No dia 28 de julho, Front Line Defenders (Defensores na Linha de Frente) organizou uma coletiva de imprensa com cinco defensores de direitos humanos cariocas. A coletiva foi parte de uma campanha para trazer mais visibilidade ao aumento de intimidações, ameaças e formas de violência sofridas por vários defensores no período pré-Olimpíadas.
O objetivo da Front Line Defenders–uma organização de origem irlandesa, mas com alcance mundial–é de dar proteção aos defensores de direitos humanos de acordo com as necessidades de segurança explicitadas pelos próprios defensores. Os riscos são particularmente elevados para os defensores de direitos humanos no Brasil: o país está em primeiro lugar na lista mundial de defensores assassinados em 2016; foram 24 nos primeiros quatro meses de 2016. O fato de denunciar violações de direitos humanos coloca essas pessoas e suas famílias gravemente em perigo. Por isso, alguns recursos disponíveis para os defensores de direitos humanos, em risco, incluem oficinas de segurança pessoal, subsídios para segurança física e digital e para cobrir despesas jurídicas e médicas; e apoio de emergência (tais como transferência temporária em caso de perigo iminente).
A coletiva iniciou com uma apresentação introdutória por Adam Shapiro, Chefe de Campanhas do Front Line Defenders. Em seguida, houve um debate moderado por Ivi Oliveira, Coordenadora de Proteção para as Américas com três defensores de direitos humanos presentes no painel: Heloisa Helena Costa Berto, Raull Santiago e Mônica Cunha.*
Heloisa Helena Costa Berto
Heloisa, mãe de santo do Candomblé, abriu o debate falando sobre a experiência de ter sido removida da sua casa, que também era um centro religioso, na Vila Autódromo: “Para mim, estes três anos foram de muito sofrimento… Por causa do processo todo de remoção, eu tive que escolher entre lutar ou continuar com a minha casa, e eu tive que continuar lutando, e por isso, praticamente perdi meus filhos de santo, eu perdi minhas atividades–não podia fazer com regularidade–até o ponto em que a prefeitura cercou a minha casa, e a colocou dentro do Parque Olímpico“.
Reconhecendo os fortes interesses políticos e econômicos que atuaram na retirada da comunidade Vila Autódromo, Heloisa relembrou: “Eu comecei a ver que, desculpe a expressão, ‘o buraco é mais em baixo'”.
Heloisa descreveu o processo de remoção como um “trauma psicológico”, pois a prefeitura usou táticas opressivas, tais como suspender serviços públicos e exigir um crachá de acesso especial para que os moradores chegassem em suas casas. Como foi documentado por Heloisa numa carta aberta publicada pelo RioOnWatch, o processo de remoção se complicou ainda mais por conta de um inquilino que vivia na propriedade dela. Este inquilino interferiu em um longo processo de negociação com a prefeitura que já vinha acontecendo há dois anos–os transtornos se intensificaram em janeiro de 2016, quando Heloisa recebeu ameaças de morte.
A casa de Heloisa foi demolida pela prefeitura em fevereiro de 2016. Seu ativismo e luta foram reconhecidos em duas ocasiões, quando Heloisa recebeu a Medalha Pedro Ernesto, concedida pela Câmara de Vereadores do Rio, e o Prêmio Dandara, homenagem Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj).
Com a enxurrada de problemas que o Brasil vem enfrentando atualmente, Heloisa diz que tem “uma visão muito ruim em relação ao futuro. Eu acho que o pobre é quem sofre mais infelizmente”.
Raull Santiago
Raull é membro do Coletivo Papo Reto, um coletivo de mídia independente formado em 2014 por moradores do Complexo do Alemão. Através de seu trabalho, expondo a realidade dos moradores da favela, documentando abusos e denunciando violações cometidas pelas autoridades, Raull se tornou um ativista de muita expressão.
Na coletiva, ele explicou como a juventude negra e pobre da favela está sempre correndo risco de ser afetada pela violência armada:
“Na nossa realidade, o estado está matando as nossas crianças. Eduardo de Jesus tinha 10 anos e levou um tiro de fuzil 762 na cabeça, estourando a cabeça dele, porque ele estava sentado na escada de casa com o celular na mão. Recentemente, um jovem morreu por tiro de fuzil porque ele estava com saco de pipoca, e a polícia achava que era droga. No Jacaré, um menino morreu com uma moeda de 1 real na mão–estava indo comprar bala. Então a gente está sendo exterminado desde a raiz, desde criança–que não tem ainda a idade formada, o pensamento formado sobre a realidade e entendimento do que ela vive. Estão morrendo de violência, estão morrendo de tiro de fuzil, e a maioria deles morrendo por causa dessa chamada ‘guerra às drogas’ que na verdade é uma guerra ao pobre, uma guerra ao preto, é uma guerra a esses espaços da cidade.”
Raull explicou a importância do trabalho do Papo Reto diante dessa violência sistêmica cometida contra a juventude favelada. Segurando o celular, Raull descreveu: “O Coletivo Papo Reto usa essa ferramenta para tentar expor essa situação porque a gente acredita que denunciar a violência institucional é muito importante–é um dever, é uma prestação de serviço para a cidade, a medida em que em vez de protegerem e servirem, são os principais violadores [de direitos]”.
Em face a violência vivenciada quase diariamente no Complexo do Alemão, o Papo Reto trabalha para:
“… questionar a atuação do estado, questionar a violência institucional, e expor da maneira que a gente consegue–que é usando redes sociais, usando audiovisual–para minimamente poder mostrar que aquilo existe… Então, o Papo Reto atua nessa frente: estando de fato em uma área de violência, confrontos, de guerra extrema, fazendo essa cobertura, disputando essa narrativa, pensando em ações para poder de alguma forma transformar um pouco aquela realidade”.
Mônica Cunha
Mônica Cunha é membro da Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência–uma rede de apoio e ativismo para mães e famílias que perderam entes queridos por conta da violência policial–e cofundadora do Movimento Moleque, um dos movimentos criados dentro da Rede.
Mônica falou sobre a desenfreada e sistêmica violência do estado cometida contra jovens negros, que são vítimas de racismo e estereotipados como “bandidos”:
“Jovens negros são assassinados por esse sistema militarizado nesse estado, nesse país. Essas mulheres negras estão adoecendo… perdendo seus filhos. Primeiro, é mentira que eles sejam bandidos–eles não são bandidos. Porque se a gente vai falar de bandidos nesse país, a gente vai falar o quê do Temer, do Cunha? A gente vê que essa é apenas uma desculpe para continuar matando preto, para continuar enlouquecendo e padecendo essas mulheres negras.”
Envolvida com a Rede desde a fundação, em 2003, Mônica não esperava se tornar ela mesma uma mãe enlutada. O acontecimento se deu em 2006, quando o filho de 20 anos de Mônica, Rafael, foi morto pela polícia no Riachuelo, na Zona Norte do Rio.
“Uma vertente [da Rede] é de exigir justiça–não é vingança, justiça. Eu pari e quero que meu filho continue vivo–não só, ele pertence a esse estado, ele tem direito de ir e vir. Então o estado e este país é tanto dele quanto de qualquer outra pessoa. Nós negros, que somos a maior parte deste país, somos quem construiu este país. Então temos ainda mais esse direito de estar neste país, de andar por todas as vielas deste país.”
Mônica concluiu sua fala com uma afirmação empoderadora: “Ser defensor de direito hoje em dia é resistir todos os dias… Eu quero ter o prazer de um dia falar, ‘Nós ajudamos de fato e contribuímos para uma nova sociedade’. Porque nós merecemos cada direito. Somos capazes. Eu me chamo Mônica Cunha, e quero continuar a viver. Sou defensora de direitos humanos com os meus parceiros, com muito orgulho”.
Após a fala de Mônica, o fórum, em seguida, abriu para discussão e os painelistas responderam as perguntas de jornalistas e de outros participantes presentes.
*Também receberam o reconhecimento como defensores de Direitos Humanos no Rio Vitor Ribeiro, do projeto Mutirão Rio e Luiz Cláudio Silva, morador da Vila Autódromo e marido de Maria da Penha. Vitor e Luiz não participaram do painel de debate.