Essa é a terceira de uma série de cinco matérias por Line Algoed, doutoranda e pesquisadora da Vrije Universiteit Brussel, e María E. Hernández Torrales, professora adjunta na Clínica de Assistência Jurídica da Escola de Direito da Universidade de Porto Rico e ex-presidente do conselho administrativo do Fideicomiso de la Tierra del Caño Martín Peña, publicada originalmente na revista Radical Housing Journal, aqui.
Essa série introduz e descreve a criação e o funcionamento do Termo Territorial Coletivo Canõ Martín Peña, em Porto Rico, e discorre sobre o capitalismo do desastre após o furacão Maria que fomentou políticas de desalojamento na ilha. Ela também apresenta como as comunidades do Canõ Martín Peña vem respondendo a este quadro, propagando o conhecimento das comunidades do Caño—no âmbito do Termo Territorial Coletivo (TTC)—e porque esse conhecimento pode ajudar na resistência de outras comunidades ao redor do mundo. Leia a série toda aqui.
O Furacão María, o Capitalismo do Desastre e a Resposta dos Moradores do Caño Martín Peña
O Furacão María foi o desastre mais destrutivo em um século em Porto Rico. É estimado que pelo menos 2.975 pessoas morreram. Independentemente disso, muitos líderes políticos e elites econômicas descreveram os furacões como uma oportunidade única para reestruturar Porto Rico. “Este é um momento difícil, mas também é uma oportunidade para recomeçar, para executar reformas adequadas—como a reforma da energia, reformas regulatórias, reforma tributária, reforma educacional e reformas na área da saúde”, afirmou o Governador Rosselló. Apesar de lidar com o processo de recuperação, o governo tem pressionado por uma agenda de reformas sociais e econômicas que foram planejadas antes dos furacões, principalmente como parte de medidas de austeridade para lidar com a enorme dívida pública. Sobrecarregados, porto-riquenhos ainda estão se recuperando dos efeitos dos furacões Irma e María, tentando reconstruir suas vidas, ao passo que também estão lidando com o fechamento de escolas, mudanças no sistema de pensão governamental e leis trabalhistas, acesso limitado a cuidados de saúde, entre outros.
Porto Rico tornou-se um grande exemplo do “capitalismo do desastre“, no qual o trauma coletivo é explorado para implementar, mais rapidamente, austeridade extrema e reformas estruturais que já haviam sido planejadas antes do desastre. Também incorpora o que Mutter1 discute: “os desastres naturais tornam os ricos mais ricos e os pobres ainda mais pobres”. Desastres e o influxo de dinheiro que se segue são uma tentação para muitos no poder. É uma situação que é oportuna para manipulação de ganhos sociais, políticos e financeiros.
A crise econômica sem precedentes da última década, um desastre para a maioria, tem igualmente se tornado uma oportunidade para um pequeno grupo de pessoas que se beneficiam de crises. A dívida porto-riquenha se tornou um ativo de alta lucratividade para se investir. A imposição dos Estados Unidos de uma supervisão financeira e um conselho de administração não eleitos, por meio do ato de supervisão de gestão e estabilidade econômica (PROMESA), pôs um fim à já frágil autonomia fiscal do país. Apoiada pela clausula territorial da Constituição dos Estados Unidos, o conselho tem o poder de decidir sobre o plano financeiro do país, leis, orçamento e regulações a serem impostas a população para pagar obrigacionistas, uma proporção significativa sendo fundos abutres, ou seja, fundos que investem em dívida que é considerada muito fraca e arriscada. Os US$74 bilhões da dívida pública porto-riquenha nunca foram auditados e poucos porto-riquenhos conseguem se identificar com o discurso de terem vivido além de suas possibilidades.
Apenas uma crise—real ou percebida—produz uma mudança real, segundo Milton Friedman2. O governo de Porto Rico e a Junta de Supervisão Fiscal estão de fato usando estas crises econômicas e climáticas para produzir mudanças reais através de uma completa reestruturação da sociedade, vendendo ativos públicos e instalando uma austeridade brutal.
Desesperados para melhorar suas condições, estima-se que 400.000 porto-riquenhos deixaram a ilha entre outubro de 2017 e fevereiro de 2018, além dos estimados 500.000 porto-riquenhos que já haviam saído antes dos furacões desde a crise econômica iniciada em 2006. Simultaneamente, o governo de Porto Rico está atraindo estrangeiros ricos a se mudarem para a ilha com o incentivo de um imposto corporativo de 4% aprovado em 2012, em oposição ao imposto corporativo de 21% que eles pagariam nos EUA. Estas isenções fiscais não se aplicam aos porto-riquenhos que já vivem na ilha. Porto Rico está passando por uma troca de população que está de acordo com as políticas anteriores de desconcentração da pobreza do início do século XX, quando era dito que havia muitos pobres em Porto Rico e que precisavam de mais “homens com capital, energia e empreendimento”3. Como Oliver-Smith4 coloca: “O que natureza começou, o governo terminaria”.
A Resposta das Comunidades do Caño para o Furacão
Em 20 de setembro de 2017, duas semanas após o Furacão Irma, o Furacão María atingiu Porto Rico. Na área do Caño, mais de 75 famílias ficaram desabrigadas, aproximadamente 1.200 telhados foram perdidos ou severamente danificados, e 70% das terras comunitárias foram inundadas por água contaminada. No entanto, a comunidade organizada, seus colaboradores, e no total mais de 700 voluntários, responderam rapidamente para avaliar os danos e fornecer primeiros socorros e alívio. A organização de base e um forte quadro institucional composto pelo G8 e suas organizações membros, ENLACE e o TTC do Caño, facilitaram a recuperação na área.
A falta de eletricidade e comunicações levou muitos moradores a deixarem Porto Rico e encontrar apoio em famílias nos EUA. Algumas famílias foram negadas assistência pela Agência Federal de Administração e Emergências (FEMA) dos EUA e, em vez disso, foram instados a abandonar a ilha como parte das políticas de assistência. Mas a maior parte dos moradores tiveram a chance de ficar e começar um novo. As comunidades responderam imediatamente à situação de crise, sabendo que esperar ajuda governamental poderia demorar demais. Dentre um mês após o María, 800 lonas foram entregues pelo Corpo do Exército dos EUA e distribuídos pelo ENLACE, e famílias tiveram acesso a alimentos, água, cuidados médicos e até dinheiro. Material vegetativo e detritos foram coletados, e kits para lidar com mosquitos e pragas de ratos foram distribuídos. Moradores se tornaram atores em vez de vítimas de desastres, que, segundo Oliver-Smith5, é essencial para as comunidades se recuperarem depois de catástrofes. Juntamente com doações de fundações locais e norte-americanas, 45 novas parcerias e mais de 700 voluntários externos contribuíram para o esforço. O G-8 selecionou os moradores mais vulneráveis para ajudar na construção de telhados permanentes. Hoje, atividades estão em andamento conforme este texto está sendo escrito. Com a ajuda de profissionais, três casas modelo resistentes serão construídas.
As comunidades do Caño têm apontado que a implementação do Plano do Distrito é chave para reduzir os riscos de enchente no Distrito e na Área Metropolitana de San Juan, e que o Projeto ENLACE tem o potencial de se tornar um exemplo de ação justa, equitativa e de recuperação participativa. Embora incluído na solicitação do governo de Porto Rico para a assistência federal, a restauração do ecossistema do Caño por US$215 milhões não foi escolhida entre os projetos a serem financiados com os US$15 bilhões em fundos de recuperação designados ao corpo de engenheiros do exército dos EUA sob o Orçamento Bipartidário de 2018 (BBA). O Departamento de Habitação e Desenvolvimento Urbano dos EUA (HUD) alocou US$20 bilhões do Subsídio Global para Desenvolvimento Comunitário-Recuperação de Desastres (CDBG-DR) de fundos para Porto Rico, cujo uso será determinado pelo Governo de Porto Rico de acordo com as regulações do HUD. Esses fundos apresentam uma oportunidade para financiar integralmente os principais aspectos do Plano do Distrito. No entanto, o Plano de Ação apresentado para os primeiros US$8.3 bilhões apresenta estratégias que promovem o deslocamento de comunidades vulneráveis, mesmo onde a mitigação de riscos no local é viável. Por exemplo, a estratégia habitacional se concentra em fornecer para famílias individuais opções para se reassentarem fora da várzea que inunda e proíbe a reconstrução e reabilitação dentro da várzea. Em comunidades como Martin Peña, onde a redução de enchentes é viável, negar a possibilidade de construir na várzea acima do nível de inundação pode ter o efeito de deslocar famílias necessitadas. Ambos o governador e o secretário de habitação expressaram recentemente, que a nova política pública sobre comunidades em áreas sensíveis se sintetiza em “se acabó el ay bendito” (a boa vontade acabou). No entanto, parece que esta política terá como alvo apenas as comunidades de baixa renda, já que a reconstrução no local está disponível para outros que podem pagar. Apesar de todos os esforços dos moradores do Caño para parar os deslocamentos em suas comunidades, o dano às casas está sendo usado pelo governo para incitar moradores a se deslocarem para outros locais. O TTC do Caño está observando isso muito de perto para certificar-se de que moradores podem ficar em segurança em suas terras, reassentando famílias somente quando necessário e dentro da comunidade, e com o apoio necessário para superar futuros eventos naturais extremos.
Referências Bibliográficas
[1] Mutter, J.C. The Disaster Profiteers: How natural disasters make the rich richer and the poor even poorer. New York: St. Martin’s Press (2015: 158-159).
[2] Klein, N. The Shock Doctrine: The Rise of Disaster Capitalism. London: Penguin Books (2007: 20).
[3] Whalen, C. T. “Colonialism, Citizenship, and the Making of the Puerto Rican Diaspora: An Introduction”, in: C.T. Whalen & V. Vázquez-Hernández. The Puerto Rican Diaspora: Historical Perspectives, pp. 1-42. Philadelphia: Temple University Press (2005: 7).
[4] Oliver-Smith, A. “Communities After Catastrophe. Reconstructing the Material, Reconstituting the Social”, in: S.E. Hyland (ed) Community Building in the 21st Century, pp. 45-70. Santa Fe: School of American Research Press (2005: 58).
[5] Oliver-Smith, A. “Communities After Catastrophe. Reconstructing the Material, Reconstituting the Social”, in: S.E. Hyland (ed) Community Building in the 21st Century, pp. 45-70. Santa Fe: School of American Research Press (2005: 53).
Esta é a terceira matéria de uma série de cinco apresentando Lições Oriundas da Vulnerabilização e Resistência do TTC Caño Martín Peña.