No dia 28 de junho, foi organizado na Casa das Pretas, na Lapa, o bate-papo “Pretas por Marielle” com seis pré-candidatas negras às eleições de outubro sobre a importância da representatividade através do aumento do número de mulheres pretas no poder. Como a Casa das Pretas foi o último lugar visitado por Marielle Franco antes de seu assassinato, o evento contou com muitas lembranças da vereadora e um tom bastante emocional, louvando seus feitos pelas negras e pela comunidade LGBT e também incentivando que outras mulheres assumam papéis semelhantes ao de Marielle na política brasileira.
Todo o bate-papo foi realizado de maneira incrivelmente democrática, com muito espaço de fala para a platéia. A primeira no microfone foi a jornalista Camila Martins que enfatizou a necessidade da unidade entre as pretas, e relembrou a revolta de Stonewall, um levante da população LGBT dos Estados Unidos, contra a violência policial. Ela contou que na revolta, a primeira pedra foi atirada por uma trans negra, Marsha P. Johnson ao lado de sua mulher, ressaltando que isso mostra a força política que mulheres negras têm quando estão em posição de liderança. Camila apontou também a luta de Marielle pela PL da visibilidade lésbica que foi derrubado por apenas dois votos na Câmara dos Vereadores, marcando um dia de muita dor para a comunidade LGBT, e também que Marielle foi uma das primeiras vereadoras que convidou lésbicas para fazerem parte de seu gabinete, buscando uma maior representatividade. Ao final de seu discurso, a jornalista recitou um poema da Conceição Evaristo para Marielle.
Após alguns discursos, foi a vez das convidadas sentarem à frente para expor suas ideias. Seis pré-candidatas, todas do partido de Marielle, o PSOL, formaram o painel: Talíria Petrone, Renata Souza, Ivanete Silva, Rose Cipriano, Mônica Francisco e Dani Monteiro. A primeira a falar foi Dani, estudante cotista de Ciências Sociais da UERJ. Dani começou sua fala fazendo uma referência ao próprio local da atividade, relembrando Marielle: “ainda é difícil pisar aqui na Casa das Pretas. Mesmo após o brutal assassinato da vereadora, é importante que mulheres negras continuem aparecendo de forma aguerrida para lutar contra as políticas genocidas do Estado. Devemos pensar que política pública temos hoje e o quanto ela segue um genocídio histórico? A gente está em 2018 em um país que tem uma base escravocrata. Essas marcas estão no nosso Estado, nas normas e morais do nosso Estado, quando a gente entende que o preto não deveria existir”. E ela argumentou que basta analisar o orçamento do Estado e ver que desse orçamento a cultura representa menos de 1% enquanto segurança pública representa mais de 6%. Dani exalta que o Estado prioriza ação e não prevenção, claramente visível em uma política que investe bilhões para armar a polícia contra a população.
“Nosso estado está há mais de três meses sob intervenção militar. Essa intervenção foi realizada pela desordem pública que o nosso estado estava sofrendo. E aí a gente faz uma reflexão, que desordem pública é essa? A gente tem dois ex governadores presos, o atual governador sendo indiciado e desde o ano passado na iminência de não terminar o mandato. A gente tem quatro dos cinco conselheiros do Tribunal de Contas do Estado presos por corrupção. A gente tem um deputado estadual que presidiu a ALERJ por 16 anos, também respondendo em liberdade por corrupção. Ou seja, toda essa desordem dentro do Palácio da Guanabara e da ALERJ, mas intervenção federal é sobre a população, nas favelas e nas áreas historicamente militarizadas”, disse Dani. Segundo ela, existe uma clara deturpação de prioridades baseada num sistema fortemente racista.
De acordo com Dani, há tanto crime na política, mas a população carcerária é composta por 64% de negros. Ao mesmo tempo, os jovens negros constituem apenas 20% dos universitários. “E quando a gente entra na universidade a gente vai ouvir o que eu já ouvi, que quem não tem condições de estudar não [deve] estuda[r]. Faculdade é pra quem pode. Quando eu tentei mudar minhas matérias porque eu trabalhava, eu ouvi isso do professor”. Ela reforçou que o genocídio vai além dos 36.000 negros mortos por ano, é também a marginalização da cultura negra, marginalização da identidade, do não acesso a cidade. “Apenas 5% dos habitantes do Alemão têm acesso a praia com alguma regularidade”. Dani reforçou que é importante que as marginalizadas passem a integrar a política para representar as pautas do seu próprio povo e provar para as pessoas que ainda estão nas comunidades que eles são também seres políticos que podem e devem se engajar para impulsionar a mudança e mover as estruturas. “Continuamos na luta de ser e existir na forma que somos”, disse ela.
Após as palavras de Dani, que muito emocionaram o público presente, a próxima ao microfone foi Ivanete Silva, educadora da Baixada Fluminense. Ivanete discursou sobre a luta das mulheres negras como uma questão de identidade. Ela disse que é importante pensar de onde vieram: “Lembrar das nossas mães, das empregadas, cozinheiras, passadeiras, empregadas domésticas. Foram essas mulheres em nossas vidas que nos trouxeram até aqui”. De acordo com Ivanete, é importante focar em repensar e melhorar o lugar de onde cada um vem, sem pensar em “fugir” para a Zona Sul, onde há uma melhor condição de vida. A luta deve ser para o bem coletivo da comunidade com a qual se identifica, “é dizer [que] esse é o local onde eu moro, no qual eu construo junto com as pessoas. Esse lugar precisa ser potencializado pelas vidas que aqui estão. Essa é uma responsabilidade nossa”, ressaltou Ivanete, que também disse que é importante ressaltar a culpa do poderio local e internacional que não permite que muitos lugares recebam o investimento necessário do poder público. “Hoje, o local de poder que a gente disputa é o local da caneta que vai garantir políticas públicas de saúde e educação para a negritude. Disputar o lugar de poder é devolver o poder para esse povo.”
A terceira palestrante foi Mônica Francisco, cientista social, pastora evangélica que integrou a equipe da vereadora Marielle Franco. Mônica falou sobre o enfrentamento da negritude contra o medo e a marginalização. Segundo ela, durante anos de história, o povo negro lutou, resistiu, mas foi excluído da história do país. Hoje, com a violência que atinge principalmente as favelas, a luta continua e toma uma proporção de vida ou morte. “Não é a toa que a gente tem uma mulher que sai às sete horas da manhã e é executada por policiais. Eu estou falando de Claudia.” Neste momento, Mônica se referenciou a Claudia Silva Ferreira, que foi baleada por estar no meio de uma troca de tiros, e em seguida foi jogada em uma viatura, porém seu corpo caiu da viatura e ela foi arrastada pelas ruas pendurada pela roupa na viatura, por 250 metros. Mônica prossegui indagando que tem que ser feito o “enfrentamento aos coronéis, aos donos de terra, aos donos da política desse país”, e que as mulheres negras têm a condição de promover esse enfrentamento. A formação acadêmica de muitas possibilitou que elas tomassem conhecimento da necessidade de enfrentar as injustiças impostas. “Se posicionar é um ato de sobrevivência”, disse ela.
A próxima palestrante foi a jornalista Renata Souza da Maré que atuou como chefe de gabinete de Marielle Franco e defendeu a tese “O comum e a rua: resistência da juventude frente a militarização”. Segundo Renata, o próprio papel de chefe de gabinete é geralmente ocupado por homens, e a presença de uma mulher em posição tão importante é um afrontamento aos modelos machistas vigentes na sociedade. “Homens brigam pelo papel de chefe de gabinete para submeterem muitas vezes as mulheres. Por isso, a gente faz exatamente o contrário. A gente faz uma gestão muito horizontal a fim que todas se sintam participativas desse processo”, disse ela.
Renata também respondeu uma pergunta da plateia sobre suas principais propostas nas eleições deste ano. Uma de suas proposta é uma alteração a política de cotas que ela não considere inclusiva o suficiente: “A política de cotas inclui, mas não dá sustentabilidade para esse aluno se manter dentro da universidade”. Sendo assim, Renata mencionou a necessidade de uma mudança na política de cotas como uma medida necessária para aumentar a inclusão social.
A jornalista também comentou sobre ações já concretas para os jovens negros que estão morrendo na favela e mencionou a história de Marcos Vinicius, recentemente assassinado com uniforme escolar no Complexo da Maré, para enfatizar que o direito do jovem negro de ir a escola está sendo desrespeitado pelas operações policiais. “A vida na favela é refém de uma segurança pública que não garante direito à vida.” Renata relatou que para reduzir o problema, uma ação concreta é a “ação civil pública” da Maré, já aprovada no judiciário, que determina que as operações não aconteçam no horário escolar e que, para ocorrer, precisam passar por uma série de medidas como possuir carro de bombeiros e ambulância à disposição. Tais medidas impedem que ocorram operações sem objetivo fixo, visto que hoje em dia muitas operações têm como único objetivo vingança pela morte de policiais.
A próxima palestrante foi Rose Cipriani, moradora da Baixada Fluminense, professora da rede municipal e ativista da educação. Rose afirmou que a política é um lugar onde há pouca representatividade de mulheres negras, mas esse quadro precisa mudar. “Precisamos reforçar a defesa dos direitos que estamos perdendo. Nós estamos vivendo uma conjuntura de retirada de direitos a nível nacional”. Ela exemplificou que enquanto Marielle possuía um projeto de aumentar o número de vagas em espaços infantis noturnos, o Estado parou de oferecer nos últimos dez anos cerca de 76.000 matrículas. Com essa redução, as crianças ficam soltas nas ruas enquanto os pais trabalham, e elas ficam indefesas em momentos de violência nas favelas. “Onde estão esses jovens? Morrendo na mira do fuzil”, disse Rose. Ela destacou que quem está na região metropolitana não tem acesso aos bens de educação e de cultura. “Às vezes a gente pergunta para o jovem da periferia o que tem perto da casa dele e na maioria das vezes é uma boca de fumo.”
Para terminar, a professora de história e vereadora de Niterói, Talíria Petrone, foi ao microfone. Ela começou sua fala fazendo uma homenagem a Marielle e a família de todas as vítimas de violência nas favelas e do racismo impregnado na sociedade brasileira. “Pretas por Marielle. Pretas por Eduarda. Pretas por Cláudia. Pretas por Bruna, mãe do Marquinhos. Pretas pela família do Amarildo. Pretas por tantos e tantas arrancados de nós”. Talíria afirmou que a desigualdade social é estruturalmente racista e o enfrentamento ao racismo precisa ganhar foco e importância. A estrutura racista gera a ideia de que alguns corpos não podem ocupar o espaço de poder, nem mesmo circular pela cidade, mas a verdade é que o corpo negro é invariavelmente um corpo político pois atua com a “mão na massa” junto com a comunidade para promover mudanças positivas. “Quando cai barranco, quem é que se junta pra água não entrar na casa da vizinha? E a mulher? É a mulher preta. Isso é o fazer político”, disse Talíria.
O lema “uma sobe e puxa a outra” marcou todas as falas do evento. A atividade se encerrou com apresentações musicais com letras de resistência, resumindo a luta e empoderamento presente no evento.