A menos de 100 dias dos Jogos Olímpicos de 2016, o programa da UPP e a segurança pública no Rio de Janeiro estão em crise. Apesar do controverso programa ter enfrentado dificuldades com crescente frequência ao longo dos anos, agora no contexto da atual crise econômica brasileira, e do consequente corte orçamental nos programas de segurança do Rio de Janeiro, muitas favelas da cidade passam por notório aumento, e até mesmo o resurgimento da violência.
Dia 21 de março, a Secretaria de Segurança do Estado Rio de Janeiro anunciou o corte de cerca de 35% dos R$7 bilhões previstos para o orçamento anual de segurança. A medida pode por em risco muitos dos aspetos da infraestrutura de segurança do Rio, como por exemplo o sistema de câmeras de segurança e os salários dos policiais. Está também em risco o financiamento do programa das UPPs com a interrupção por tempo indeterminado dos planos de expansão das UPPs para outras comunidades, em prol do fortalecimento das unidades existentes nas favelas consideradas mais violentas. Mas até mesmo as favelas anteriormente consideradas modelos de sucesso do programa de pacificação enfrentam novamente conflito armado. Em março, os consulados dos Estados Unidos e da Alemanha emitiram comunicados aconselhando turistas no Rio a não visitarem favelas, mesmo as pacificadas, reafirmando que o aviso incluía todas as favelas, até mesmo aquelas sem qualquer índice de violência.
De acordo com a Anistia Internacional, “até o momento em 2016, os homicídios resultantes de intervenções policiais na cidade do Rio de Janeiro aumentaram 10%. Os números correspondem ao período entre janeiro e março, em comparação com o mesmo período em 2015”. Pelo menos 11 pessoas morreram em operações policiais nas primeiras três semanas de abril.
Segue um resumo de alguns eventos recentes ocorridos em favelas espalhadas pela cidade.
Babilônia / Chapéu-Mangueira
Babilônia e Chapéu-Mangueira, favelas vizinhas localizadas na Zona Sul do Rio, junto do Leme e de Copacabana, foram consideradas no seu conjunto um dos modelos bem sucedidos de “pacificação” desde a instalação da UPP em 2009. No entanto, no dia 18 de fevereiro a polícia relatou tiros dirigidos à base da UPP. O morador Eduardo Henrique Souza Baptista publicou no Facebook que os tiros não se destinavam à polícia mas eram na realidade resultado de “outros tipos de conflito que ocorriam na comunidade”. Ele acrescentou que o tiroteio resultara em uma morte que, até a data do seu post, ainda não tinha sido reportada pela polícia ou pela Globo.
Um mês depois, Paulo Roberto Santos de Oliveira, 21 anos, foi encontrado morto pela polícia e Thiago Vinicius da Silva, 22 anos, deu entrada no hospital onde viria a morrer mais tarde. Ambos moradores foram identificados por vizinhos como sendo trabalhadores sem qualquer envolvimento no tráfico de drogas. Na manhã de 25 de março mais dois corpos foram encontrados após relatos de um tiroteio durante a noite. Um morador afirmou: “Está difícil morar aqui. Foi muito tiro. Parecia que estávamos na Síria. Nunca vi um tiroteio tão violento como este aqui”. O Dia publicou que a escalada do conflito resultava de uma guerra territorial renovada entre duas fações, e os moradores descreveram a violência recente como sendo a pior desde 2009. O comandante Carlos Eduardo Sarmento declarou que as forças especiais do BOPE iriam ajudar a UPP nos novos casos de violência.
Em grande parte graças à percepção do sucesso da UPP, Babilônia e Chapéu-Mangueira estão entre as favelas mais visitadas por turistas, junto com o Vidigal, mas comerciantes locais estão preocupados que os tiroteios afastem os visitantes.
Rocinha
Na Rocinha, a maior favela do Rio situada na Zona Sul, o jornalista comunitário Michel Silva atribui o aumento da violência à continuação da falta do prometido investimento em programas sociais e declara, “o governo investe muito em segurança pública, mas não em educação“.
No dia 25 de dezembro de 2015, dia de Natal, ocorreu um tiroteio entre a polícia e locais que resultou em seis feridos e na morte de um morador, Jorge Arui, de 49 anos, que passava a caminho da padaria. Os moradores contaram que o tiroteio começou depois da polícia mandar um grupo baixar a música. No mesmo dia, oficiais do BOPE foram acusados do estupro de uma jovem. Mais um enorme retrocesso na credibilidade da polícia no mesmo bairro onde ocorreu o desaparecimento, a tortura e assassinato do pedreiro Amarildo de Souza, em 2013, que marcou um revés no sentimento do público relativo ao programa de pacificação na cidade. Um artigo no Global Post em janeiro deste ano concluiu que facções ainda controlam a Rocinha e que os moradores não têm muita confiança nas forças policiais.
Cidade de Deus
Como a Rocinha, a Cidade de Deus na Zona Oeste do Rio também sofreu violência no período de Natal de 2015. Uma criança de 11 anos e um adolescente de 17 morreram na manhã de 23 de dezembro quando, de acordo com moradores, um grupo de milicianos começou a atirar numa rua movimentada. Marcos Vinicius dos Santos, 11 anos, ajudava seu pai a vender fruta quando foi atingido no fogo cruzado e morreu. Outras duas pessoas, um rapaz e uma mulher, ficaram feridos no tiroteio. Os moradores, em choque e de luto, juntaram-se para protestar contra a violência. O cantor local Tonzão Chagas disse que 2015 foi o ano com “mais assassinatos” na Cidade de Deus e que os moradores continuariam a sua luta e que “ninguém irá silenciá-los.”
O jornalista da Rocinha Michel Silva escreveu que “casos como este mostram que as políticas de pacificação se esgotaram. É preciso desmilitarizar a polícia e o governo do Estado deve assumir maior responsabilidade social”. A socióloga Marina Motta defende que os incidentes de 23 de dezembro na Cidade de Deus mostram que a UPP não tem capacidade para garantir a segurança dos moradores das favelas, o que levanta a questão se isso se deve “à incompetência da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro ou porque proteger quem mora na favela simplesmente não é o objetivo da PMERJ”.
No dia 4 de abril o Fórum de Juventudes do Rio de Janeiro reportou que estava recebendo diariamente mensagens sobre tiroteios na Cidade de Deus.
Manguinhos
Em Manguinhos, complexo de favelas localizado na Zona Norte do Rio com UPP desde 2013, houve vários casos de violência recentemente. Na manhã de 4 de abril de 2016, João Batista da Silva, um morador de 29 anos de idade que voltava de uma entrevista de emprego, foi baleado pela polícia e morreu ao tentar proteger outras pessoas dentro da sua casa. Algumas semanas antes, o morador Caio Daniel Faria de catorze anos morreu atingido por um fogo cruzado entre polícia e moradores suspeitos de envolvimento no tráfico de drogas. No mesmo incidente, o primo de Caio, Erick Cardoso de 19 anos foi baleado na mão quando jogava futebol. Os moradores contaram que nos três dias que precederam a morte de Caio ocorreram vários tiroteios envolvendo a polícia.
No dia 18 de março a Polícia Militar instalou barricadas de blocos de cimento à volta da base da UPP evidenciando o aumento de tensão entre a UPP e os moradores. A criação dessas barricadas representa ainda o distanciamento das UPPs do seu propósito original de oferecer não só segurança, mas programas sociais e um sentimento de confiança.
Complexo do Alemão
No dia 2 de abril moradores do Complexo do Alemão na Zona Norte do Rio reuniram-se em memória da morte de Eduardo de Jesus Ferreira, menino de 10 anos de idade morto pela Polícia Militar no ano anterior. O policial que baleou o garoto ainda não foi responsabilizado.
No Alemão, a frustração com a UPP é agravada pela aparente falta de consideração por espaços sociais comunitários importantes. No início de fevereiro, a UPP de Nova Brasília anunciou planos para remover sua base de uma escola em resposta às exigências dos moradores. No entanto, o novo espaço ocupado pela UPP é um dos poucos na favela que servia de centro social, educativo e recreativo, onde moradores frequentavam cursos, se exercitavam em uma academia e praticavam capoeira. A mudança parece ir contra tudo o que a UPP previa, que era a promoção de programas sociais e não a sua eliminação.
Além disso, na terça-feira 5 de abril, um oficial do BOPE foi baleado e levado para um hospital próximo após relatos de uma operação policial e tiroteios iniciados na tarde do dia anterior que continuaram até terça de manhã. Os moradores relataram buracos de bala em várias casas e que pelo menos uma escola teve de cancelar as aulas. No final de semana de 15 a 17 de abril, o jornal comunitário Voz das Comunidades publicou que as operações da polícia e os tiroteios tinham deixado 8 pessoas feridas, incluindo uma criança de 7 anos, em apenas 24 horas de “guerra não declarada”.
No último fim de semana, no dia 23 de abril, foi anunciada a morte de um motorista de moto-táxi atingido por uma bala da polícia que, de acordo com o Coletivo Papo Reto, alterou a cena do crime logo após o incidente.
Jacarezinho
Em dezembro passado, a UPP do Jacarezinho na Zona Norte do Rio enfrentou um enorme retrocesso quando forças especiais do BOPE entraram enquanto a polícia da UPP permanente recuava. Foi o primeiro recuo do tipo numa favela desde a implementação do programa da UPP e veio em resposta à morte de três policiais, Rodrigo Ribeiro Pinto, 34 anos, Marcos Santana Martins, 26 anos, e Inaldo Pereira Lion, 33 anos, no início daquele mês. O retorno da violência após um período de paz relativa levou um escritor a dizer que a calma trazida pela UPP tinha data de validade.
Pouco depois da morte dos policiais, um oficial não identificado disse em mensagem de áudio se sentir feliz por estar de licença médica em vez de continuar arriscando a vida no Jacarezinho. E acrescentou: “Mais dois amigos se foram e até quando a gente vai ficar nessa? Quando morrerem 50, 100 policiais?” Outros oficiais da UPP se queixaram da falta de equipamento, coletes, financiamento e armamento. A esposa de um dos policiais mortos concordou: “As mortes vão continuar se nada for feito”.
Ainda em dezembro, Wesley Daniel Santos Oliveira, de 17 anos, foi baleado e morto num tiroteio entre suspeitos e policiais quando saia da igreja evangélica.
Este ano, a página do Facebook Nós Por Nós, um aplicativo recente criado para noticiar e coletar informação sobre violência policial, reportou que policiais no Jacarezinho aterrorizavam os moradores com os seus treinamentos de tiro às 6 da manhã, assim como durante a noite–o que a equipe do Nós Por Nós sugere ser uma tática intencional para assustar os moradores, e não realmente um treinamento. Em fevereiro o Nós Por Nós comunicou confrontos regulares envolvendo a polícia com pelo menos um jovem morto no dia 11 de fevereiro.
No dia 7 de abril de 2016, outro tiroteio entre traficantes e a polícia da UPP parou o trânsito local, deixando dois mortos, e impedindo que 1.200 crianças fossem à escola. Mais confrontos mataram um morador com um tiro na cabeça no dia 19 de abril. Os moradores tomaram as redes sociais criticando a falta de cobertura da violência policial na região pela grande mídia.
No sábado, dia 23 de abril, um pastor local foi morto a tiro quando saía da igreja durante um final de semana de confrontos intensos. A violência em curso causou a suspensão do serviço de trem na comunidade pela sexta vez em três semanas.
Complexo da Maré
Após a ocupação do Complexo da Maré em 2014 pelo exército, o prazo para a instalação de quatro UPPs planejadas mudou de julho de 2015, para março de 2016, e agora para não antes de 2017, se ocorrer. Desde que o exército saiu em abril e maio de 2015 a Maré sentiu a presença da Polícia Militar em vários níveis, mas os moradores relatam que a polícia patrulha principalmente as divisas da área e só se aventura para dentro durante operações, um regresso às normas da pré-pacificação. Tais operações frequentemente fecham escolas, creches, hospitais e comércio. Em janeiro, o Globo publicou que o governo ponderava colocar ainda mais Polícia Militar na Maré em preparação para as Olimpíadas de 2016, posicionando o BOPE, assim como forças aéreas e marítimas, nas áreas circundantes situadas junto às principais estradas da cidade e do aeroporto internacional. Na segunda-feira, dia 22 de fevereiro deste ano, conflitos entre a Polícia Militar e moradores resultaram na morte do jovem Igor Silva de 19 anos pela polícia.
Não são apenas as comunidades “pacificadas” que resistem. Nas últimas semanas, os moradores do Morro da Conceição e da Pedra do Sal, na Região Portuária, relataram um aumento do tráfico seguido de operações policiais e tiroteios.
No dia 4 de abril, uma operação policial em Acari, na Zona Norte, matou cinco pessoas. A Anistia Internacional no Brasil exigiu imediatamente uma investigação das mortes, principalmente devido ao histórico de execuções extrajudiciais conduzidas pela polícia em Acari.
A organização pelos direitos humanos também chamou a atenção para o aumento significativo de mortes durante operações policiais nos primeiros quatro meses de 2016, comparando-as ao pico que ocorreu na época da Copa do Mundo em 2014. Como resumiu o diretor da Anistia Internacional no Brasil: “A poucos meses dos Jogos Olímpicos, o Rio de Janeiro mostra que continua com uma política de segurança pública extremamente letal, especialmente em territórios de favelas e periferias”.