Em evento realizado dos dias 9 ao 15 de dezembro no Museu da Maré e no Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (CEASM), foi discutido o significado do conceito de ‘soberania alimentar’ com foco nas periferias. A soberania alimentar é o direito dos povos à participação na construção de políticas e nas decisões sobre modos de produção dos alimentos, sendo peça fundamental de uma política de segurança alimentar e nutricional. Assim, palestrantes comentaram experiências e caminhos já percorridos nesse sentido através de iniciativas comunitárias em diversas favelas do Rio de Janeiro, com discussões guiadas por Timo Bartholl, do Coletivo Roça. Em alguns momentos da programação foram realizadas atividades externas na Horta do Parque Ecológico da Maré e no Laboratório Vivo de Agroecologia e Permacultura (LaVAPer), na Ilha do Fundão/UFRJ.
As origens das práticas comunitárias de agroecologia e soberania alimentar
Uma das mesas do evento abordou os “desafios agroecológicos nas periferias urbanas: práticas e perspectivas”, contando com a mediação de Naldinho Lourenço e com relatos de experiências de Marcelle Felippe, representante do projeto Verdejar e da Articulação de Agroecologia do Rio de Janeiro (AARJ), de Paulo Mesquita, do Quilombo Cafundá Astrogilda localizado no Parque Estadual da Pedra Branca, e Alessandra de Lima, do GT Hortas do Coletivo Minhocas Urbanas.
Em sua fala, Marcelle ressalta o papel imprescindível das iniciativas comunitárias que deram início ao projeto Verdejar na Serra da Misericórdia. Ela destaca que “a agroecologia nas periferias e nas favelas ainda é muito marginalizada, pois não se pensa no grande potencial que a agricultura na cidade pode ter. […] Grande parte dos alimentos que consumimos hoje vem de fora da cidade, o que significa que estamos gastando mais com transporte e contribuindo para o aumento dos efeitos do aquecimento global”.
Outro ponto é a importância da valorização dos saberes locais para a construção da soberania alimentar, uma vez que essa caminha ao lado da autogestão comunitária sobre quais alimentos serão plantados, como o solo será cuidado e como reaproveitar resíduos orgânicos. Segundo ela, a Rede Carioca de Agricultura Urbana fortaleceu muito as ações de coletivos, reconhecendo pequenas iniciativas de agricultores e dando segurança na certificação de alimentos orgânicos produzidos ali, possibilitando que os moradores tenham também outra fonte de renda.
O convidado Paulo Mesquita trouxe em sua fala a necessidade do resgate de práticas e concepções de utilização do solo mais antigas, que visavam à preservação da terra e que eram a base do sustento alimentar. Nesse sentido, são realizadas no Quilombo Cafundá Astrogilda atividades agroecológicas nas hortas em parceria com as escolas, resgatando a história e a memória na construção dessas práticas e ensinando outras maneiras de se relacionar com a terra.
Encerrando a mesa, Alessandra de Lima contou sobre suas experiências no GT Hortas, e frisou a importância de trazer os jovens para o trabalho nas hortas comunitárias. “As crianças estão sempre presentes em nossas atividades e se interessam muito por ajudar a cuidar da horta. […] Talvez esse trabalho desde a base nos ajude a conscientizar novas gerações sobre a importância da agroecologia”.
Principais desafios
Algumas das dificuldades encontradas pelo Verdejar são a questão da violência dos confrontos na região, que já chegou a interromper ações do projeto por dois anos, do saneamento básico e abastecimento de água nas comunidades, e do engajamento do público jovem nas atividades. Já Paulo Mesquita chama a atenção para a questão da preservação e do direito às terras quilombolas, que constantemente tornam-se alvo de disputa pelo poder público.
Justamente nesse sentido, a espectadora Geandra Nobre discorreu sobre a necessidade das iniciativas comunitárias pressionarem o poder público, pois a responsabilidade deve ser compartilhada entre ambos. “Precisamos de mobilização das comunidades, utilizando nossa própria força de trabalho, mas também precisamos de investimentos que estão ausentes”.
Visita à Horta do Pinheiro
As atividades externas incluíram uma visita à Horta do Pinheiro, no Parque Ecológico da Maré, situado em um terreno aterrado onde era antigamente a Ilha dos Macacos. “Quando respeito a natureza, respeito a vida, e assim coisas boas vou colhendo…” diz uma citação, de autoria de Helder Marcus, exibida em uma parede do Parque. Nesse espírito a comunidade tem se organizado para preservar e cultivar a única área verde no Complexo da Maré.
Com a implementação do projeto Hortas Cariocas pela prefeitura, o Parque Ecológico foi reformado em 2002 para receber uma horta. Ela funciona para fomentar o cultivo de alimentos orgânicos, aumentar o acesso a alimentos saudáveis e gerar renda na favela. Graças ao trabalho do Seu Bolado—supervisor da horta há 14 anos—o espaço tem fornecido frutos como acerola, manga, berinjela e aipim.
Mas isso só representa uma metade da horta. A outra metade da horta vem sendo reformada e cuidada por vários grupos da Maré em esforços de mutirão, mas ainda enfrenta grandes obstáculos para atingir a sustentabilidade.
Primeiramente, os mutirões não são suficientes para dar conta da manutenção do espaço. É necessário que a prefeitura contrate um outro supervisor, como o Seu Bolado, para tomar conta dessa outra parte da horta. Segundo, a horta carece da infraestrutura para se manter. Não tem uma mangueira comprida que atinja todo o espaço e necessita de um sistema eficiente de contenção para evitar a entrada de animais, como cavalos e porcos. Além disso, o solo fornecido pela prefeitura contém uma grande quantidade de vidro triturado, dificultando o trabalho e impossibilitando que as crianças participem das ações.
Mesmo assim, vários grupos da comunidade já contribuíram e utilizaram o espaço. Essa metade já deu vinagreira, uma planta medicinal, manjericão, hortelã, alecrim, pimenta rosa e girassol, e o Coletivo Roça usou parte dessa produção na confecção de cervejas artesanais. O grupo Muda Maré construiu também uma composteira no local e tem planos para fazer um banheiro seco. Só falta um maior apoio financeiro para que a horta floresça e amplie o seu impacto na Maré.