O Fórum Social Mundial (FSM) é uma iniciativa da sociedade civil nascida em Porto Alegre, em 2001, em contraposição ao Fórum Econômico Mundial, que reúne todo ano especialistas na cidade de Davos, Suíça, para definir os rumos da economia mundial. Em contraposição a isso, o FSM promove “o encontro democrático, plural e de resistência com o objetivo de incentivar debates, aprofundamento da reflexão coletiva, troca de experiências e a constituição de coalizões e de redes entre os movimentos da sociedade civil organizada e organizações comunitárias que se opõem ao neoliberalismo e ao domínio do mundo pelo capital”.
A edição desse ano, a 13ª da história do Fórum, aconteceu entre os dias 13 e 17 de março, em Salvador, na Bahia, reunindo uma estimativa de 60.000 pessoas de 120 países. Com o lema “Resistir é criar, resistir é transformar!”, as atividades cobriram uma gama de bandeiras importantes, incluindo a luta antimanicomial, as populações em situação de rua, a luta contra o racismo, questionamentos em relação à atual estrutura econômica, o direito à cidade e à moradia, a liberdade da mídia, juventude, economia solidária, entre outros.
Em uma cidade na qual mais de 75% da população é negra, o Fórum fez jus à diversidade não só com o grande número de participantes negros, mas com o expressivo número de mesas promovendo debates racializados e reafirmando que “Vidas Negras Importam”–que era, inclusive, um dos eixos temáticos do Fórum, proposto pela sociedade civil em um processo de consulta pública feito pela organização. Sobre isso, Raull Santiago, ativista do Complexo do Alemão e integrante do Coletivo Papo Reto e do Movimento, escreveu:
“No avião, de cara, umas 5 pessoas de luta e que são moradoras de favela. Mais vários cabelo blackzão lindo. Outros muitos turbantes e dreads. Variedades de saudação e apertos de mão, acompanhado das gírias!!!
Mano, o avião mais povo que já peguei na vida, na moral. Também, só poderia ser rumo a Salvador!
Segura, Fórum Social Mundial (FSM), a parada vai ficar como, mil graus!!!!”
A Marcha de Abertura, no dia 13, reuniu milhares de pessoas em um percurso de 4 quilômetros até a Praça Castro Alves, a “Praça do Povo”, palco de grandes manifestações de luta e resistência baiana. No dia 14, houve uma roda de conversa que reuniu ativistas periféricos de todo o país sobre a literatura nas favelas e sua contribuição para territórios saudáveis. Também houve um debate intitulado “Guerra às drogas, genocídio da juventude negra e encarceramento em massa”, promovido pelo Conselho Federal de Psicologia, no qual discutiu-se como a guerra às drogas é tida como uma justificativa jurídica para a violência nas periferias e como o ser periférico deve ser visto não como objeto de políticas, mas sujeito de direitos. Esteve também em sessão o Tribunal Contra os Despejos, julgando 5 casos de remoções pelo Brasil.
No mesmo dia, a atividade “Moradia Popular: Ocupações, Projetos de Moradias“, trouxe a experiência de cinco ocupações na área central do Rio de Janeiro (Casarão Azul, Zumbi dos Palmares, Flor do Asfalto, Machado de Assis e Quilombo das Guerreiras). Os pesquisadores e ativistas envolvidos no projeto rechaçam o termo “revitalização” do Porto, como proposto pela prefeitura durante as Olimpíadas. “Como se pode revitalizar um espaço que já é cheio de vida e de histórias?”, questionou Roberto Santos, membro do projeto da UFRJ. “Inúmeras moradias foram postas para fora com requinte de crueldade por parte da prefeitura para pôr no lugar um painel esteticamente bonito”, disse Rolf Malungo de Souza, professor da UFF e membro do projeto, referindo-se aos grafites no Boulevard Olímpico e a remoção dos ocupantes do Casarão Azul. Segundo eles, esse projeto de “revitalização” envolve uma disputa simbólica e ideológica para além da econômica.
A programação, no entanto, foi interrompida bruscamente pelo assassinato brutal da Vereadora Marielle Franco e o motorista Anderson. Na manhã de quinta-feira, um ato puxado por integrantes do MNLM (Movimento Nacional de Luta pela Moradia) percorreu o campus da Universidade Federal da Bahia (UFBA), crescendo de tamanho à medida que as pessoas abandonavam as atividades do fórum para se juntarem ao ato. O ato seguiu nas ruas de Salvador, com falas em homenagem à Marielle e ressaltando o simbolismo de sua luta–e também sua morte–para a população negra, especialmente as mulheres, que passa por uma crise de representação política para além das opressões diárias.
Uma das atividades que não ocorreu em decorrência da notícia foi a Oficina que seria liderada pelo grupo Movimentos: “Drogas, juventude e favela”. Raull justificou em um post em seu perfil do Facebook:
“Diante da gravidade do acontecido, acontecendo no Rio de Janeiro, não estamos em condições de seguir com a oficina, pois precisamos organizar muitas coisas lá, além de estarmos desde então, reunidos-as, desenrolando várias paradas.”
A programação foi parcialmente retomada à tarde do mesmo dia. O Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC) somou ao debate sobre a mídia livre ao promover o lançamento da “Teia de Comunicação Popular”, idealizada em 2003 quando quatro jovens foram assassinados pela polícia na favela do Borel, no Rio de Janeiro. Em um post sobre o evento na página do NPC lia-se:
“Em nome de Marielle, uma favelada negra, vamos arrumar coragem e, como ensinou Henfil, vislumbrar no horizonte a esperança. A esperança nos encontra hoje na Teia de Comunicação Popular.”
O dia culminou no ato “Em Defesa da Democracia”, que contou com a participação do ex-presidente Lula e a pré-candidata Manuela D’Ávila (PCdoB). Marielle foi inclusive lembrada diversas vezes durante o ato: “Os fascínoras, cafajestes, que mataram Marielle, não percebem que mataram apenas a carne dela. Mas as ideias libertárias dela e a defesa dos direitos humanos hoje são muito mais fortes do que quando ela tava em vida andando sozinha pelo Rio de Janeiro”, disse o ex-presidente.
No dia 16, houve hesitação em manter a mesa “Juventude Negra em Debate: Genocídio, Políticas de Drogas e Estratégias de Segurança Coletiva”, pela gravidade da situação e pela dificuldade dos convidados em se articularem após a tragédia. O Coletivo Papo Reto e os integrantes do Movimentos já tinham retornado ao Rio, mas Priscila Rodrigues, do Observatório de Favelas, e Thais de Jesus, da Redes da Maré, representaram o Rio de Janeiro nesse importante debate, organizado pelo FOPIR (Fórum Permanente pela Igualdade Racial) e com participação também do Odara – Instituto da Mulher Negra.
Priscila começou sua fala lembrando como Marielle sempre saudava a ela com a frase “E aí, negona?”. “Ela queria nos escutar e queria que cada mulher negra falasse. É por isso que a gente tá aqui falando hoje, continuando as nossas agendas”, disse ela. Ela ainda ressaltou a importância da mídia comunitária e de projetos de fotografia voltados para moradores para a construção de outras narrativas sobre a favela, narrativas que sejam de potência e não baseadas em um olhar de fora da favela que “já vem procurando dor, sofrimento”. Thais, por sua vez, apresentou os mecanismos que a Redes utiliza para monitorar a ação policial e seus efeitos e incidir sobre o debate público. Thais ainda somou forças com uma moradora do Nordeste de Amaralina, uma favela em Salvador também marcada pela violência policial, e dividiu sua experiência: “a gente tem que denunciar o Estado, não o policial X ou Y por uma ação dessas”.
A partir de depoimentos de jovens negros de diversos lugares do país, o debate questionou o tráfico de drogas como o grande problema de segurança pública e questionou o genocídio da juventude negra confinado ao campo da segurança pública, enquanto o movimento de mulheres negras tem feito esforços para pensar ele na amplitude que ele exige, envolvendo discussões de saúde, direito reprodutivo, epistemicídio (termo cunhado por Sueli Carneiro, para falar da ausência do sujeito e do saber negro no conhecimento tido como acadêmico).
O debate ainda contou com intervenções da plateia–a fim de inspirar iniciativas em outros lugares do Brasil–de Vitor Mihessen, da Casa Fluminense, falando da experiência da organização com a territorialização de indicadores para toda a metrópole e produção dos mapas da desigualdade, e de Fabio Silva, do Data_Labe, falando sobre instrumentos para a disputa das narrativas oficias e construção de outras a partir de dados. “Uma operação policial na favela para a mídia é apreensão de drogas e trânsito na Avenida Brasil; para nós, são mortes e dias de aulas perdidos”, disse ele, em alusão aos dados trazidos por Thais, que demonstrou como as crianças na Maré têm, ao final do período escolar, mais de um ano de defasagem em relação às outras crianças, visto que perdem uma média de 35 dias de aula por ano pelas aulas canceladas em dias de operação.
Finalmente, também no dia 16 foi comemorado o Dia Nacional do Teatro do Oprimido, que contou com atividades com o intuito de dialogar sobre o fortalecimento da cidadania e a justiça social através do teatro, e que também homenageou Marielle.