Esta é a primeira matéria de uma série de duas sobre a implosão do antigo prédio do IBGE. Veja a segunda matéria aqui.
Crivella chama os ex-ocupantes de ‘escravos’
O antigo prédio do IBGE na Mangueira, ocupado por aproximadamente duzentas famílias sem-teto desde o final da década de 1990, foi implodido no domingo 13 de maio, no 130º aniversário da abolição da escravatura no Brasil. O Prefeito Marcelo Crivella prometeu a construção de um conjunto habitacional de 320 unidades do programa Minha Casa Minha Vida no mesmo local, para reassentar as famílias. Não foi coincidência Crivella ter escolhido esta data tão simbólica. Após ter ele mesmo apertado o botão para ativar a dinamite que transformou o prédio em ruínas, fez um discurso no qual comparou a implosão com a abolição da escravatura : “O dia 13 de maio não é apenas o Dia das Mães, é também o dia da libertação dos escravos. E hoje caiu uma senzala, talvez uma das últimas a cair no Rio. Mas caiu. Caiu a senzala da Mangueira. Ali, há 25 anos moravam muitos escravos. Não há outra denominação. Aquela população vivia em escombros, sem água e sem luz, como numa senzala”.
Com esta declaração, Crivella chegou ao ápice de uma estratégia midiática de gosto muito questionável, que desde o anúncio público da demolição da antiga ocupação, usa imagens fortes e de caráter populista–porém eticamente problemáticas e com pouco compromisso com rigor sócio-histórico–para marcar seu suposto engajamento com moradia popular e justiça social. Mas o que há realmente por trás dos símbolos e analogias dúbias de Crivella?
O espetáculo da implosão do IBGE
Às 7 da manhã do dia da comemoração da abolição, centenas de moradores da Mangueira estavam reunidos nos mirantes e lajes do morro, olhando ansiosamente para o antigo prédio do IBGE, que desde seu abandono em 1997 tinha se tornado moradia para centenas de famílias sem-teto. Do alto de uma laje com vista privilegiada, o prefeito apertou o detonador para ascender os 150 kg de explosivos que tinham sido colocados no edifício. Em poucos segundos, sob os gritos, choros e aplausos da multidão, o prédio de doze andares desmoronou até o chão numa cena extraordinariamente cinematográfica, criando uma densa nuvem de poeira que levantou até cobrir o morro inteiro de uma camada marrom.
Certamente, o aspecto visual muito impressionante do antigo prédio do IBGE (desde quando estava em pé até o clímax do desmoronamento) foi um fator decisivo para a escolha desta ocupação, e não outra, para servir de vitrine ao suposto engajamento do prefeito com moradia popular. Desde o dia 14 de abril, quando Crivella foi na IBGE anunciar a demolição, teve uma produção midiática bastante prolífica da parte da equipe da prefeitura. No seu discurso naquele dia, o prefeito referiu-se ao prédio como um “maldito monumento ao desprezo, à nossa desigualdade, a tudo que é coisa ruim na nossa cidade”. De fato, o visual impactante do prédio, tanto pela sua arquitetura e altura imponentes quanto pelo alto nível de insalubridade que o caracterizava–856 toneladas de lixo foram retirados pela Comlurb antes da demolição, no meio das quais conviviam famílias, animais e tráfico de drogas–contribuiu para torná-lo uma ferramenta midiática muito potente. Os vídeos da prefeitura mostram imagens espetaculares de drone, destacando o aspecto monumental do prédio a ser demolido. Insistiu-se muito no aspecto dramático, não só do visual do local, mas da precariedade da vida dos moradores, como se pode constatar neste vídeo mostrando uma ex-ocupante que parece renascer ao receber o cheque de aluguel social de R$400 mensais da prefeitura–com notas de piano apoiando o efeito dramático num estilo quase novela.
“Caiu a senzala da Mangueira”
Na continuidade desta lógica midiática, a analogia que o prefeito fez, no dia 13 de maio, entre o fim da escravidão e a implosão da antiga ocupação, não foi nada surpreendente. Ao ouvi-lo, Crivella quase se transformou num Princesa Isabel dos tempos modernos, que através de um cheque de aluguel social e de um projeto Minha Casa Minha Vida pretendeu libertar os ex-ocupantes, ou para usar o linguajar dele, lhes permitir “recomeçar a sua vida com dignidade“. O discurso dele naquele dia foi extremamente problemático em vários aspectos. Ao comparar a ocupação a uma senzala e chamar os ocupantes de ‘escravos’, Crivella demonstrou uma tremenda falta de sensibilidade e respeito, tanto para os ex-ocupantes que ele mesmo retirou brutalmente do prédio na reintegração de posse do 27 de abril, quanto para a história da população negra brasileira. Da parte do prefeito do Rio de Janeiro, chamar os próprios cidadãos de ‘escravos’, além de ser uma imagem poderosa visando marcar o imaginário público, tem implicações éticas que ele não parece medir. Mas justamente por ele ser um representante eleito e ter escolhido invocar esta sombria parte da história brasileira, seria importante assumir a plena responsabilidade do que isso significa.
É essencial reconhecer o legado pernicioso do sistema de escravidão que persiste hoje através do racismo sistêmico e da desigualdade social no Brasil. Porém, não parece ser com esta perspectiva crítica que o prefeito escolheu se referir ao passado. Pelo contrário, o uso que ele fez das palavras ‘escravos’ e ‘senzala’ pouco passa de uma imagem morbidamente folclórica, sugerindo uma definição passiva, desumana e miserabilista dos negros escravizados (e consequentemente dos antigos ocupantes da Ocupação IBGE, ao qual os comparou).
A comparação com a senzala se baseia na constatação de que na IBGE, “aquela população vivia em escombros, sem água e sem luz”. Mais uma vez, o prefeito usa uma mera imagem, falando do aspecto visual das coisas, sem se aprofundar no significado social delas. A senzala nunca existiu sem uma casa grande. E os africanos nunca poderiam ter sido escravizados sem donos, comerciantes e exploradores da mão de obra gratuita. Ninguém nunca foi por essência “escravo”. Existiram negros e indígenas escravizados dentro de um sistema escravocrata que envolvia todas as camadas da população. Então se é tão fácil para o Crivella hoje apontar para um grupo de deserdados e chamá-los de escravos, será que ele conseguiria com tanta leveza apontar o dedo para os herdeiros da elite escravocrata (famílias nobres e grandes proprietários que através da especulação imobiliária hoje produzem a crise habitacional no Rio de Janeiro) e chamá-los de ‘senhores de engenho’? Ou será que se aventurar-se mais fundo na analogia entre o passado e o presente seria desconfortável demais?
Esta é a primeira matéria de uma série de duas sobre a implosão do antigo prédio do IBGE. Veja a segunda matéria aqui.
Émilie B. Guérette, é cineasta e antropóloga canadense baseada no Rio de Janeiro. Ela dirigiu o longa metragem documentário O Outro Rio, inteiramente filmado na Ocupação IBGE na Mangueira durante as Olimpíadas de 2016. Junto com os colegas John Burdick e Rolf Malungo de Souza, faz parte da equipe da pesquisa etnográfica Luta Pela Moradia No Centro Da Cidade, que acompanha diversos projetos de moradia popular no Centro do Rio de Janeiro.