Esta matéria é a segunda de uma série do RioOnWatch em parceria com o The Rio Times. Para ler a original em inglês clique aqui.
Com quase dois milhões de turistas chegando ao Rio de Janeiro este ano para o carnaval, multidões, sem dúvida, irão para os lugares clássicos e de mais destaque da Cidade Maravilhosa. Embora o desfile no Sambódromo, passeio até o Cristo Redentor e blocos de carnaval no Centro da cidade dominem a maioria dos itinerários, outros podem estar interessados em se aprofundarem na história do Rio e descobrir as raízes do carnaval. Não há lugar melhor para aprender sobre o Rio, seu povo e sua enorme celebração anual—do que a incubadora cultural que é a favela.
Favelas e carnaval são indissociáveis. Essa história compartilhada remonta ao final do século XIX, quando soldados que retornavam da Guerra de Canudos, no Nordeste, formaram a primeira comunidade denominada favela, o Morro da Favela (atual Morro da Providência). Mais tarde, a comunidade do Morro da Favela tornou-se um reduto de samba quando os moradores estabeleceram duas escolas históricas de samba, Fiquei Firme e Corações Unidos da Favela.
De fato, ao longo de sua história, as escolas de samba mais famosas e bem-sucedidas do Rio partiram das favelas. No ano passado, a Estação Primeira de Mangueira, foi coroada campeã do carnaval. A Mangueira já conquistou 20 títulos inclusive o primeiro título dado no carnaval de 1932. As incríveis performances das escolas de samba no Sambódromo não apenas capturam a imaginação de milhões, mas também servem como um meio vital para expressar críticas às injustiças políticas e sociais enfrentadas no Brasil, inclusive pelos próprios moradores das favelas. Diante do contexto de 2019 de ataques ressurgentes à cultura negra e indígena, por exemplo, o desfile vencedor da Mangueira destacou heróis históricos dessas comunidades, enviando uma poderosa mensagem de resistência. Espera-se que 2020 o faça também.
Fora dos desfiles do Sambódromo, as ruas da cidade, inclusive as das favelas, tornam-se importantes locais de encontro, à medida que músicos e foliões se reúnem para formar blocos. Embora a razão de ser dessas festas de rua seja uma oportunidade para amigos, familiares, vizinhos e estranhos se unirem em comemorações alegres, os blocos também oferecem às comunidades uma plataforma para expressar publicamente suas lutas e preocupações, triunfos e aspirações, como é o caso do Vagalume o Verde, um bloco da favela do Horto, dedicado à promoção da sustentabilidade e do legado verde da sua comunidade.
Com mais de 1000 favelas no Grande Rio e mais de 400 blocos previstos durante o carnaval deste ano, a variedade de bairros e eventos para explorar e experimentar pode parecer esmagadora. Para sorte dos visitantes interessados, existem inúmeros moradores e ativistas conhecedores que lideram tours críticos em suas favelas e podem fornecer informações sobre como melhor aproveitar o carnaval nas favelas.
Um Rolê pela Primeira Favela
Em um domingo muito quente nos meados de fevereiro, no pré-carnaval carioca, decidi voltar ao começo e dar uma olhada no carnaval na perspectiva da primeira favela do Rio: o Morro da Providência. O primeiro ponto na agenda foi um rolê guiado por Cosme Felippsen, da Providência Turismo. Como guia profissional, ativista e morador da Providência, Cosme fornece informações valiosas sobre o passado, presente e futuro da favela original do Rio.
O rolê de duas horas pelas ruas e becos da Providência e arredores contou com a presença de brasileiros e turistas estrangeiros ansiosos por aprender. Paramos em locais históricos bem conhecidos que mostravam as tragédias sofridas pelos afro-brasileiros, bem como inúmeras formas de resistência e conquistas culturais. Os destaques incluem o Cais do Valongo, o maior porto de escravos da história, onde dois milhões de africanos escravizados desembarcaram de viagens infernais pelo Atlântico, e a Pedra do Sal, berço do samba e local de um quilombo urbano histórico.
Partindo da Pedra do Sal, subimos ruas íngremes e sinuosas até o morro da Providência. Enquanto caminhávamos, Cosme descreveu uma realidade com fortes contrastes, atingindo-nos primeiro com os negativos. Moradores das favelas enfrentam inúmeros desafios, disse ele ao grupo, incluindo acesso limitado à remoção de lixo, sistemas de saneamento básico, saúde e educação. Talvez o exemplo mais flagrante de negligência de Estado que Cosme nos mostrou tenha sido o agora extinto sistema de teleférico da Providência, um projeto de R$75 milhões financiado pelo governo que resultou na demolição de dezenas de casas e no principal espaço público da comunidade. O teleférico permaneceu ocioso por meses após a conclusão e ficou em operação por menos de dois anos. Cosme descreveu: “Nada foi discutido conosco [moradores]. Não queríamos o teleférico. A prioridade era o saneamento básico, mais vagas [para os alunos] nas escolas…”
Embora as pesadas massas metálicas do sistema abandonado continuem destruindo a paisagem, os moradores da Providência se esforçam para encontrar maneiras de utilizar os espaços ocupados. Para o almoço, paramos no popular Bar da Jura: construído à sombra da estação do teleférico abandonado, o bar oferece vistas deslumbrantes do Centro do Rio e da Baía de Guanabara. Enquanto Cosme apontou que as dificuldades de morar em uma favela são muitas, ele também destacou a vibrante coleção de organizações culturais e instituições sociais que formam o coração pulsante da Providência. Minutos depois de começarmos a subir o morro, percebi meus olhos atraídos por parede após parede de grafite. Essa galeria de arte ao ar livre não apenas embeleza as casas e passagens da Providência, mas também proclama as histórias dos moradores para o mundo em cores deslumbrantes.
Cosme nos apresentou várias organizações comunitárias que trabalham para empoderar os moradores da Providência, do inconfundível centro de artes Casa Amarela até a movimentada Escola de Boxe Eduardo Cardoso. Ao final do rolê, eu tinha apreciado profundamente a diversidade, a criatividade e a resistência presentes na Providência e nas favelas do Rio: acima de tudo, Cosme tinha como objetivo confrontar ideias equivocadas e desconstruir estigmas sobre favelas. Indo além do papel de uma agência de turismo regular, Cosme nos guiou através de discussões de tópicos políticos controversos, como policiamento e violência de Estado. Nossas conversas foram alguns dos momentos mais construtivos do rolê.
Desfile de um Bloco na Descida do Morro
Para encerrar minha experiência pré-carnavalesca na Providência, participei do animado bloco Bésame Mucho. O toque latino distintivo do bloco encontrou inspiração nos seus artistas criadores, a maioria imigrantes de países da América Latina. Começando no Bar da Jura e terminando na base do Morro da Providência, a multidão de turistas e moradores que estavam no bloco dançava pelas ruas estreitas e sinuosas enquanto a banda tocava “La Vida Es Un Carnaval”, de Celia Cruz, e “Despacito”, de Luis Fonsi. Ao longo da rota do desfile, os espectadores pendiam das janelas dos andares mais altos para mergulhar na cena. Os carros buzinavam junto com os ritmos das músicas (e na tentativa de separar a multidão). Fumaça iridescente e espuma enchiam o ar.
A princípio, o bloco carregado de gringo se destacou em contraste com o rolê histórico e crítico de Cosme. No entanto, quando estrangeiros e moradores começaram a desfilar juntos, compartilhando as ruas da favela mais antiga do Rio, a justaposição começou a fazer sentido—a mensagem do dia era de solidariedade e desestigmatização. Em questão de horas naquele domingo abrasador no coração do Rio, Cosme conseguiu tecer uma compreensão das forças políticas, sociais e culturais que formaram e moldaram a cidade e a favela no último século. Muito abaixo do verniz brilhante dos desfiles do Sambódromo, este era o centro da Cidade Maravilhosa, os moradores das favelas praticando e experimentando alegria diariamente, marchando contra os desafios do Rio do século XXI.