

Stelberto Soares abordou alguns aspectos técnicos que contribuem para a crise de água e do saneamento na cidade. Ele começou com a estatística de que das 86 áreas de tratamento de água na Barra de Tijuca, apenas seis funcionam corretamente. Historicamente, os centros de tratamento da CEDAE tiveram uma perda de 70% na sua entrada, mas hoje esse número diminuiu para cerca de 30-37%, disse ele.

Stelberto explicou que a fonte da água da cidade do Rio de Janeiro é o Paraíba do Sul, o maior rio no estado do Rio e do estado de Minas Gerais, cujas águas são levadas através de um sistema de túneis. 40% da água no Rio de Janeiro é tratada na estação de tratamento do Guandu, a maior estação de tratamento de água do mundo. No entanto, o Guandu está perdendo água doce devido à contaminação pela água do mar em um ciclo de realimentação causado pela escassez de água. A CEDAE não pode retirar tanta água do Paraíba do Sul, então menos água doce acaba sendo ejetada na Baía de Guanabara pelo Guandu, e com isso a água do mar invade mais facilmente a estação.

Em seguida, Stelberto explicou que a água pode ser contaminada a cada passo do processo da fonte para a torneira. O sistemas de túneis, tanque de armazenamento, e o filtro são todos possíveis fontes de contaminação.

Stelberto compartilhou uma estatística alarmante sobre o tratamento de água na cidade: o Rio de Janeiro coleta 56% do seu esgoto, 86% dos quais é tratado oficialmente. No entanto, “86%” incorpora todos os centros de tratamento oficiais, funcionando ou não. Só na Barra da Tijuca apenas seis áreas de tratamento realmente funcionam e as 80 restantes são contadas oficialmente, o que significa que o percentual de esgoto tratado no Rio é radicalmente inferior.

Além disso, a estratégia da prefeitura de tratamento de rios poluídos erra o alvo, diz Stelberto. Quando um rio é contaminado com esgoto de casas que não estão ligadas a uma planta oficial de tratamento, tudo eventualmente deságua no mar. Para resolver isso, a prefeitura construiu várias estações de tratamento de esgoto na foz dos rios. Stelberto recomenda atualizar a infraestrutura de modo que o esgoto nunca chegaria para dentro do rio em primeiro lugar. Em teoria, a prefeitura tem a capacidade e responsabilidade de fornecer 200 litros por habitante por dia, o que não acontece para algumas comunidades.

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Educação Ambiental Crítica

Júlio Vitor falou em seguida sobre os diferentes tipos de educação ambiental, afirmando que a educação ambiental “crítica” pode tratar de questões de forma mais eficaz, pedindo repetidamente que alguns moradores de favelas que têm excelentes conhecimentos de primeira mão da gestão da água fossem convidados para o painel da água.

O tipo clássico de educação ambiental é a educação “conservacionista”, que Júlio jocosamente refere como “quem abraçam árvores”. Os alunos são ensinados que áreas desabitadas devem ser preservadas. Júlio citou um de seus professores, que critica as ONGs que operam sob pensamento conservacionista, que entram em favelas ensinando os moradores como reduzir o uso da água, mesmo que essas comunidades possam não ter acesso confiável a uma fonte de água, efetivamente dizendo às pessoas sem água que eles têm a responsabilidade de usar menos ainda.

O próximo tipo de educação ambiental que Júlio mencionou foi a educação “pragmatista”, fazendo com que os sistemas ecológicos fiquem mais eficientes para aumentar a sua produção.

O último tipo principal que discutimos foi a educação ambiental “crítica”, que tem um foco ecológico e social. Por exemplo, respondendo à pergunta “por que algumas pessoas têm água e outros não?” Alguém com um fundo de educação ambiental crítica diria que a questão não é uma questão técnica. A maneira como a sociedade olha atualmente para a crise da água é errada, ele disse, e concordou com o argumento da Flávia que o uso industrial de água é mais um problema do que até mesmo o uso pessoal pesado.

Júlio falou sobre a comunidade do Morro da Formiga, a favela onde sua pesquisa é baseada, e a usou como um exemplo de excelente gestão comunitária da água. Para lidar com a falta do acesso à água municipal, eles construíram sua própria infraestrutura de água e a gestão é feita com várias sociedades de água que se reúnem semanalmente. Eles têm uma forte educação ambiental baseada na comunidade, com especialistas locais como Seu Francisco, chefe de uma das sociedades de água, e Amadeu Palmares da Silveira que aprenderam com anos de experiência prática. Júlio os chamou para o próximo painel que incluirá moradores de favelas especialistas em água.

Júlio passou a explicar que algumas favelas da Zona Oeste sentem que sua água está sendo tomada e desviada para a Barra da Tijuca e reconhecem a injustiça. Eles trabalham em bairros como a Barra onde vêem casas com piscinas, mas eles são criticados por desmatamento e por pegar água da floresta para satisfazer suas necessidades básicas, disse Júlio. Para resolver estas questões, o aspecto da justiça ambiental da escassez de água e saneamento devem ser abordadas.

Neste momento, o sol se pôs e um grupo de cerca de 50 pessoas  se reuniram para ouvir a ampla gama de respostas da comunidade. Um orador apelou para grupos políticos ativistas para colaborarem e lutarem por uma solução. Outro orador propôs uma resposta da comunidade mais delicada, afirmando alegremente que “a água não tem problema nenhum, o problema com a água somos nós”. Uma oradora digna de nota foi Julieta, uma jovem que expressou sua infelicidade ao ver uma cachoeira poluída nas suas férias com a família.

Os palestrantes deram suas considerações finais abordando as respostas do público, e o evento se transformou em um bloco de carnaval com uma banda tocando ao vivo, encerrando o primeiro de uma série de eventos do Se a Cidade Fosse Nossa relacionados ao meio ambiente.