Leia a matéria original por e Eliana Sousa Silva em inglês no site da The Conversation aqui. O RioOnWatch traduz matérias do inglês para que brasileiros possam ter acesso e acompanhar temas ou análises cobertos fora do país que nem sempre são cobertos no Brasil.
Em 25 de março de 2017, duas professoras da UFRJ acompanharam um grupo de 13 estudantes da Escola de Serviço Social para visitarem o local de seu próximo estágio: a Casa das Mulheres da Maré, um espaço comunitário para mulheres em um dos maiores complexos de favelas do Rio de Janeiro.
O bairro da Maré, na parte Norte da cidade, abriga aproximadamente 140.000 pessoas que vivem em 16 comunidades diferentes. Por estar localizada ao longo de três das principais vias expressas da cidade–a Avenida Brasil, a Linha Amarela e a Linha Vermelha–todos os viajantes internacionais passam por ela ou pela parede que oculta a Maré dos olhos dos turistas no caminho para o aeroporto do Galeão.
Quando as estudantes se reuniram no ponto de encontro na área do Parque União, os espíritos estavam animados. Em lojas do bairro e praças, moradores estavam se preparando para um sábado ensolarado e montando uma campanha de vacinação contra a febre amarela.
Algumas estudantes haviam mencionado que suas famílias estavam preocupadas por elas estarem trabalhando na Maré. As gangues armadas operam abertamente neste assentamento informal, e em um período de sete dias deste ano, uma série de cinco conflitos deixou seis mortos e três feridos, de acordo com o grupo comunitário Redes da Maré, que monitora a segurança pública no bairro.
Mas as mulheres se sentiam confiantes. Elas foram informadas de que elas só entrariam na favela se fosse seguro, a caminhada até a Casa das Mulheres foi sem intercorrências e elas foram calorosamente recebidas pela equipe.
O “caveirão”
Após 90 minutos da animada reunião, tiros foram ouvidos nas proximidades. Os moradores locais pareciam calmos, mas as mensagens do WhatsApp que pingavam em telefones celulares alertaram a equipe da Casa sobre uma operação policial surpresa no Parque União.
O BOPE chegou às 11h. Agora tiros de arma foram substituídos por rajadas de metralhadoras e explosões.
O grupo tentou manter a calma e continuar a reunião, apesar das interrupções frequentes. Quando o tiroteio ficou mais intenso, se abrigaram sob as escadas e na parte de trás da cozinha industrial recém-instalada.
Ao sair do centro comunitário em segurança às 15h, o grupo passou por vários tanques, que os moradores chamam de caveirão, e por 30 homens armados de uniforme: oficiais do BOPE.
Quando chegaram em casa, souberam que quatro moradores de Maré tinham morrido naquele dia, não muito longe da Casa das Mulheres.
‘Um dia normal’
Eu era uma das duas professoras e eu estava perturbada. Mas o dia 25 de março foi apenas um dia comum para milhares de pessoas que vivem nas zonas de conflito da segunda maior cidade do Brasil.
De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, um grupo de pesquisa em segurança pública, 4.572 pessoas foram assassinadas no Estado do Rio de Janeiro em 2016, um aumento de quase 20% em relação ao ano anterior. Somente em fevereiro de 2017, o Estado registrou 502 assassinatos, 24,3% a mais que fevereiro de 2016.
A taxa nacional de homicídios no Brasil é a nona das Américas, de acordo com um relatório da Organização Mundial de Saúde de 2016, com 32,4 mortes por 100.000 habitantes. Isso é pior do que Haiti (26,6), México (22) e Equador (13,8), mas melhor do que os homicídios que assolam Honduras (103,9), Venezuela (57,6), Colômbia (43,9) e Guatemala (39,9).
Mas neste país de 200 milhões, o número absoluto é surpreendente. Mais pessoas foram assassinadas no Brasil no período de cinco anos de 2011 a 2015 (279.567 vítimas) do que as mortas na guerra na Síria (256.124 vítimas). Destaca-se também o perfil das pessoas que morrem: em 2015, 54% das vítimas de homicídios brasileiros eram jovens entre 15 e 24 anos, e 73% eram negros ou pardos.
Os números de violência policial são ainda mais impressionantes. Entre 2009 e 2015, a polícia matou 17.688 pessoas. Dados do Fórum Brasileiro indicam que, em 2014, 584 pessoas morreram como resultado de “autos de resistência” de intervenção policial. Em 2015, 645 de um total de 58.467 mortes violentas foram nas mãos da polícia. E no ano passado, 920 pessoas foram mortas pelas mesmas forças que, em teoria, deveriam protegê-las.
No bairro da Maré, o número de mortes de policiais no ano passado foi de 17, resultado de 33 operações policiais. Essa taxa de 12,8 óbitos por 100.000 é oito vezes maior do que no resto do Brasil e três vezes a do Estado do Rio de Janeiro.
Seguro para quem?
Já neste ano, a Maré já viu 12 operações policiais brutais semelhantes a do dia 25 de março. Até agora, 11 pessoas ficaram feridas e cinco mortas, incluindo quatro moradores e um policial, de acordo com o grupo Redes da Maré. Estes números não incluem os resultados de mais uma operação que aconteceu enquanto este artigo estava em produção.
Como as professoras universitárias e as estudantes que testemunharam aquele dia de violência em março, os moradores da Maré e de outras favelas do Rio de Janeiro ficam aterrorizados com o aumento de violência na cidade.
A polícia do Rio claramente não está ajudando. Pesquisas mostram que as invasões parecidas com as de guerras em lugares como a Maré–realizadas principalmente pela Polícia Militar–não fornecem resultados positivos ou sustentáveis. Em vez disso, os ataques criam medo generalizado, ferem ou matam pessoas inocentes e matam pessoas: tanto suspeitos quanto policiais.
No dia seguinte à invasão, a velha “ordem” é restaurada. Nada muda, só se deteriora.
Tais ataques não deixam apenas um rastro de sangue, mas também criam ódio, ressentimento e uma profunda desconfiança das instituições governamentais. Pouco a pouco, a imagem da polícia do Rio tornou-se dissociada das noções de justiça e proteção.
O Brasil vem tentando sem sucesso acabar com o crime através da aplicação de uso de força militar há décadas, mas os governos permanecem imunes às críticas da população local e das organizações internacionais de direitos humanos.
Claro, não há solução fácil. A mudança definitiva na Maré exigiria profundas mudanças socioeconômicas e culturais em todo o Brasil. Trata-se de lidar com o racismo estrutural do país, a desigualdade abissal e o estigma social que justificam quase todo o tratamento com os mais pobres.
Como apontou o autor Luiz Eduardo Soares, “a brutalidade policial não existiria sem autorização social“. A opinião pública e os meios de comunicação sancionam essas mortes, caso contrário o governo não poderia continuar a desdobrar seus recursos contra seu próprio povo. O mesmo se aplica aos promotores e funcionários da justiça que deixam a violência policial sem punição.
Será que as crianças de Maré serão vacinadas com segurança neste sábado? As estagiárias retornarão à Casa das Mulheres no próximo fim de semana sem medo? Neste ponto, só podemos esperar.
Este artigo foi de co-autoria de Eliana Sousa Silva, PhD, diretora executiva da organização comunitária Redes da Maré.