Esta é a segunda matéria de uma série de duas sobre a implosão do antigo prédio do IBGE. Veja a primeira matéria aqui.
Da senzala à ocupação
Uma coisa que Crivella parece esquecer, é que as senzalas do passado, tal como as ocupações do presente, não eram meramente habitações sujas e sem água, mas também lugares de cultura e resistência. Elas têm um significado político profundo do qual os negros escravizados do passado e os ocupantes de hoje são muito mais conscientes do que ele aparenta perceber. Invocar a memória da escravidão sem reconhecer que populações escravizadas lutaram durante 350 anos para ganhar a sua liberdade, através de atos cotidianos de resistência, rebeliões, fuga e a criação de quilombos, é perpetuar uma visão muito parcial da história. Esta visão passiva e vitimista das populações escravizadas não faz honra aos séculos de resistência das populações negra e indígena no Brasil, que até hoje lutam para sobreviver, ser reconhecidas e manter suas culturas vivas. Da mesma forma, chamar os ex-ocupantes da IBGE de ‘escravos’ é usar um termo redutor que não reconhece as estratégias de sobrevivência, a extrema inventividade e a resiliência que caracterizava a vida dentro da ocupação, sem falar da consciência política ativa e do orgulho que sentiam alguns moradores ao terem conquistado um espaço para si e tê-lo transformado em lar. Se o prefeito insistir em se referir ao imaginário da escravidão para falar de moradia, em vez de invocar as senzalas, seria mais justo ele comparar as ocupações a quilombos.
Ao contrário do que parece afirmar o Crivella, há outras denominações possíveis para os ex-moradores da IBGE do que ‘escravo’. Uma alternativa muito mais objetiva é a palavra ‘ocupantes’, termo que não só lhes devolve uma certa soberania pessoal, um papel ativo e possibilidades abertas, mas que também reconhece o caráter político do ato de ocupar prédios abandonados. Da mesma forma, em vez de usar a palavra ‘invasão‘, termo que ele usa com freqüência e que tende a criminalizar a prática da ocupação, enfocando no seu aspecto irregular ou ilegal, e não da luta por direitos, ele poderia privilegiar o termo ‘ocupação’, que reconhece o ato de ocupar prédios ociosos como uma estratégia legítima–alguns dirão necessária–para as camadas menos favorecidas da sociedade poderem ter onde morar.
É constitucionalmente ilegal no Brasil deixar um prédio abandonado, sem que ele cumpra uma função social, por conta do dramático histórico de desigualdade de terras no Brasil. Criminalizar os sem-teto que ocupam espaços ociosos para garantir seu direito à moradia sem falar da ilegalidade da prática de abandonar imóveis em pleno centro das metrópoles brasileiras é negar a responsabilidade dos proprietários e colocar a culpa em cima das vítimas. As palavras têm poder, marcam a imaginação e formam opiniões, por isso é muito importante ter consciência das implicações políticas das palavras escolhidas. Enquanto homem político e de fé, Crivella sem dúvida deveria ser muito ciente disso.
Escravidão ontem, crise habitacional hoje
Ao reduzir os ex-ocupantes da Ocupação IBGE ao status de escravos, o Prefeito Crivella escolheu engessá-los num passado distante, em vez de situá-los dentro do contexto presente da crise habitacional no Brasil, que é uma das mais dramáticas do mundo e terá que ser resolvida com medidas políticas concretas. Hoje em dia, têm mais de 6 milhões de famílias brasileiras sem-teto, enquanto existem mais de 7 milhões de prédios vazios. Ou seja: o déficit habitacional não é devido à falta de espaço ou prédios para as pessoas morarem, mas sim a um problema de distribuição de recursos. Grandes proprietários, incluindo várias entidades governamentais, abandonam seus imóveis para criar raridade e assim aumentar o valor das suas propriedades–o famoso jogo da especulação imobiliária, que faz com que o Rio seja hoje uma das cidades mais caras do mundo para se morar. Este fenômeno, de mão dada com um sistema econômico profundamente desigual, produz e reproduz camadas da população tão pobres que não conseguem alugar ou comprar uma casa, mesmo trabalhando a vida inteira.
Certamente existe uma continuidade histórica entre a escravidão, a falta de integração sócio-econômica dos negros libertos após a assinatura da Lei Áurea, e o déficit habitacional atual que afeta mais diretamente as classes mais pobres da população brasileira, em particular as mulheres negras. Uma coisa não pode ser desvinculada da outra. Da mesma forma, não se pode comparar sem-tetos a escravos sem apontar para os fatores políticos e econômicos que hoje mesmo geram um tal nível de miséria como se encontrava no prédio do IBGE, e fazem com que 10% da população brasileira esteja sem-teto. Estes fatores são todos frutos da concentração de riqueza nas mãos de poucos que preferem deixar prédios ociosos do que compartilhar o que têm com os milhões de brasileiros que não têm.
Para ir além do simbolismo
A assinatura da Lei Áurea inquestionavelmente merece ser comemorada por todos os brasileiros. Ela foi necessária e de fato, aboliu juridicamente a prática indefensível e inumana da escravidão. Porém, a lei criou um falso conforto, pois falhou à sua promessa de efetivamente dar aos escravos libertos os mesmos direitos que o resto da população. A Abolição foi adotada principalmente por pressões econômicas externas (principalmente da Inglaterra) e não por humanismo da classe dominante brasileira que aceitou espontaneamente abrir mão dos seus privilégios. Isso fez com que não houvessem medidas concretas para efetivamente incluir os negros na economia formal, nem dá-lhes acesso a uma moradia decente. Então, apesar da abolição, a ordem social brasileira continua até hoje tendo sua raiz no racismo e na escravidão.
Quando a Princesa Isabel assinou a lei em 1888, ela muito mais fez um gesto simbólico do que de fato iniciou uma transformação social profunda no Brasil. 130 anos depois, a implosão do antigo prédio do IBGE pelo Prefeito Crivella também pouco passa de um símbolo forte, e fica a pergunta do verdadeiro compromisso dele com a questão da moradia. O aluguel social de R$400 mensais que a prefeitura ofereceu aos ex-ocupantes até a entrega dos apartamentos é um valor extremamente baixo para alugar um apartamento no Rio, mesmo em favelas. Muitas pessoas que foram removidas da antiga ocupação hoje se encontram numa situação de moradia tão precária quanto, e até pior do que antes da reintegração de posse. Segundo o presidente da Associação de Moradores da Mangueira, Washington Reis, aproximadamente vinte famílias não foram indenizadas pela prefeitura e algumas estão morando debaixo do Viaduto da Mangueira, próximo à antiga ocupação. E para muitos que foram cadastrados, o fato de receber um apartamento num conjunto habitacional por si não será suficiente para plenamente se integrar na sociedade brasileira, a não ser que o projeto seja acompanhado de uma série de outras iniciativas cruciais.
Ao contrário do Estado brasileiro nas décadas após o fim da escravidão, a prefeitura do Rio deveria comprometer-se a acompanhar estas famílias com serviços sociais, de saúde e educação por alguns anos após a entrega dos apartamentos. Por exemplo, uma ajuda para gerenciar os novos gastos e exigências do programa Minha Casa Minha Vida–custos de condomínio, eletricidade, água, gás etc.–é necessária para muitas famílias que há décadas, senão sempre, viveram à margem da sociedade. Se isso não acontecer, elas têm grandes chances de não conseguirem se adaptar e por consequência poderão voltar à precariedade–como ocorreu com muitos beneficentes do MCMV nos últimos anos. É importante a prefeitura pensar também na geração de empregos e no apoio a pequenos empreendedores, além de se comprometer com a manutenção a longo prazo dos prédios. Sem essas ações, a implosão do prédio do IBGE e a construção de novas moradias do MCMV no local não passarão de um gesto simbólico, com pouco resultado a longo prazo, fora fortalecer ainda mais o setor da construção e por consequência a desigualdade social.
E agora, Crivella?
Apesar do prefeito ter apostado no capital político e eleitoral de uma campanha midiática impressionante em torno da implosão do antigo prédio do IBGE e se fazer de protagonista principal de um projeto habitacional que muitos na Mangueira esperavam há muito tempo, é bom lembrar que o programa Minha Casa Minha Vida é um programa da Caixa Econômica Federal, no qual os fundos e as obras são gerenciadas a nível federal e não municipais. O papel da prefeitura se limita a escolher as famílias participantes e gerenciar o cadastro delas. Contudo, nota-se que desde o início do mandato do Prefeito Crivella, seu papel na questão da moradia não passou muito de promessas, muitas delas envolvendo remoções, e grandes declarações.
Resta então esperar que o compromisso do prefeito passe do nível superficial do espetáculo e das frases feitas para um verdadeiro engajamento com as famílias do IBGE e das centenas de ocupações e milhares de cortiços. No caso do antigo prédio da Mangueira, a demolição foi necessária por uma questão de segurança, já que apresentava riscos de desabamento e de incêndio, segundo o laudo da Defesa Civil Municipal. De fato, havia muitas semelhanças entre a Ocupação IBGE e o prédio Wilton Paes de Almeida, ocupação que desmoronou tragicamente em São Paulo no dia 1º de maio, sendo notável o fato destas duas ocupações não terem sido lideradas por movimentos sociais reconhecidos. Salvo estas exceções, na maioria dos casos de prédios ocupados, a melhor solução é geralmente a restauração e requalificação dos imóveis para fins de moradia popular, como no caso da Ocupação Manoel Congo na Cinelândia, em vez da demolição. Isto, claro, é menos midiático e dramático do que implodir prédios, e demanda investimentos significativos para tornar estes lugares seguros e adequados para moradia. Eles também não favorecem principalmente o setor da construção, tradicional parceiro politico dos prefeitos cariocas. Exige também um diálogo construtivo com movimentos sociais que atuam em muitas ocupações e geralmente conhecem a realidade cotidiana e as necessidades dos ocupantes bem melhor do que a prefeitura. Porém, reconhecer as ocupações–o que significa primeiramente tratar os ocupantes com respeito e reconhecer a legitimidade política do ato de ocupar–e apoiá-las para elas se tornarem espaços de moradia legais e dignos, seria uma forma realmente construtiva de Crivella responder à gravidade da crise habitacional do Rio.
Veja o slideshow do dia da implosão do antigo prédio do IBGE abaixo ou no Flickr:
Esta é a segunda matéria de uma série de duas sobre a implosão antigo prédio do IBGE. Veja a primeira matéria aqui.
Émilie B. Guérette, é cineasta e antropóloga canadense baseada no Rio de Janeiro. Ela dirigiu o longa metragem documentário O Outro Rio, inteiramente filmado na Ocupação IBGE na Mangueira durante as Olimpíadas de 2016. Junto com os colegas John Burdick e Rolf Malungo de Souza, faz parte da equipe da pesquisa etnográfica Luta Pela Moradia No Centro Da Cidade, que acompanha diversos projetos de moradia popular no Centro do Rio de Janeiro.