Os desafios para a produção cultural brasileira se impõem cada vez mais em 2019. Em apenas dez meses, já ouvimos falar no anúncio de fechamento de teatros, no risco do fim da Agência Nacional de Cinema (ANCINE), na redução orçamentária para o Fundo Setorial do Audiovisual por parte do governo federal, no risco de importantes festivais de cinema não acontecerem ou, até mesmo, do carnaval do Rio perder importante investimento em 2020. A economia criativa é um ativo econômico importante no Brasil. Produções pequenas de cinema podem gerar milhares de empregos diretos e indiretos, por exemplo. Além disso, o acesso à arte, ao lazer e a cultura é um direito. Contudo, existem cidades a poucos quilômetros das grandes capitais que não têm nenhuma sala de cinema ou espaço cultural. E essa é a realidade de Belford Roxo, município da Baixada Fluminense, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, a maior cidade em número de habitantes do Brasil sem sala de cinema.
Belford Roxo, como muitos outros municípios da Baixada, sofre com sucessivas faltas: faltam oportunidades de emprego, falta efetiva mobilidade urbana, faltam hospitais e, claro, faltam salas de cinema, teatro e espaços públicos de lazer.
Neste contexto, um grupo de jovens que ama cinema está nadando contra a corrente para compensar algumas dessas faltas. Eles formam o coletivo BaixadaCine, que produz filmes, exibe outros no cineclube criado por eles, além de formar novos cineastas.
O BaixadaCine foi criado em 2016 para suprir uma lacuna em uma cidade onde não há uma sequer sala de cinema. Querendo ver filmes em sua cidade, Sandro Garcia e um amigo decidiram organizar um coletivo para produzir filmes independentes que pudessem ser exibidos na cidade. Hoje, o BaixadaCine é composto por oito integrantes: Sandro Garcia, 23, Beatriz Rodrigues, 21, Cíntia Lima, 32, Adrian Monteiro, 42, Vitor Sena, 21, Lorrane Mota, 20, Kalebe Nascimento, 23 e Artur Fortes, 24.
Para ter acesso ao cinema, o morador de Belford Roxo precisa ir para os municípios vizinhos, como Duque de Caxias. Mas esse deslocamento tem um alto custo: é preciso dois ou três ônibus para assistir filmes blockbuster em um shopping. Cinema nacional ou filmes fora do circuito comercial não são uma opção—esses filmes não comerciais só são exibidos nos “cinemas de rua” e hoje, no Rio de Janeiro, o que sobrou dos cinemas de rua está na Zona Sul. A cidade do amor, como Belford Roxo é conhecida, também já teve seu cinema de rua. Mas, como em outros municípios, o endereço hoje abriga uma loja de eletrodomésticos da rede Casas Bahia.
Além da distância, os valores do ingresso acabam sendo um fator determinante para que muitos não acessem os espaços culturais. Uma entrada no cinema de rua varia de R$30-50. Nos fins de semana, esse valor pode ultrapassar os R$60. O impeditivo de adquirir o hábito de assistir filmes marca a vida dos integrantes do BaixadaCine. Sem condições de frequentar cinema, os integrantes só conseguem ver filmes porque plataformas de streaming, como a Netflix, possibilitam um acesso maior a quem não pode pagar por esse lazer.
Vitor, por exemplo, só vai ao cinema uma vez no ano. Sem televisão, assiste filmes na casa de amigos ou em cineclubes. “O cinema tem uma fórmula que te faz pensar e reagir. Desperta a criatividade e te faz querer aprender. Na escola, quando eu não entendia as matérias, eu via um filme e aprendia o assunto. Quando você tem acesso a isso, se depara com um meio de pensar e imaginar incrível. Mas o valor da passagem me prende, me priva de estar no cinema”, afirma ele.
Artur, por sua vez, conta que dessa privação surgiu a vontade de fazer cinema: “Só víamos filmes de Hollywood. [Depois] a gente assistiu a mostras de cinema no Sesc e vimos que dava pra fazer, descobrimos que a gente poderia fazer [filmes] também. Era importante ver filmes nacionais ou independentes. A Baixada também pode fazer filme. Às vezes temos ideias incríveis e aí adaptamos para nossa realidade de pouco dinheiro e estrutura. Mas mesmo assim, percebemos que dava para passar para frente e ensinar os outros a fazerem o que a gente faz”.
Os integrantes do BaixadaCine enfrentam o desafio da continuidade da atuação do coletivo. Sem um aporte financeiro permanente que garanta a realização das atividades, o BaixadaCine participa de pequenos editais. Quando consegue um recurso financeiro, produz o máximo possível, entendendo que a realidade padrão é não ter algum. “Conseguir fazer coisas com baixo ou nenhum orçamento é a nossa ideia. E essa foi a principal mensagem que tentamos passar na Oficina Cinema de Periferia que fizemos”, conta Beatriz.
A oficina foi parte do projeto do coletivo para formar cineastas da Baixada e foi realizada com apoio do Fundo Casa Fluminense, como parte do edital Agenda Rio 2030. Em parceria com o Centro Cultural Donana, o curso de formação teve duração de quatro semanas e os 20 alunos puderam, ao final, criar quatro curtas metragens com os próprios celulares. Os filmes “Infância”, “Marrento”, “Bica da Mulata” e “Cinema do Futuro: nossa verdade seja dita” foram produzidos nos arredores do centro cultural com a participação dos frequentadores do espaço. A exibição dos curtas contou com cerca de 50 moradores do bairro Piam.
“Foi muito gratificante ver no dia da estreia as mães das crianças que participaram dos curtas produzidos no curso de formação. Cinema não é inclusivo, não é para todos. É preciso política de incentivo para trazer público popular pras salas de cinema. É preciso que a ‘Dona Maria’ e o ‘Seu Zé’ estejam nas mostras”, afirma Sandro. Em paralelo às oficinas de formação, o BaixadaCine está produzindo um curta metragem chamado L.G. BAIXADA.T, com apoio do Lab Curta, uma chamada pública com apoio da Secretaria de Estado de Cultura e da Light para fomentar curtas-metragens de baixo orçamento e incentivar a formação de público colocando em circulação novas produções cinematográficas regionais.
O BaixadaCine, por meio de seu cineclube Velho Brejo, exibe suas próprias produções e o catálogo da Vitrine Filmes em escolas públicas, no campus do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ) de Belford Roxo e no Centro Cultural Donana. Apesar de ser o único exibidor de filmes na cidade, o coletivo BaixadaCine não conta com nenhum cineasta formado no grupo. O “corre” dessa galera que ama cinema se divide entre a busca por estágio, emprego e também pela entrada na universidade. A dificuldade no acesso a oportunidades é uma preocupação para os integrantes do coletivo.
Atualmente, grupos e produtores culturais da Baixada vêm se organizando para debater a possibilidade de ampliar oportunidades na região por meio da vinda do curso de Licenciatura em Audiovisual para o polo da UERJ na Baixada, a Faculdade de Educação da Baixada Fluminense (FEBF). A Baixada Fluminense tem 3 milhões de habitantes e nenhum curso de formação em Cinema. No Rio de Janeiro, hoje, só existem dois cursos de graduação em audiovisual: na UFF, em Niterói e na PUC, na Gávea, na Zona Sul do Rio. Além dessas poucas opções, existe o curso livre de cinema na escola Darcy Ribeiro, no Centro da cidade, mas o alto custo dos cursos é um impeditivo para que jovens da periferia possam se qualificar na área.
Ter acesso à capacitação específica facilita e amplia as possibilidades profissionais para quem tem interesse em trabalhar com cinema. Para Beatriz, é necessário mudar o olhar que circunda o trabalho cultural, sempre visto como uma profissão menor, pouco valorizada. Segundo ela, o preconceito, o conservadorismo e a falta de acesso aos produtos culturais tiram a possibilidade de sonhar dos jovens, principalmente os de periferia. “É negado a todas as pessoas que trabalham de segunda a sexta, pegando o trem lotado, a oportunidade de trabalhar com algo prazeroso, de acessar cultura e estudar com qualidade. A massa brasileira frequenta escolas que não têm professor. Como vai ter aula de artes? É claro que é preciso incentivar as pessoas da periferia a cursarem medicina e tecnologia, também. Mas quando não se tem acesso nenhum, o que resta é arrumar um emprego no mercadinho e sobreviver. A vida pode ser muito maior e melhor que isso, e a gente só não pensa assim porque não deixam a gente sonhar”, desabafa ela.
Quanto às referências e que tipo de filmes gostariam de produzir, Sandro conta que existe hoje uma demanda pelo “cinema de guerrilha” produzido na periferia e por pessoas que vivem nesses territórios. “Fazer cinema na Baixada é saber que todo sufoco que a gente tá passando agora não vai acabar tão cedo”, conta o jovem cineasta. Influenciado por um diretor da periferia de Belo Horizonte, André Novais, da Filmes de Plástico, o BaixadaCine quer democratizar o acesso das pessoas que moram na Baixada a uma produção cultural menos elitizada e ajudar a população a se identificar com essas obras, fazendo-os se sentirem pertencentes. Além disso, querem produzir obras que tenham a representatividade que eles não cresceram vendo—afinal, as produções de cinema têm sempre os mesmos rostos. Para o coletivo, é preciso que a periferia produza sobre a periferia, rompendo com os estereótipos.
Os estereótipos na produção audiovisual não estão somente em torno da caracterização da periferia, mas também ajudam a reforçar outras desigualdades, como as raciais e de gênero. Beatriz afirma que o gênero é mais que um impeditivo no audiovisual—existem poucas mulheres produzindo. Dentre as poucas que existem, elas quase nunca são negras. “São raríssimas as referências. Em vários momentos sinto que o que eu falo não é levado a sério. Mulheres negras não têm credibilidade e eu trabalho para quebrar esse padrão, mostrando para outras meninas e mulheres negras de periferia que elas podem ser o que quiserem e ocupar os cargos que quiserem ocupar e sonhar”, afirma ela.
Indagados sobre onde querem chegar com o coletivo, a resposta é unânime: tornar-se referência na produção audiovisual e cultural na Baixada Fluminense. Sandro cita a felicidade em ver outros coletivos na Baixada, em Nova Iguaçu e Caxias que realizam cineclubes. O Mate com Angú e o Cineclube Imbariê nos Trilhos também realizam exibições em espaços culturais, promovendo debates sobre cinema e fomentando a cena cultural na região. Para além dessa felicidade, ele faz uma ressalva: “Fazemos cinema, mas precisamos comer e pagar as contas. O que a gente faz é trabalho e a gente precisa de incentivo”. Lorrane, emocionada, admite o quão desafiador é produzir cinema em Belford Roxo, em meio a tantas demandas que existem na Baixada. “A linguagem é outra. A Baixada é múltipla. A Baixada é um gênero próprio de cinema”, finaliza ela.
Thábara Garcia, moradora de Magé, é professora e faz parte do coletivo Roda de Mulheres da Baixada.