Em uma noite chuvosa, debaixo de um viaduto barulhento no Morro da Providência, no Centro do Rio de Janeiro, moradores da favela, ativistas, cineastas e fãs de cinema se reuniram no evento Favela Feminista: Marielle Presente, uma exibição de curtas-metragens produzidos por mulheres cineastas no Rio. O evento, organizado pelo Favela Cineclube, havia sido adiado por uma semana após o assassinato brutal da vereadora Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Pedro Gomes. O evento remarcado para o dia 22 de março foi dedicado à Marielle, com a exibição dos filmes precedida por um vídeo celebrando a vereadora. Após as exibições houve um debate poderoso e emotivo com as cineastas, sobre seus trabalhos, o legado de Marielle e a contínua violência perpetrada contra pessoas negras no Brasil.
Filmes feministas: guerreiras brasileiras
Os filmes foram escolhidos para mostrar o trabalho de mulheres diretoras no Rio por conta do Dia Internacional da Mulher e incluíram ficção, documentário e mídia ativista. Como declarado na página do evento no Facebook do clube de cinema, todos os curtas-metragens apresentavam uma coisa em comum: As “protagonistas são guerreiras brasileiras”.
‘O Som do Teu Toque‘ é uma convocação ao combate à violência doméstica contra mulheres. Sabrina Viegas, a diretora, reiterou, após o filme, que “nós precisamos denunciar a violência. Nós devemos fazer alguma coisa”. O documentário ‘Lua’ olha para a feminilidade e as experiências da infância através dos olhos de Lua Guerreiro, uma trans não binária, moradora do Rio. ‘Moradores da Maré: D. Orosina e D. Vera‘ presta homenagem a duas das primeiras moradoras do Complexo da Maré e oferece um vislumbre do Museu da Maré, um dos primeiros espaços do tipo dentro de uma favela. ‘Não Pense que Sabe Ser Quem é‘ por Leila Xavier é um curta que evoca com crueza questões sobre a identidade negra. ‘Maria Adelaide‘ é um filme lindamente filmado, que traz um elemento de esperança à tela, seguindo a jornada de uma jovem mulher para encontrar a si mesma depois de se mudar para o Rio de Janeiro. A mensagem do filme, segundo a diretora, Catarina Almeida, é a de que “a vida pode ser boa”.
“Marielle Presente”: Parem de matar nosso povo
Depois das exibições, a audiência foi convidada a formar um círculo, no campo de esportes de concreto adjacente, e participarem do debate com as cineastas, conduzido pela crítica de cinema Samantha Brasil. Muitas das pessoas presentes conheciam Marielle pessoalmente e foram inspiradas por seu trabalho. Lágrimas foram derramadas enquanto as cineastas discutiam seu legado e a contínua violência perpetrada no Brasil contra a população negra. Rosa Miranda, diretora de ‘Lua’ e fundadora do coletivo artístico Kbça D’ Nêga, lutou contra suas lágrimas ao demandar: “Parem de matar nosso povo!” A historiadora Carolina Rocha, que contribuiu com dois poemas para o filme ‘Manifesto 8M – Rosas da Sangue‘, questionou: “Nós, mulheres negras, salvamos homens, mas quem nos salva?”, antes de conduzir o grupo a cantar uma música celebrando a solidariedade feminina, tema absoluto do debate.
Depois do evento, o RioOnWatch conversou com Maria de Fatima Lima, conhecida como Fatinha Lima, moradora da Providência e fundadora do Favela Cineclube.
RioOnWatch: O que te motivou a começar o Favela Cineclube em 2016?
Fatinha: Na época, eu desejei ocupar espaços para a organização da militância de enfrentamento ao golpe jurídico-midiático institucional que abateu a democracia brasileira, já frágil. O fato de frequentar o Cineclube Mate Com Angu, de Caxias, na Baixada Fluminense, me deu a dimensão e a potência da atividade para promover encontros e debates.
RioOnWatch: Como a vida dos organizadores do Cineclube foi impactada pelo projeto?
Fatinha: Nós passamos de meros observadores, passivos, indefesos a ativistas, midialivristas e realizadores das nossas narrativas. Hoje cobrimos pautas e debatemos o que nos interessa, o que é urgente, mas que a sociedade se recusa a fazer.
RioOnWatch: Quais mudanças ocorreram neste projeto desde seu início?
Fatinha: O projeto não mudou, ele se desenvolveu e cresceu. Nós começamos a investir em criação de redes de compartilhamento de informação e tecnologia. Tudo por assim dizer, o objetivo e o evento em si, continuam os mesmos, eu e as demais pessoas que seguem o cineclube, é que estão mudando. A minha mãe, que antes não se engajava em temas de direitos humanos, hoje, faz perguntas… Ela começou a perguntar e a se questionar sobre assuntos que antes, ignorava. Assuntos urgentes que fazem parte da luta por igualdade racial e social, consequentemente.
RioOnWatch: Quais são os planos futuros do Favela Cineclube?
Fatinha: Nossos planos são os de nos mantermos, para podermos seguir realizando as exibições para crianças e adultos, e os debates para a população adulta e favelada, que acreditamos que precisam fazer valer seu lugar de fala e começar a produzir sua própria narrativa. O primeiro passo, é entender o seu local, o seu território e ter direitos básicos adquiridos e respeitados. Como por exemplo, acesso ao cinema. Nesse sentido, existe o sonho da fundação de uma escola de cinema dentro da favela da Providência. Eu já tenho o local que gostaria que fosse: o prédio enorme de cinco andares, perto da minha casa, que hoje é ocupado pela PMRJ, sendo a sede da UPP do Morro da Providência. Gostaríamos de poder proporcionar a ida das crianças a outros lugares que pudessem ampliar a visão de mundo que elas têm. Assim, como poder disponibilizar cursos, materiais e equipamentos.
Resumindo, nossos planos são os de alcançar a sustentabilidade econômica, para poder seguir fazendo o que fazemos, que é contribuir para aproximar o cinema e o audiovisual da população da Providência, e estimular reflexões sobre cidadania e direitos humanos.