Esta é a quarta matéria de uma série de cinco intitulada Lições das Favelas Cariocas para a Política Habitacional. Esperamos que essa série apoie debates sobre habitação e urbanização nas favelas, e que o novo prefeito, Marcelo Crivella, crie políticas voltadas aos desafios que as favelas enfrentam, enquanto reconhecendo e fortalecendo seus atributos positivos, através do engajamento ativo dos moradores na criação e implementação de tais políticas.
Lição 8: Os programas existentes de habitação pública não são bem projetados nem mantidos de modo a atender as necessidades habitacionais e por preços acessíveis
“Por um lado, ‘Minha Casa Minha Vida’ é bom–eles oferecem às pessoas a oportunidade de ter um apartamento próprio. As pessoas terão sua primeira casa regularizada, ou seja, se você mora em uma favela, onde você não tem um título de propriedade, você vai ter lá. As pessoas precisam de uma casa decente que está perto dos meios de transportes públicos. No entanto, as unidades habitacionais estão muito distantes.” – Cabritos, Zona Sul
Lançado em 2009 pelo governo federal, o Minha Casa Minha Vida (MCMV) representa a primeira iniciativa de larga escala para prover habitação pública na história do país. Apesar de seu objetivo fundamental de reduzir dramaticamente o déficit habitacional do país, infelizmente a execução do programa tem sido altamente problemática. Embora não seja uma amostra científica, apenas 10% dos moradores entrevistados para esta série apoiaram a execução do Minha Casa Minha Vida no Rio, e 20% estavam inseguros no que achavam. A maior parte, 70%, estavam descontentes com as habitações oferecidas através do programa.
“[MCMV] ofereceu habitação para a população brasileira de um modo que não ocorria há 20 anos. Houve um enorme déficit habitacional no Brasil. O programa permitiu que os governos municipais atendessem à demanda de moradias com rapidez. Recentemente, houveram muitos programas de habitação que foram muito lentos e com resultados tardios. No entanto, este programa se ajusta ao estilo do setor tradicional que constrói habitação. Ou seja, a [indústria da construção] se adaptou menos ao programa e o programa se adaptou mais à indústria.” – Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ / IPPUR)
No fim das contas, Minha Casa Minha Vida foi lançado tanto para impulsionar o setor de construção do país, como para fornecer habitações públicas, estabelecendo incentivos mistos que afetaram a qualidade de sua implantação até hoje.
Um grande problema com a execução do programa no Rio de Janeiro é que uma parcela significativa das unidades do MCMV foram entregues a pessoas removidas de suas casas, muitas vezes de casas funcionais de favelas. A intenção da política era fornecer habitação para aqueles que precisam de casas, porém essas unidades não reduziram o déficit habitacional; em vez disso foram usadas para justificar mais remoções na cidade.
“Os apartamentos são pequenos e, na maioria das vezes, os que necessitam possuem famílias grandes. Normalmente é uma pessoa, uma mãe, com por volta de três filhos. Estes apartamentos são horríveis. Eles são distantes. Eu acho que a ideia pode ser maravilhosa, porque eles, de fato, precisam de casas. No entanto, eu não acho que isso responda ao problema. Você tem que entender que um apartamento desse serve para várias pessoas, para famílias.” – Cabritos, Zona Sul.
Além disso, na Zona Oeste da cidade, há um grande problema com grupos de milícias armadas que têm assumido o controle dos condomínios do MCMV. Essas milícias extorquem os moradores e usam a intimidação como uma ferramenta de opressão.
“São lugares que têm pouca segurança, pouca estrutura, é somente uma casa. Eles não trazem infraestrutura, saneamento básico ou segurança. Muitas dessas casas do MCMV são ocupadas por milícias e a polícia não faz nada. O governo não faz nada e sabe o que está acontecendo. Esses lugares são terras sem lei.” – Cabritos, Zona Sul
Um programa de habitação pública, construído no âmbito do PAC, na Rocinha, exemplifica como a política de habitação pode ser usada como uma forma de integrar a habitação pública na comunidade. Este empreendimento, que inclui espaços públicos e que está integrado no tecido da favela, foi construído em resposta às altas taxas de tuberculose na Rua 4. Os moradores que viviam nesta zona insalubre foram aqueles deslocados para a nova habitação pública construída sobre o mesmo local e destinada a abordar questões de saúde pública. Uma vez que a maioria dos moradores puderam permanecer na mesma comunidade ou nas proximidades, a habitação pública cumpriu o seu mandato. No entanto, mesmo neste exemplo positivo de habitação pública, os moradores já estavam experimentando questões estruturais e de manutenção dentro das casas logo após a construção.
“Viver em uma favela é diferente de viver em um apartamento. As regras são diferentes.” – Complexo do Alemão, Zona Norte.
Os condomínios do MCMV em Triagem são um exemplo de habitação pública criada em um local relativamente central com acesso ao transporte público. Perto das estações de trem e do Centro da cidade, as unidades de Triagem mostram como a habitação pública pode ser tecida em áreas de fácil acesso da cidade. No entanto, os 2.240 apartamentos representam apenas uma pequena fração de unidades dos apartamentos do MCMV no Rio. Eles são a exceção, não a regra.
“Os apartamentos [do MCMV] são construídos em lugares distantes e não valeria a pena [para nós], porque nossas vidas estão aqui na Zona Sul. Ir para um lugar muito distante seria um problema. Significa que, talvez, estaríamos seis horas por dia no trânsito e nós não queremos isso. Essa é uma das principais razões pelas quais ainda estamos na Rocinha.” – Rocinha, Zona Sul
O problema da execução atinge todos os complexos do MCMV, como o Parque Carioca, condomínio onde muitos moradores da Vila Autódromo foram reassentados. A prefeitura rotulou o Parque Carioca como um excelente complexo habitacional completo com piscina e moradores felizes. Nossa equipe esteve lá para conversar com moradores sobre suas experiências, e o que descobrimos contradiz em grande parte com as declarações da prefeitura. Os moradores ficaram chateados com a falta de sombra, a separação e cerceamento dos lotes, a área de lazer e seus equipamentos quebrados, a piscina mal-cuidada, os edifícios já se deteriorando e a falta de espaço público funcional, além de serem coibidos de se organizar politicamente para as melhorias necessárias. Os moradores sentiram que perderam a identidade coletiva de sua favela, substituída por um complexo de apartamentos frio e que não fomenta o bem-estar.
“O MCMV hoje no Rio de Janeiro funciona devido ao fato de que pessoas estão sendo removidas da Vila Autódromo e tal. O MCMV foi concebido para pessoas que não têm uma casa. Hoje está sendo ofertado para aqueles que têm casas. Este é um erro enorme do MCMV; o programa está sendo usado para remoções.” – Asa Branca, Zona Oeste
As moradias construídas na Colônia Juliano Moreira, na Zona Oeste, são um outro exemplo de habitação pública com resultado negativo. Numerosos complexos de apartamentos foram construídos nesta área, dada a sua relativa proximidade com centros comerciais como Jacarepaguá, Barra da Tijuca e Taquara. A experiência dos moradores da Colônia é mista. Muitos estão lá porque foram reassentados de comunidades como Vila União de Curicica ou Ipadu. Embora alguns moradores deem boas-vindas às casas como uma alternativa positiva a sua anterior moradia em condição precária, há moradores que estão irritados com a qualidade das casas e a falta de infraestrutura.
O aspecto mais difícil destes apartamentos é o custo. Embora tenha sido prometido uma “troca de chaves” para os apartamentos, os moradores ainda não têm documentação oficial de propriedade e estão sendo perseguidos pelo banco por uma dívida de até R$70.000. Além disso, os moradores devem pagar contas altas de serviços públicos que não estão adaptadas ao fato de que os moradores estão em habitações a preços acessíveis.
Lição 9: Habitação pública de qualidade depende de envolver os moradores e aprender com a arquitetura da favela
Há problemas significativos no projeto físico das unidades do MCMV que poderiam ser consertados para manter as qualidades das favelas, priorizando espaços para caminhar, se socializarem, a conectividade e espaço para atividades comerciais dos moradores. Por exemplo, na Colônia, há também casas a preços acessíveis criadas pelo programa Favela-Bairro. Em contraste com os condomínios rígidos, pálidos e fechados do MCMV, elas são pequenas, são casas baixas que se assemelham às favelas que tem baixa estatura e incentivam uma maior sociabilidade. As unidades MCMV que são separadas por cercas têm grandes estacionamentos e proíbem atividades comerciais. O projeto não contemplou a integração de aspectos positivos do estilo da favela que apoiam o desenvolvimento dos moradores.
“As pessoas que adquiriram [casas do MCMV] não precisavam delas. Aqueles que alugam nunca foram capazes de obter alguma coisa. Este programa é muito, muito, muito mal feito.” – Cidade de Deus, Zona Oeste
Minha Casa Minha Vida tem pontos positivos. Além de ser uma importante política nacional de apoio à produção de moradias em larga escala, a parcela dedicada ao programa Minha Casa Minha Vida-Entidades é fundamental para permitir casas auto-construídas. Esta parte do programa deveria ser maior. Atualmente, apenas 5-7% do financiamento é dado a este tipo de construção.
“Minha Casa Minha Vida produz periferias. Ele constrói habitação em lugares sem infraestrutura e na minha opinião este é um aspecto muito negativo. No entanto, o componente chamado Minha Casa Minha Vida-Entidades demandado pelos movimentos sociais é um aspecto que deveria ser aumentado. Com isso você diminui um pouco as normas do mercado e os moradores têm controle sobre a construção.” – UFRJ / IPPUR
Série Completa: Lições das Favelas Cariocas para a Política Habitacional
Parte 1: Construção e Comunidade
Parte 2: Ação Coletiva e Necessidades Diversas
Parte 3: Desconfiança, Titulação e Gentrificação
Parte 4: Habitação Pública
Parte 5: Propondo Soluções