No sábado, dia 3 de fevereiro, enquanto os foliões cariocas tomavam as ruas da cidade no clima pré-carnavalesco, um grupo se reuniu em frente à sede do jornal Meia Hora para realização de um piscinaço. O ato lúdico foi realizado em repúdio à capa do Meia Hora de 21 de janeiro, que trazia uma imagem de crianças brincando em piscinas de plástico junto à manchete “Piscinas Suspeitas na Maré”. O evento foi organizado por ativistas de diversas favelas que se uniram para denunciar a criminalização da favela.
“A gente não pode aceitar mídias como essas que colocam a gente na capa para criminalizar os nossos corpos”, explicou Gizele Martins, moradora do Complexo da Maré e uma da organizadoras do evento. “A gente tem que repudiar cada capa, cada matéria racista que jornais comerciais como esse fazem com os nossos corpos. Preto, pobre e favelado pode se divertir sim.”
Na fala de abertura do ato, Thainã Medeiros, morador do Complexo do Alemão e integrante do Coletivo Papo Reto, compartilhou sua indignação: “O Meia Hora fez uma matéria criminalizando a presença de piscinas na Maré, uma realidade que é comum a todas as favelas. A galera tem piscina, não é um produto caro de se comprar. Não é absurdo que se tenha.”
A matéria do Meia Hora alegava que as piscinas retratadas na foto teriam sido compradas pelo tráfico, uma suposição irresponsável frente ao fato de que a Polícia Civil declara não haver qualquer investigação em curso para determinar a origem das piscinas. Os organizadores do piscinaço informaram que a foto, que estima-se ter sido tirada em 2016, foi compartilhada primeiro nas páginas Favela Nova Holanda e Maré Vive, populares entre moradores do Complexo da Maré. A matéria do Meia Hora não é assinada por nenhum jornalista e a foto não tem qualquer atribuição.
Comentando uma postagem no Facebook sobre o assunto, um morador da Nova Holanda, comunidade integrante do Complexo da Maré, também fez seu repúdio. “Essa segunda piscina é lá de casa e não teve 1 real do tráfico, [eles] têm que superar a frustração de que um pobre não pode ter piscina. Vai ter piscina sim, e se falar muito eu compro um mini tobogã.”
Thainã ainda ressaltou que o evento, que precisou de recursos financeiros para contratação de carro pipa e compra de piscinas, foi realizado com doações arrecadadas a partir de uma postagem na página do evento no Facebook.
As falas de abertura do ato foram seguidas do entoar, de punhos erguidos no ar, o clássico Rap da Felicidade, do Cidinho e Doca. “Favela é isso aqui, é potência, é a gente se reunindo, sobrevivendo e resistindo, por mais que tentem nos exterminar”, declarou Marcelle Decothé, do Fórum de Juventudes do Rio de Janeiro.
Transeuntes que passaram pelo ato se depararam com pessoas se divertindo em piscinas infláveis, tomando cerveja, comendo frango assado e ouvindo uma boa música. Em meio à diversão, os presentes discutiram o efeito da grande mídia sobre a vida dos moradores de favela. “Eu sempre digo que a mídia comercial tem um dono, que são os ricos. Ela tem um propósito de ser mesmo racista, de criminalizar mesmo, de colocar a população contra os movimentos sociais, a população contra ela própria”, refletiu Gizele.
“A grande mídia hoje intensifica a criminalização, intensifica o extermínio, intensifica todo esse processo diário que qualquer pessoa que mora em favela e periferia sofre atualmente. A grande mídia serve ao Estado”, complementou Marcelle. “A gente precisa refletir sobre quem vê uma imagem de uma piscina na favela e fala que aquilo é a mando do tráfico. Que mentalidade, que realidade, que vivência essa pessoa tem?”
Gizele, que é jornalista, contrastou a atuação da mídia comercial com o jornalismo feito por moradores. “A nossa comunicação é de auto estima, de reconstrução e de construção da nossa história. Então a gente tem que reforçar a comunicação da favela, produzir mais meios de comunicação comunitária e fortalecer os que já existem.”
Marcelle concordou: “Eu só acredito na comunicação que vem de dentro. Nada sobre nós sem nós”.
Um fato que não passou despercebido pelos presentes, foi a presença da Polícia Militar desde o início do ato. Quando chegaram os primeiros manifestantes, o carro já estava a postos ao lado da entrada do jornal.
“Onde tem favela tem polícia”, observou Gizele.
O evento chegou ao fim com um ato simbólico. Os presentes tingiram a água da piscina de vermelho cor de sangue e a derramaram em frente à redação do jornal, evidenciando a responsabilidade da mídia com respeito ao extermínio de moradores de favela.
Enquanto isso, na redes sociais, os dois pesos e duas medidas com que a mídia trata o lazer na favela e no asfalto foi evidenciado por internautas que criaram capas satíricas. Alegando que áreas de lazer da Zona Sul teriam sido financiadas pelo tráfico, as capas traziam manchetes como “Vôlei suspeito em Copacabana“, “Bicicletas suspeitas na Lagoa” e “Parquinho suspeito no Leblon“.
A crítica à diferença de tratamento se fez ainda mais relevante quando no dia 5 de fevereiro, dois dias após o piscinaço, a capa do jornal O Globo estampou uma foto de foliões em uma piscina inflável sob a manchete “Para se refrescar no fogo da folia”. Para agravar a situação, uma das pessoa retratadas estava vestida como a cantora Anitta em seu clipe ‘Vai Malandra’.
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E no dia 6 de fevereiro, dia em que ocorreu uma operação policial que deixou dois mortos no Complexo da Maré, diversas pessoa compartilharam a imagem de uma piscina que foi rasgada por policiais. A página Maré Vive compartilhou a imagem junto à legenda: “Os policiais acabaram de rasgar uma piscina comprada coletivamente por moradores na Vila do João. E quem vai pagar o prejuízo? […] É isso que o Estado consegue colocar nos nossos corações: ódio. Esse é o resultado da matéria do jornal Meia Hora!!!”
Para além do piscinaço e das manifestações virtuais, os organizadores do evento declararam que pretendem tomar medidas formais para denunciar a reportagem irresponsável do jornal Meia Hora. Contempla-se uma ação no Ministério Público e uma denúncia à Comissão de Ética dos Jornalistas.