As 16 favelas que compõem o Complexo da Maré, na Zona Norte do Rio de Janeiro, registraram 49 mortes resultantes de violência armada em 2019, mais do que o dobro do registrado em 2018. Dessas mortes, 34 ocorreram pelas mãos da polícia e 15 por grupos civis armados. Ao longo de 2019, o conjunto de favelas viveu 117 dias de tiroteios e quase 300 horas totais de operações policiais. Esses e outros indicadores do aumento da violência na Maré foram compilados no Boletim Direito à Segurança Pública na Maré 2019, um relatório anual produzido pela Redes da Maré e lançado em 14 de fevereiro.
A publicação do boletim ocorreu em um momento no qual a polícia do Rio vem protagonizando uma série de operações violentas na Maré nas últimas semanas, com incursões policiais ocorrendo em 29 de janeiro, 12 de fevereiro e 18 de fevereiro, a terceira com duração de mais de 15 horas.
Para Aline Maia, coordenadora do Programa Direito à Vida e Segurança Pública do Observatório de Favelas, o boletim ajuda bastante a explicar os efeitos desses números. “Não é apenas um trabalho estatístico”, disse Aline, falando no evento de lançamento. “Existem dados que são bem difíceis de quantificar, que, mesmo assim, esse boletim consegue trazer com muita clareza.”
Na área da educação, por exemplo, as escolas da Maré ficaram fechadas durante 24 dias devido às operações policiais em 2019—o que corresponde a 12% do ano letivo. “E se a gente fizer uma progressão desse acúmulo de 2016 pra cá, a gente vê que foram 89 dias sem aula [nesses quatro anos]”, disse Aline. Ela continua: “Isso tem um efeito direto principalmente na hora da gente disputar espaços nas universidades públicas. A gente está falando do direito à educação, que está sendo privado a cerca de 16.000 crianças”. Enquanto isso, os postos de saúde também foram forçados a fechar suas portas em 25 dias diferentes.
Aline também apontou o perfil das vítimas de violência policial na Maré: 100% das quais eram negras ou pardas. “Nesses confrontos, não morreu um jovem branco”, enfatizou Aline, “é muito sintomático das clivagens raciais que o Brasil vive hoje”. Do total de 49 mortos pela polícia e por grupos civis armados, 96% eram negros ou pardos, 94% eram do sexo masculino e 85% tinham entre 15 e 29 anos.
O caso de Vitor Santiago e a Impunidade do Estado
Vitor Santiago Borges tinha 29 anos quando foi baleado duas vezes por um membro das forças armadas na Maré. Os dois ferimentos de bala o deixaram paraplégico e com uma perna amputada. “O relatório mostra quem são as vitimas: são jovens, negros, favelados”, disse Vitor, concordando com Aline. Vitor estava voltando de um jogo de futebol com um grupo de amigos em 2015, quando um soldado (que fazia parte do efetivo de ocupação da Maré pelas forças armadas em 2014-2015) abriu fogo contra seu carro, alegando que o grupo havia acelerado ao passar por um posto de controle. Falando pela primeira vez em público após um longo tempo, Vitor lamentou que outras pessoas que foram baleadas e mortas por agentes do Estado não pudessem contar suas próprias histórias.
“As palavras ‘inteligência’ e ‘segurança pública’ não cabem na mesma frase”, disse Vitor, acrescentando que o Estado não faz a simples pergunta de por que e como os jovens se envolvem no narcotráfico.
A audiência final do soldado que atirou em Vitor ocorreu na tarde de 18 de fevereiro, resultando em uma decisão unânime de absolver o soldado de todas as acusações. O Ministério Público Militar (MPM) citou “defesa legítima putativa”, um princípio jurídico que permite que não haja punição devido à existência de um perigo imaginado. Os promotores disseram que o soldado em questão, embora não estivesse em perigo iminente, considerou o carro de Vitor como uma ameaça.
“Isso é corporativismo militar”, disse Irone Santiago, mãe de Vitor, após a decisão. “Deveria ser julgado em um tribunal comum”. Uma lei de 2017 assinada pelo ex-presidente Michel Temer transferiu o julgamento de casos envolvendo membros das forças armadas que matam durante o desempenho de suas funções de tribunais civis para tribunais militares. “É militar julgando militar, né? A gente sabe mais ou menos o que vai acontecer”, Vitor tinha dito anteriormente. “Acho que daqui para frente esse tipo de coisa vai só piorar”, disse ele mais tarde, preocupado com o precedente legal.
O Boletim de Direito à Segurança ofereceu evidências igualmente sombrias de impunidade. A Polícia Civil do Rio realizou análises da cena do crime após as operações policiais na Maré apenas três vezes durante todo o ano de 2019. Nos três casos, as equipes forenses chegaram apenas depois que a equipe da Redes da Maré entrou em contato diretamente com elas.
A ‘Estatização’ dos Homicídios
Os palestrantes convidados para o lançamento do boletim não deixaram passar em branco o fato de 2019, sob a gestão do recém-eleito governador Wilson Witzel, ter trazido níveis sem precedentes de violência de Estado em todo o Rio. Estimulada pela retórica violenta (“a ordem é atirar para matar”, disse Witzel), a polícia do Rio matou um recorde de 1810 pessoas em 2019, uma média de cinco pessoas por dia.
Pedro Abramovay, diretor de Open Society Foundations para a América Latina e o Caribe, destacou a importância de não tratar 2019 como um ano particular, separado de uma tendência de longa data. Questões de autoritarismo, misoginia e racismo, disse Pedro, também foram solidificadas durante governos progressistas. 2019 só criou aberturas para essas tendências se aprofundarem ainda mais.
“O que está acontecendo agora é a radicalização de um processo que já existia, só que em um nível que a gente nunca viu”, disse Pedro. O cenário atual também levou ao que Pedro chamou de “estatização” de homicídios, resultante da combinação da “conexão clara” do governo com grupos de milícias e do aumento dos níveis de assassinatos cometidos por policiais em relação à letalidade total. Ou seja: a taxa de homicídios no Rio caiu, mas “mortes por policiais aumentaram tanto que a taxa de letalidade violenta praticamente estabilizou no Rio de Janeiro”.
Uma Ferramenta para Mudança
Diante desses desafios, o boletim serve como uma ferramenta de mudança. “O objetivo desse boletim é mostrar evidências da violência que está acontecendo na Maré, para que os moradores possam revelar e desconstruir as políticas do governo atual”, explicou Camila Barros, coordenadora do projeto De Olho na Maré, que lidera a produção do boletim na Redes. “É um instrumento para disputar essas políticas”.
Os participantes do evento concordaram que, ao distribuir o relatório amplamente, eles poderiam envolver o resto do Rio, tornando a violência nas favelas uma preocupação comum. Afinal, “a favela faz parte da cidade”, disse Aline.