Esta matéria é da série #OQueDizemAsRedes que traz pontos de vista publicados nas redes sociais, de moradores e ativistas de favela, sobre eventos e temas que surgem na sociedade. Ela também é a primeira matéria sobre o assunto que estará em destaque no RioOnWatch no futuro próximo: o novo coronavírus e seus impactos sobre as favelas.
Moradores de favelas do Rio de Janeiro e de todo o Brasil estão se comunicando de forma espontânea e com grande velocidade, e também se organizando nas redes sob a hashtag #COVID19NasFavelas para disseminar informações importantes sobre o coronavírus e seu impacto nas favelas.
Já com poucas semanas de atenção ao vírus no Brasil, surgiram seis temas claros nos debates sobre a realidade específica do vírus em relação às favelas cariocas e brasileiras:
https://www.facebook.com/ReneSilvaSantos/posts/2919254774805331
1. Coronavírus Não é Doença da Elite
Contrariando a percepção inicial de que esse vírus afetava mais a elite, por ter sido disseminado para brasileiros a partir do contato com europeus, a partir do momento que se tem a disseminação local do vírus, os mais vulnerabilizados são aqueles que têm menos acesso a medidas preventivas e a tratamentos:
Eu estava em bolha achando que quem tá pegando o vírus é elite, mas a gente sabe onde vai pesar, quem não vai conseguir assistência, exame, tratamento. É a gente!!! #COVID19NasFavelas
— clique para adicionar o título (@jesuisanavi) March 17, 2020
Eu também tava reproduzindo essa ideia de que o coronavirús só tava afetando a elite, erro nosso. Sabemos qual a parcela da sociedade tá mais vulnerável a morrer por conta desse vírus. Nesse momento, disseminar informações é muito importante.
#COVID19NasFavelas— Rick Trindade (@RickTrindade) March 16, 2020
https://twitter.com/blockeadah/status/1239210821462433792
2. Falta de Informação Factual e Acessível
Essa falta de informação que os tuítes anteriores mencionam foi registrada pelo Coletivo Papo Reto, que atua no Complexo do Alemão. Nesse vídeo o Coletivo traz a fala de três moradoras:
Oi galera , pega essa visão aqui diretamente do Complexo do Alemão. #COVID19NasFavelas #covid19 https://t.co/ZcFmQVdSTl
— Santiago, Raull. #AteVencermosAFome (@raullsantiago) March 17, 2020
Uma usuária respondeu ao tuíte que as pessoas têm que ver TV para acessar as informações dada por médicos nos telejornais. Além de ser uma fonte de informação única e possivelmente parcial, Raull Santiago responde com honestidade: “Tem que ter TV, para então poder assistir a globo e ouvir os médicos!”.
As informações que estão sendo veiculadas por moradores nas redes para suprir essa lacuna vão desde estratégias para se protegerem até denúncias de descaso do poder público e da ignorância da realidade das favelas daqueles que insistem no álcool gel, nas máscaras e no confinamento como soluções máximas para a crise.
3. A Desigualdade Afeta a Prevenção
#COVID19NasFavelas | RESUMO:
As três principais dicas p/ evitar exposição e proliferação ñ nos cabem.
Lavar sempre as mãos? (falta água direto). Usar álcool gel (não tem dinheiro para). Quarentena/isolamento (Com casas de dois ou três cômodos e 6 pessoas?)
COMO NA FAVELA?
— Santiago, Raull. #AteVencermosAFome (@raullsantiago) March 16, 2020
Quarentena aqui é impossível. Pega essa foto aqui da minha janela. É parede com parede, tem casa de dois, três cômodos com 6 pessoas morando. Como faz? Qual o caminho? Para onde seguir com essas dicas de prevenção? (+) pic.twitter.com/B8kKDr25Pw
— Santiago, Raull. #AteVencermosAFome (@raullsantiago) March 16, 2020
Sem querer racializar mas já racializando, o quão inseguro pode ser para um preto andar mascarado em uma cidade que te incriminam até por estar de boné?
— Gilberto Porcidonio (@_puppet) March 16, 2020
Os tuítes de Raull, ativista e comunicador do Complexo do Alemão, levantam um importante debate acerca da desigualdade. Como se higienizar se o governo não garante um suprimento constante de água e se o álcool gel está caro e em falta por ter sido comprado desenfreadamente? Como se isolar se as casas dos moradores de favelas frequentemente abrigam muitas pessoas em espaços pequenos e às vezes com pouca circulação de ar e se a maioria dos trabalhadores não tem a possibilidade de ficar em casa sem ser demitido ou com a garantia da manutenção da renda? Como estocar comida se os salários são baixos e dificilmente se faz poupança?
“Da forma como estão sendo divulgadas essas estratégias e cuidados, nós das favelas, da periferia e juventude negra, estamos mais uma vez sendo excluídas, com pandemia e tudo”, continuou ele no tuíte seguinte. “Então, como se isolar sem renda? Sem garantia de alimentação para sua família?”. Uma outra usuária concordou: “Até evitar a proliferação é um privilégio”.
A água tem sido uma das principais bandeiras levantadas por ativistas de favela:
“”Não tem água na favela pra lavar a mão? COMPRA!””
Eu não posso comprar água nem pra beber, mesmo infectada e com gosto de barro. Vou comprar pra lavar a mão?
Ter água na favela pra lavar a mão tá sendo luxo
Não fazem ideia da nossa realidade!
#COVID19NasFavelas #coronavirus pic.twitter.com/Vf2zOKMcd7— TIÊ (@tievasconcelos) March 16, 2020
Muitos moradores do Complexo do Alemão estão reclamado que estão sem abastecimento de água e por isso não estão conseguindo se previnir contra o novo coronavirus. Não há álcool em gel nas farmácias e mercados. #COVID19NasFavelas
— Rene Silva (@eurenesilva) March 16, 2020
Aqui em casa, como em vários dias, água só assim! Enchemos os recipientes, na torneira já zerou! #COVID19NasFavelas pic.twitter.com/2IjgH1Eke4
— Santiago, Raull. #AteVencermosAFome (@raullsantiago) March 17, 2020
Nossas preocupações são num grau extremo nas favelas. Temos que nos preocupar com as violações violentas do estado, temos que nos preocupar com a falta de água que nos afeta de todas as formas, e nessa pandemia nossa preocupação é no campo do básico do cotidiano de higiene.
— BENTO, Fabio. #AteVencermosAFome (@eufbento) March 16, 2020
4. Quarentena como Solução?
Além da dificuldade de realizar a higiene demandada para a não proliferação do vírus, outro grande obstáculo que está sendo enfrentado pelos moradores de favelas e questionado frequentemente nas redes sociais é a quarentena. É um privilégio se ter um trabalho realizável de forma remota, que demanda uma boa conexão com a internet, além do fato de que em muitos empregos, não comparecer fisicamente significa não realizar o trabalho ou receber pagamento (como é o caso dos trabalhadores informais e autônomos, a maioria nas favelas e periferias) e até mesmo demissão, como coloca Raull e Fransérgio Goulart, do Fórum Grita Baixada:
Não existe home office p/ diaristas, feirantes, catadoras/es de recicláveis e tantas outras correrias de pessoas humildes que seus trabalhos diários são na rua e é daí q vem o seu sustento. Os cuidados sobre o #covid19 devem refletir essas realidades e pensar como fortalece-las.
— Santiago, Raull. #AteVencermosAFome (@raullsantiago) March 17, 2020
https://www.facebook.com/fransergiogoulart/posts/10157972250629801
Além disso, a suspensão das aulas nas escolas significa que as famílias precisam cuidar dos filhos em casa e muitas vezes deixar de trabalhar, por não poder levá-los consigo, além de significar um peso maior sobre a renda familiar, pois é preciso garantir as refeições que de outra forma seriam realizadas na escola.
O alerta de contágio diz muito sobre a economia da população mais pobre, já que muitas famílias não têm como organizar a rotina para dar conta das crianças sem aulas, por exemplo. Há ainda os que estão na informalidade…
— Erica Malunguinho (@malunguinho) March 17, 2020
Também significa mais pessoas dentro das casas, como já mencionado frequentemente com poucos cômodos e espaço, e significa um ócio que crianças e jovens querem preencher indo para a rua, como demonstram Edu Carvalho, comunicador da Rocinha, e Camila Santos, ativista pelo direito à moradia e vítima de remoções no Alemão:
Muitas mães de favela são domésticas e por vezes não podem levar seus filhos p/o trabalho. Os filhos, quando não sozinhos em casa, ficam na rua e acabam indo de fato pra praia (tá um sol de rachar aqui no Rio) e lan houses + casas apertadas, falta de ventilação #COVID19NasFavelas
— educarvalhol (@educarvalholl) March 16, 2020
Quero dicas de isolamento pra quem mora em barracos de madeiras. Dicas para famílias com 9, 10, 11… pessoas que moram em 3 cômodos. Qual o plano B pra quem mora nas Favelas?
— Camila Moradia (@camilamoradia) March 17, 2020
Diante desse cenário, muitos vêm cobrando ações individuais daqueles que possuem a segurança de manter os seus salários mesmo não indo ao trabalho, principalmente na forma de dispensa remunerada para diaristas e domésticas:
https://www.facebook.com/euempregadadomestica/posts/2836455423067848
Aproveita o isolamento e vai limpar sua casa! #libereaempregada! #FicaEmCasaCaralho #coronavirusnobrasil #CoronaSemFakeNews #COVID19NasFavelas #covid19
— Maíra Azevedo (@tiamaoficial) March 17, 2020
Outros argumentam que isso não abarca todos os trabalhadores e não resolve o problema. Dizem que é responsabilidade do Estado subsidiar o salário desses trabalhadores vulnerabilizados (o que já está acontecendo no Peru):
Os governos devem pensar, desde já, num plano eficiente para a população mais pobre. Liberar créditos e deixar mais devedores do que já somos efetivamente não ajuda. Há ainda a hipótese da quarentena que só vale para poucos
— Erica Malunguinho (@malunguinho) March 17, 2020
https://twitter.com/ErikakHilton/status/1239571859278045186
5. A Crise Aprofunda a Necropolítica Direcionada às Favelas
Além de todo o descaso e falta de informação, da precariedade dos serviços de saneamento, abastecimento de água e de saúde—ações necropolíticas, onde o Estado decide, todos os dias, de fato quem vive e quem morre na nossa sociedade—os moradores de favela ainda estão sujeitos a índices mais altos de tuberculose e pneumonia que o resto da cidade e às recorrentes operações policiais e de remoções do Estado. Tudo isso só aprofunda ainda mais a crise em torno do coronavírus.
https://twitter.com/natashhafirmino/status/1239971340590833664
Está inclusive circulando nas redes uma nota do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico, do Instituto de Arquitetos do Brasil e da Federação Nacional de Arquitetos e Urbanistas sobre a urgência da suspensão das remoções, situação que deixa os moradores de favelas mais expostos ao vírus, como já está sendo feito em outros países.
É urgente a suspensão por tempo indeterminado do cumprimento de mandatos de reintegração de posse, despejos e remoções de qualquer natureza, visando evitar o agravamento da situação de exposição ao vírus.
— Inst. Brasileiro de Direito Urbanístico (@ibdu_oficial) March 16, 2020
Nossas mazelas habitacionais retratam a desigualdade:luxo e conforto protegidos, enquanto moradias pobres sem infra e ventilação adequada são vetores da transmissão viral.Despejos agravam ainda mais esse cenário. Estamos com @ibdu_oficial,@IAB_Brasil e @FNAIMPRENSA: despejo zero! https://t.co/iv1QOED23h
— Tainá de Paula (@tainadepaularj) March 18, 2020
A violência policial, que já é costumeira, ainda pode ganhar novas justificativas, como alerta esse tuíte sobre a fuga em massa durante uma rebelião em reação à suspensão das saídas temporárias por razão do coronavírus, que pode ser utilizada para justificar o extermínio já em vigor da juventude negra:
Homens pretos, em SP, cuidado!
Por favor, mais cuidado na rua.Com a fuga em massa de alguns presídios e com a polícia que temos, qualquer abordagem pode ser motivo de tiro pra matar (como se eles precisassem de motivos, mas vão usar isso ai). Cuidado, mano!
Cuidado, namoral
— Roger Cipó (@rogercipo) March 17, 2020
6. Comunicação Alternativa É Essencial
Para além de denúncias, esses ativistas e comunicadores estão utilizando o espaço das redes sociais para organizar informações confiáveis e divulgar estratégias de mobilização e prevenção. A rapidez da disseminação do vírus demanda articulações dinâmicas, que são favorecidas pelo uso estratégico das redes.
Um exemplo de disseminação de estratégias de prevenção são a linha de tuítes feita pelo coletivo de comunicação independente da Maré, AMaréVê e o trabalho no Morro dos Macacos descrito pela Beatriz Antunes:
– COM AGLOMERAÇÃO: Deixem para ir no baile depois. Paga a conta online ou tenta renegociar com o banco. Se tiver que ir trabalhar durante os próximos dias evite ainda mais exposição. Só saia de casa se realmente for necessário (pense 2x antes)!#COVID19NasFavelas
— amarévê (@amareveoficial) March 17, 2020
https://twitter.com/Bia77Antunes/status/1239726975029252102
No esforço de combate à falta de informação e mesmo à desinformação, o Coletivo Papo Reto fez um ótimo trabalho verificando a veracidade dos boatos que estão circulando sobre o vírus e a ONG Redes da Maré criou um espaço para responder a dúvidas dos moradores sobre o assunto:
Bom dia galera. Vamos ficar ligados no que é fake nas informações do #COVID2019 ? #COVID19NasFavelas pic.twitter.com/79vH9ovz6y
— Coletivo Papo Reto (@CPapo_Reto) March 17, 2020
https://www.facebook.com/redesdamare/photos/a.463530200383858/3600899083313605/?type=3&theater
Para continuar acompanhando #OQueDizemAsRedes sobre o coronavírus, através de comunicadores populares, segue a nova lista publicada pelo RioOnWatch no Twitter.
É U R G E N T E a necessidade de um jornalismo que priorize a informação para as FAVELAS E PERIFERIAS, sabendo que a maioria da população vive nesses locais. Nosso problema PRINCIPAL é a falta d'água. Acompanhem pela #COVID19NasFavelas. Siga portais favelados! Marquem aqui!
— BENTO, Fabio. #AteVencermosAFome (@eufbento) March 17, 2020
https://twitter.com/BuubaAguiar/status/1239665007467606016