“Não é todo autor de livro, não é todo professor, não é todo pesquisador que tem o privilégio de poder lançar o seu livro exatamente no lugar e na situação sobre a qual o livro está falando.”
Essas foram as primeiras palavras que a renomada arquiteta, urbanista, professora e pesquisadora Dra. Raquel Rolnik falou no lançamento do seu novo livro Guerra dos Lugares: a Colonização da Terra e da Moradia na Era das Finanças na Vila Autódromo no sábado, 5 de março. Aproximadamente 100 pessoas se juntaram no parquinho da comunidade na Vila Autódromo para ouvir a ex-relatora especial em Direito a Moradia Adequada da ONU (Organização das Nações Unidas). De pé sobre uma pedra, Rolnik fez um discurso apaixonado sobre a urgência da situação nesse momento tenso da comunidade.
“Muito do que eu aprendi e que está registrado nesse livro, eu aprendi com a Penha e com os moradores e com as pessoas que ajudaram os moradores aqui da Vila Autódromo. Eles me ensinaram e me contaram coisas durante os seis anos em que eu fui Relatora Especial de Direito a Moradia Adequada da ONU.”
O principal argumento do discurso dela, e do seu livro, é que existe um fenômeno global de apropriação de terras ganhando espaço com terras sendo tomadas para servirem de suporte para mercados financeiros e o acumulo de capital. “Isso é um processo global. Está acontecendo em todo lugar” ela disse.
“Nós estamos falando de um processo de ocupação do espaço e de construção do espaço que não tem nada a ver com a necessidade das pessoas. Que não tem nada a ver com o que as pessoas precisam para viver individualmente e coletivamente, com as necessidades de moradia, com as necessidades de uso dos espaços públicos, com as necessidades das atividades econômicas. Tem a ver única e exclusivamente com as oportunidades de capturar mais lugares onde o capital financeiro pode encontrar maneiras de investir para poder gerar mais rentabilidade para si mesmo.”
Rolnik constatou que terra urbana é o veículo perfeito para esse tipo de investimento por duas razões. Em primeiro lugar, a terra pode diminuir em valor, mas ela nunca deixará de existir. Isso é muito diferente de outros métodos de investimento mais voláteis. A segunda razão é que a terra pode ser usada como garantia para outros investimentos, o que faz com que ela seja valiosa para ser mantida.
O Brasil, Rolnik disse, é diferente de outros países ao redor do mundo. Ele carece de um clima político que garanta a moradia como um direito. Guerra dos Lugares descreve casos em vários continentes e diferentes culturas políticas em torno da moradia e de como o pobre está sendo desproporcionalmente afetado pelo período pós crise financeira global de 2008.
“A realidade é que os pobres e as pessoas mais vulneráveis são os que vão pagar no momento em que uma crise financeira ocorre. Eles são os que não tem nada, que terminam no meio da rua. Estados, cidades, e países onde eles moram não têm uma política alternativa para lidar com eles”, disse Rolnik.
Talvez a declaração mais aguda que Rolnik fez durante sua palestra foi sobre a conexão entre o aumento do uso da terra e da moradia como ativo financeiro e o enfraquecimento dos direitos dos pobres. Isso é tratado com “em outros termos: com despejo”.
O registro e formalização da terra, ela disse, não é em benefício daqueles que vivem nela, mas sim em benefício daqueles que estão tentando usar a terra por motivos especulativos, porque a terra só serve para este fim quando ela está oficializada.
De acordo com a lógica, usar a terra como moradia para os pobres é visto como o pior uso possível, porque isso não maximiza os ganhos financeiros. Com essa lógica, a melhor opção é de lugares para shoppings ou hotéis cinco estrelas.
Rolnik resumiu essa visão: “O único valor é o lucro máximo que pode ser retirado da terra, inclusive de terras públicas”.
Rolnik concluiu sua conversa observando que o Brasil historicamente tem intencionalmente provocado a especulação imobiliária com o governo oferecendo favores a grandes corporações até mesmo durante as administrações de Lula e Dilma do PT.
No entanto, ela observou, há esperança para combater estes problemas, especialmente através da passagem de conhecimento para as gerações mais jovens e continuando a resistir. Ela disse: “O futuro já está aqui. O futuro está aqui através das resistências. O futuro está aqui por esta solidariedade”, se referindo ao caso da Vila Autódromo.