Esse é o primeiro de quatro artigos sobre o agrupamento de favelas em Curicica, Jacarepaguá, que estão aguardando projetos de integração urbana através do programa da Prefeitura Morar Carioca.
“Nunca teve violência aqui.”
“Eu nunca sequer tinha pensado nessa palavra antes deles começarem a usar para me descrever,” disse Regina Sônia Gomes Baptista, conhecida por Sônia, ex-presidente da Vila União de Curicica, assim que ela saiu para nos reencontrar em sua iluminada varanda. Em suas mãos estava um jornal, que ela logo desdobrou e colocou a nossa frente. Lá, em um papel amarronzado que foi corroído nos cantos pelo tempo, estava uma jovem Sônia em frente a uma jovem Vila União, seu filho seminu em seus braços. E aquela palavra em negrito abaixo: “Líder.”
O texto marcado detalhava o surgimento de favelas em Jacarepaguá começando em 1982. A manchete: “Canal separa quem paga e quem não paga impostos em Curicica.” Mas tal simplificação negligenciava o espectro de motivações e a escassez de alternativas que faziam surgir comunidades como a Vila União.
Entre café e biscoitos, ela contou histórias de vida antes da ocupação, sobre muito dinheiro gasto para as necessidades mais básicas, e sobre episódios violentos que surgiram da escassez de oportunidades na região. “Agora não tem nada disso”, ela disse. “Nunca teve violência aqui. É um lugar tranquilo onde a gente mora”. Vila União e sua vizinhança estão entre uma minoria de favelas no Rio que não são comandadas por milícias ou traficantes. Elas são comunidades auto geridas.
“Vamos começar a trabalhar, parceiro.”
Não tinha nada aqui no início, Sônia me explica – apenas espaço vazio e planos municipais para construir um hospital suplementar em um pedaço de terra. Mas a demanda por moradia durante essa época era terrível. Edson ‘Pitimbu’ Ribeiro, presidente da Associação dos Moradores de Vila Pitimbu, falou da desconexão entre a prioridade das pessoas e os planos da Prefeitura. “Tinha um espaço aqui (onde Vila Pitimbu é hoje) que foi designado pra ser uma praça ou uma escola, mas, jáhavia diversas escolas e praças na área. A necessidade de moradia era nossa primeira prioridade.”
“A Prefeitura disse que nós não poderíamos construir nada aqui, mas, um dia eu vim e o povo estava dividindo a terra entre eles e começando a construir,” disse Sônia. Renildo, presidente da Associação de Moradores da comunidade vizinha de Abadiana, recordou o espírito de coletividade que marcou aquela época. “Vamos trocar materiais e começar a trabalhar, parceiro?”
O movimento se espalhou e ganhou força em pouco tempo. De acordo com a reportagem que Sônia nos mostrou, 20 ocupações desse tipo ocorreram no bairro de Jacarepaguá entre 1982 e 1986. Mas, nenhuma delas foi fácil. Construir uma comunidade do zero trouxe obstáculos que muitos não estavam preparados para lidar. “Quando eu vim aqui,” disse Ribeiro, “tudo já estava ocupado, mas alguém desistiu e passou sua terra pra mim, e de lá eu comecei a construir um barraco de madeira por mim mesmo. Todo mundo começou com um barraco de madeira depois, sem nada, sem cimento.” Tudo começou assim, com os materiais mais simples, barracos de madeira rodeados por fundação de tijolos que os moradores começaram a colocar.
Olhando para a área onde Abadiana, Vila União e Vila Pitimbu estão localizadas agora, é difícil de imaginar seu início simples apenas poucas décadas atrás. As casas são sólidas e cimentadas, com coloridas fachadas que saúdam os visitantes calorosamente e com espaços vivamente azulejados. O barulho de construção, apesar de menos proeminente agora com outras necessidades, continua. Moradores buscam o constante aperfeiçoamento. “Este tem mais ou menos dois anos,” disse Renildo sobre a construção ao lado direito de onde eu entrei em Abadiana. “E este projeto de pavimentar em nossa rua principal começou apenas há pouco menos de quatro anos atrás.” “Tudo isso,” ele disse, “é o trabalho das pessoas que moram aqui. E tudo foi organizado pela Associação dos Moradores.”
“Nós precisamos nos organizar.”
“Na época ,” disse Edson Ribeiro, “quando todas essas ocupações estavam acontecendo em Jacarepaguá, a Prefeitura poderia vir e remover as pessoas de suas casas. Então o que tivemos que fazer foi ficarmos junto do mesmo jeito que ocupamos essa terra. Nós precisamos nos organizar.”
Ribeiro é uma personalidade forte desde a primeira vista. Nossa apresentação foi rapidamente seguida por uma estridente promoção musical anunciando sua candidatura para vereador e nossa entrevista foi marcada com francas e frequentes perguntas de sua parte sobre as intenções do meu trabalho. Apropriadamente, então que ele iria liderar esse processo de mobilização em sua própria comunidade na Vila Pitimbu. Com a ajuda da Federação das Associações de Favelas do Estado do Rio de Janeiro (FAFERJ), um corpo de diretores foi formado, uma constituição foi redigida e esforços começaram no sentido de adquirir a propriedade legal das terras da comunidade ocupada.
“Essa área foi estabelecida para ser uma escola e uma praça, e, portanto a terra teve que ser esvaziada,” ele disse. “Nós precisávamos nos separar da área da municipalidade.” Durante 10 anos, Ribeiro encabeçou este trabalho, contatando a Prefeitura e comunicando os desejos da população por posse legal de propriedade e títulos de terra. Eventualmente, em 1996, o processo foi finalizado: A Prefeitura chamou os moradores de Vila Pitimbu para assinar seus documentos. “Eles disseram que nós poderíamos ficar com nossas casas,” disse Ribeiro. “Nós tivemos que pagar o Governo pelas terras durante 8 anos, mas, foi barato: apenas R$ 18,00 ou R$ 20,00 por mês.”
A história é similar na Vila Campo da Paz, uma comunidade que começou quando uma antiga fábrica faliu, foi abandonada e depois ocupada. “A Prefeitura tentou nos tirar de lá, nos despejar,” disse a presidente da Associação dos Moradores, Lindinalva da Silva. “Mas finalmente nós conseguimos manter nossa terra. Todos que quiseram ficar tiveram que pagar à Prefeitura.” Desde então a Associação cresceu para implementar saneamento básico, água, linhas telefônicas e eletricidade para todos. “Nós crescemos mais e mais todos os dias,” ela disse. “Mas tudo foi feito pela Associação e os moradores.”
A Vila União não teve a mesma sorte em termos de títulos da terra. Apesar da Prefeitura ter, até recentemente, permitido a comunidade ficar onde eles se estabeleceram. Sônia disse: “Nós queremos legalizar nossos direitos a terra, mas, até agora nós não conseguimos fazer isso. A terra ainda pertence à Prefeitura legalmente. Eles podem nos deixar ficar ou eles podem nos tirar daqui.” Frente a um Governo não cooperativo, a Associação dos Moradores de Vila União tem focado em providenciar as necessidades que são capazes de prover.
Sônia falou das dificuldades que acompanham uma comunidade crescente na ausência de serviços públicos: “Nós organizamos um mutirão para puxar água do sistema da CEDAE. Antes disso as pessoas precisavam trazer a água de fora. Mas, assim que cresceu o número de moradores a água não foi mais suficiente e pedimos à Prefeitura para legalizar o sistema de abastecimento para que todos tivessem acesso.” Os pedidos, todavia, foram ignorados. Mais mutirões foram organizados para servir a crescente população. “Agora nós temos água vindo daqui, de lá, de todos os lados!” ela disse, rindo.
“Não é uma questão de pedir porque nós já havíamos pedido,” disse Sônia. “É uma questão de sobrevivência. Imagine uma comunidade sem água. Tudo iria parar.”
“O que vem com mais sacrifício.”
“Eu não tinha ambição de liderança no começo,” Sônia disse com um sorriso. “Eu apenas gostava de falar com as pessoas, de comunicar, para ajudar a conseguir coisas conectando os esforços de cada um. E isso acabou sendo crucial.” Nota-se aquele sorriso na cadência de sua fala, que é contundente, mas dócil: um símbolo perfeito da força, otimismo e de uma fé obstinada que continua alimentando as trajetórias da Vila União e das comunidades vizinhas.
É a necessidade que cria essas comunidades e é devido ao peso da desigualdade e da negligência que medidas difíceis precisam ser tomadas para assegurar o bem estar de quem as habita. A vida que era oferecida para esses excluídos de um pequeno círculo de privilégio foi uma de muitas incertezas e falta de oportunidades. Eles decidiram então construir suas próprias oportunidades. Seus próprios bairros, suas próprias casas, suas próprias vidas.
E nada disso veio fácil – mas no final, disse Sônia, “o que vem com mais sacrifício é também o mais valioso.”
Este é o primeiro de 4 artigos sobre o complexo de favelas em Curicica, Jacarepaguá, Rio de Janeiro previsto para ser ampliado através do programa da cidade Morar Carioca. O próximo artigo irá examinar as ameaças de remoção que algumas dessas comunidades estão encarando com a construção da viaTransOlímpica (BRT).
Clique aqui para ver mais fotos das comunidades em destaque nesta matéria, ou assista o slideshow abaixo:
Seja o primeiro a comentar