O novo prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, quando era senador pelo estado, foi autor do programa Cimento Social, que contava com recursos federais e, segundo ele, recursos de seu próprio bolso para promover a recuperação de moradias precárias em favelas pontuais, notadamente no Morro da Providência. Surpreendentemente, no entanto, seu conciso programa de governo, lançado durante a sua candidatura à prefeitura no último ano, não fazia menção à habitação social e apenas tocava brevemente no quesito urbanização de favelas, ao afirmar que firmaria parceria com a CEDAE para melhorar a infraestrutura de saneamento nas 20 principais comunidades do Rio.
Crivella prometeu ainda, em campanha, utilizar-se de concessões e parcerias com a iniciativa privada para resolver o déficit habitacional da regiões de favelas como a comunidade de Rio das Pedras, resolução essa que para ele passa pela verticalização. A construção de mais prédios e prédios mais altos e as parcerias público-privadas são duas ideias amplamente questionadas em termos urbanísticos e sociais, a primeira, dentre outros fatores, por atrair empreiteiras para construí-los e potencialmente resultar em especulação imobiliária e expulsão dos moradores originais, e a segunda, de forma simplificada, por submeter aos interesses do mercado uma responsabilidade que deveria ser da administração pública, levando muitas vezes à redução do bem-estar da população afetada.
Desde que assumiu a gestão, Crivella conferiu ao seu rival na corrida pela prefeitura, Índio da Costa, a Secretaria de Urbanismo, Infraestrutura e Habitação, resultante da fusão das antigas secretarias de Obras, de Urbanismo e de Habitação e Cidadania, então responsável pela gestão de programas habitacionais como o Morar Carioca e pela implementação municipal do Minha Casa Minha Vida. A substituição do termo “obras” por “infraestrutura” reflete a sua tentativa de rompimento com a imagem da ligação entre a prefeitura e as grandes obras de Eduardo Paes, e o desaparecimento do termo “cidadania” traz à tona questionamentos acerca das prioridades da sua administração.
Ainda nesses primeiros meses de governo, Crivella deu também a entender que a promoção da habitação nas favelas na sua gestão será feita por meio do Cartão Reforma, um programa do Governo Federal lançado no fim do ano passado, que no Rio será integrado ao já existente, porém parado desde 2013, Cimento Social.
O que é o Cartão Reforma?
O programa, anunciado pelo presidente em exercício Michel Temer e o Ministro das Cidades Bruno Araújo em novembro do ano passado, funciona como uma linha de crédito de R$2.000 a R$9.000 que visa auxiliar a famílias com renda familiar de até R$1.800 a realizar melhorias estruturais e estéticas em suas moradias. Essas incluem troca de telhado, troca do sistema hidráulico e elétrico, substituição de paredes de madeira por alvenaria, entre outros. O crédito será uma subvenção, ou seja, os beneficiários não precisarão devolvê-lo ao governo, e poderá ser utilizado para a compra de materiais de construção (somente em lojas de construção credenciadas pela Caixa Econômica Federal), mas não abarcará custos com mão de obra.
Já existe na web um site sob o domínio de cartaoreforma.org. A falta de informações conclusivas, a presença de propagandas e a linguagem pouco imparcial (que parece exaltar a gestão de Temer quando diz que o Brasil “começa a viver uma nova fase na economia interna”, que Temer “já começa a surpreender a nação” e que a medida “poderá reduzir as taxas de desemprego”) apontam para algo extraoficial.
De fato, há um aviso que diz que o site e “de caráter apenas informativo” e “não oficial”.
Apesar de ter sido anunciado já há alguns meses, informações como (1) quais são os documentos necessários para solicitar um cartão, (2) quais são os critérios para ser elegível para o benefício, para além da renda mensal, e (3) se o benefício é cumulativo com outros benefícios, ainda não estão disponíveis em fontes oficiais. Um requisito já anunciado é de que o imóvel seja próprio e esteja localizado em terreno regularizado ou passível de regularização, além de que não esteja localizado em área de risco. A dificuldade de uma definição objetiva do que configura área de risco e, mais ainda, terreno passível de regularização abre um precedente para a instrumentalização desses conceitos na direção de restringir o acesso ao benefício àqueles que mais precisam, e abre espaço para priorizar certas famílias de acordo com interesses politicos.
Outra crítica feita por especialistas é de que a cobertura do programa é muito baixa. Com um orçamento anunciado de R$500 milhões e considerando-se um repasse médio de R$5.000, apenas 100.000 famílias teriam acesso ao benefício na primeira fase do programa, cerca de 3% das 3,5 milhões de famílias que se enquadrariam nos critérios de renda para recebê-lo. Só no Rio de Janeiro, pelo menos 45.000 famílias vivem com até R$1800, quase metade de todas as famílias que seriam beneficiadas pelo programa nacional. Além disso, o programa está desvinculado de políticas sociais mais abrangentes. Não adianta somente refazer a instalação hidráulica de uma moradia, se ela não está ligada às redes de abastecimento de água e de coleta de esgoto, por exemplo. E não adianta subvencionar os custos com material, se a família não tem acesso ao conhecimento técnico necessário para realizar as melhorias de forma eficaz.
Diferente de programas anteriores de urbanização de favelas como o Morar Carioca e o Favela-Bairro, que eram programas da gestão municipal, o Cartão Reforma é um programa nacional do governo federal, o que significa que não haveria desembolso por parte da prefeitura. Os governos municipal e estadual apenas ficariam responsáveis por selecionar os beneficiários e por fornecer técnicos que acompanhem e fiscalizem a obra, o que pode ser um desafio na conjuntura atual de quebra dos cofres públicos e de nomeações menos técnicas e mais políticas. Segundo Bruno Araújo, a responsabilidade vai além do acompanhamento e fiscalização, para também a idealização das melhorias a serem feitas, o que oneraria ainda mais a prefeitura e o Governo do Estado. “Estados e municípios vão contratar engenheiros, paisagistas, arquitetos e vão instruir a dona da casa, a mulher, a como melhorar sua residência”, disse o ministro.
E onde entra o Cimento Social?
O programa Cimento Social, por sua vez, foi criado pelo atual prefeito e então senador Marcelo Crivella no final de 2007 para a urbanização e recuperação de moradias precárias no Morro da Providência, substituindo-as por casas de módulos pré-fabricados. Inicialmente, a implementação não passou pela Prefeitura do Rio de Janeiro: tratava-se de um convênio entre o Ministério das Cidades e Ministério da Defesa, envolvendo militares do exército e funcionários contratados na própria comunidade na sua execução, e com aportes do governo federal.
Maurício Hora, fotógrafo que documenta a história da Providência há décadas, relata: “No início a implementação do programa foi bem tranquila, porque, diferente de outros programas, ele não envolvia remoções”, remoções essas contra as quais Crivella inclusive comprometeu-se durante a sua campanha. Mas alguns meses depois as coisas mudaram. “O grande problema estava na ação do exército”, ele conta. Em 2008, três jovens do Morro da Providência foram torturados e mortos como resultado de ação de 11 militares do exército, cujo emprego na direção de garantir a execução do projeto foi justificado com base na presença de traficantes na comunidade.
Dez dias depois, as obras foram interrompidas pelo Tribunal Regional Eleitoral, alegando que tinham caráter eleitoreiro e estavam sendo usadas para promoção política, visto que Crivella seria candidato a prefeito no mesmo ano. Também o emprego indevido das forças armadas foi amplamente questionado. “Aí o Crivella continuou fazendo o projeto com o dinheiro dele, segundo informações que ele e a equipe davam, para poder bancar a ideia”, mesmo na ausência de verbas federais, segundo Maurício.
Rodeado de polêmicas pela demora nas obras, pela restrição das famílias beneficiadas (moradores alegavam que o recebimento do beneficio estava vinculado à filiação à Igreja Universal, da qual Crivella é bispo), pelos custos do projeto e pela má qualidade das reformas feitas, faltam relatórios com informações de quantas famílias foram de fato beneficiadas. Das 800 famílias planejadas para serem contempladas na Providência, somente 100 receberam as casas, segundo o próprio site do Crivella, apesar do prefeito ter afirmado anteriormente que as obras estavam em andamento em mais de 700 moradias.
Diferente de outros programas de urbanização e habitação, também, não havia preocupação com a provisão de serviços e a recuperação dos espaços públicos. “Viver na favela não se limita à questão da habitação. Um dos maiores desafios é o do espaço público. Em vários lugares da favela não tem rua, só becos apertados, sem acessibilidade. Não tem quintal, não tem lugares para as crianças brincarem. As intervenções deviam estar mais preocupadas em criar ruas do que servir à estética”, denuncia Maurício.
Crivella declarou durante a sua campanha que a recuperação do espaço público é de fato uma de suas prioridades: “[A prefeitura anterior] deixou ruas esburacadas, não cuidou das calçadas, das praças, da iluminação, principalmente na Zona Norte e na Zona Oeste. Com muito diálogo com os moradores, vamos identificar onde mais faltou atenção da prefeitura e tratar de corrigir esse desleixo. Não queremos obras megalômanas e caras porque nossa prioridade é cuidar das pessoas, sobretudo de quem mais precisa.” Porém não é isso que Maurício observou na implementação do Cimento Social: “Foi um programa pequeno, que beneficiava casas pontuais em algumas áreas que davam mais visibilidade ao projeto. Nem sempre os favorecidos eram os que mais precisavam”.
Após a realização das eleições de 2008 e nos anos que se seguiram, a responsabilidade pelo financiamento e a execução do programa continuou a ser passada de mão em mão: o Ministério das Cidades alegou que o da Defesa era o responsável pela implementação, mas este afirmou que o exército só estava lá para garantir a ordem para a sua execução. Em 2012, novamente em ano eleitoral, a prefeitura de Eduardo Paes, que buscava a reeleição, incorporou o programa a sua gestão e a responsabilidade pela execução passou para a Secretaria Municipal de Obras, mas a última entrega de casas do programa data de 2013. “Parece que agora a prefeitura de Crivella está voltando com o projeto, mas ainda não sei sob qual nome. E disseram que vai abranger só reformas, não construção de casas”, disse Maurício. Parece tratar-se, de fato, do Cartão Reforma, que não lida com a questão urgente do déficit habitacional.
E o que foi feito do Morar Carioca?
O anúncio de mais um novo programa voltado para habitação no Rio de Janeiro levanta questões quanto à continuidade dos programas já existentes, como do programa Morar Carioca. Lançado em 2010 e baseado no aprendizado do Favela-Bairro e a partir do reconhecimento, nos seus princípios, da favela como uma solução para os problemas de habitação na cidade, o Morar Carioca visava integrar todas as favelas à cidade formal até o ano 2020 por meio da urbanização com participação efetiva das favelas e um orçamento de R$8 bilhões.
O Morar Carioca foi considerado inovador pelas décadas de conhecimento técnico através do aprendizado com o Favela-Bairro incorporado no programa, além de seu caráter altamente participativo: para a sua idealização cada firma de arquitetura selecionada para um conjunto de favelas teria um assistente social ou antropólogo especialista trabalhando com base na região, haveria um escritório dentro da comunidade para troca contínua com moradores, e um processo de consultas com as comunidades liderado pela ONG iBase. Sua execução caberia a 40 escritórios de arquitetura selecionados por um concurso altamente competitivo. As obras de grande escala incluiriam melhorias no saneamento básico, instalações de esgoto, iluminação nas ruas, asfaltamento das ruas e calçadas, limpeza de canais, construção de espaços públicos verdes e áreas de recreação, melhoria na conectividade dos transportes, estabilização de moradias e a construção de centros de serviços sociais. Enfim, o programa, caso implementado de acordo com seus princípios oficiais, levaria à urbanização integral das comunidades, com base nos ativos de cada favela e de acordo com as demandas de seus moradores.
Em 2010, o projeto foi anunciado como parte do legado social dos Jogos Olímpicos de 2016, porém o Prefeito Eduardo Paes o ignorou em todos os anos exceto os dois anos de eleição de 2012 e 2016, cada vez iniciando e depois abandonando o Morar Carioca novamente. O contrato com a iBase foi rompido em janeiro de 2013 após a reeleição de Eduardo Paes em 2012, e o repasse para os poucos escritórios de arquitetura que o haviam recebido foi descontinuado, de forma que o programa foi interrompido em meio a informações desencontradas e falta de transparência. O resultado foi o descumprimento da meta de contemplação de 156 mil domicílios até 2016 e um repasse de apenas 17% da verba prometida para o período. Quer dizer, o programa foi utilizado somente para fins eleitoreiros.
E agora o Prefeito Marcelo Crivella nem menciona o Morar Carioca, fruto de décadas e aprendizado do Instituto Brasileiro de Arquitetos (IAB) no processo de urbanização das favelas do Rio.
Um exemplo dessa interrupção ocorreu na favela do Pica-Pau. No ano de 2011, a comunidade foi escolhida para a primeira rodada de financiamento do programa e os moradores foram envolvidos em uma série de visitas técnicas e reuniões para desenhar de forma participativa as intervenções urbanas que seriam realizadas como parte do programa, as primeiras por parte do poder público na história da comunidade. O plano de intervenção, que deveria ter ficado pronto em meados de 2012, até hoje não foi apresentado aos moradores, assim como ocorre nas outras 218 favelas do município que seriam atendidas pelo programa nesse período, e nenhum recurso foi aplicado até agora. As únicas obras parcialmente realizadas no âmbito do programa são, na verdade, anteriores ao próprio: ao anunciar o programa em 2010, Eduardo Paes o chamou de “Morar Carioca Fase II”, como se as obras anteriores de recuperação de infraestrutura em favelas, como as remanescentes do PAC, configurassem a Fase I do programa, apesar de não terem sido realizadas sob as suas diretrizes, tampouco seu financiamento.
Em maio de 2016, o programa foi finalmente lançado na região de Cordovil, na Zona Norte, onde se encontra a comunidade, com a presença de Pedro Paulo, candidato de Eduardo Paes para a prefeitura naquele ano eleitoral. “As obras começaram em outros lugares e falaram que depois viriam para cá, mas com a mudança do governo parou tudo de vez”, disse Irenaldo Honório da Silva, presidente da Associação de Moradores de Pica-Pau. Ele não desistiu de contatar a prefeitura e as empreiteiras, mas se pergunta se a mudança de gestão vai implicar na mudança também da empresa e dos técnicos responsáveis pelas intervenções, com quem ele já havia estabelecido contatos para cobrar o andamento das obras. A última data anunciada pela prefeitura para o início das obras havia sido em abril de 2016, e mesmo após a visita de Eduardo Paes em maio, novas datas não foram estabelecidas. A falta de informação é a única constante em todo esse processo e vai de encontro ao próprio princípio participativo do programa.
Com a vitória de Crivella, permanecem as dúvidas sobre a continuidade do programa, especialmente face a aposta anunciada pelo prefeito no Cartão Reforma. Esse funciona de forma muito mais superficial que o Morar Carioca ao abarcar apenas moradias e não projetos de infraestrutura, que são muito mais urgentes, ao mesmo tempo que coloca a responsabilidade pela execução das obras sobre os próprios cidadãos, isentando a prefeitura de maior envolvimento, tanto financeiro quanto executivo. No caso do Cartão Reforma, todo o recurso será proveniente do governo federal, em contraposição à participação financeira que o governo municipal teria no Morar Carioca, e o papel da prefeitura estará limitado à seleção dos beneficiários e à provisão de técnicos para o acompanhamento das obras e para a sua fiscalização, papel que será dividido com o governo do estado, de uma forma que ainda não está clara.
O que é preciso é a implementação plena do programa Morar Carioca, para equiparar os níveis de infraestrutura e serviços das favelas àqueles do asfalto, em vez de servir a fins políticos, como vem acontecendo ao submeterem a sua execução à dinâmica eleitoral e ao apropriarem-se do nome do programa para uma série de intervenções que não condizem com a sua metodologia participativa.