Ativistas pelos direitos à moradia no Rio de Janeiro se reuniram em fevereiro e março em um ciclo de conferências para comemorar os 30 anos do Núcleo de Terras e Habitação (NUTH), da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro. Os objetivos das conferências são duplos: elas apresentam uma oportunidade de compartilhar experiências sobre o trabalho do NUTH, extraindo lições da história do órgão, ao mesmo tempo em que oferecem uma oportunidade de repensar coletivamente o funcionamento e a governança do NUTH para melhor enfrentar os desafios contemporâneos.
As palestras e grupos de discussão juntaram vários atores: moradores de favelas, lideranças comunitárias e representantes de movimentos e organizações parceiras, acadêmicos, pesquisadores, assim como defensores do NUTH, servidores, equipe técnica e estagiários.
A Defensoria Pública e o NUTH no Rio de Janeiro
A Defensoria Pública, prevista na Constituição, existe a nível federal e estadual e pode ser solicitada diretamente pelos cidadãos, prestando assistência jurídica gratuita aos menos afortunados. Ela desempenha um papel proativo na promoção dos direitos humanos. Com essa combinação de fatores, é o único órgão de seu tipo no mundo. De fato, a Constituição garante sua existência e autonomia como quarta fonte de poder representativo, além dos poderes legislativo, executivo e judiciário, e em pé de igualdade com o Ministério Público.
O Núcleo de Terras e Habitação do Rio de Janeiro é ainda mais singular, pois seu trabalho se concentra especificamente na defesa do direito à moradia, um direito constitucional no Brasil. Segundo Adriana Beviláqua, defensora pública do NUTH, os defensores concentram seus esforços na defesa do direito à moradia, em vista dos conflitos fundiários urbanos. Têm assim, muitos casos de ameaças de remoção pelo poder público, de conflitos possessório com particulares, além de regularizações fundiárias, abrangendo cerca de 500 comunidades atendidas no município do Rio de Janeiro. Nos últimos anos, tem representado inúmeros casos em que o direito à moradia de moradores não foi respeitado, como no caso da preparação da cidade para megaeventos como a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos.
O Rio de Janeiro foi o primeiro estado brasileiro a criar uma Defensoria Pública, e continua sendo o lar de uma das mais desenvolvidas do país, mesmo que a promessa de acesso universal à justiça nem sempre seja cumprida. A falar no primeiro evento da conferência no dia 7 de fevereiro, Luiz Severino, da Pastoral de Favelas e do Conselho Popular, um grupo de apoio e defesa de moradores de favelas e apoiadores que lutam contra remoções por toda a cidade, chamou o NUTH de essencial “numa cidade de exclusão e de luta que foi campeã em [casos de] violações de direitos humanos“. A moradora da Vila Autódromo e ativista pelo direito à moradia Maria da Penha Macena concordou com Luiz sobre o papel do grupo em um contexto político ameaçador, dizendo que, no momento, “’é difícil ter o direito do pobre, do trabalhador, do favelado, do preto, do indígena, respeitado“. Para Giselle Tanaka do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR-UFRJ), o NUTH é uma ferramenta essencial para resistir às “tentativas de negar direitos dos moradores, inclusive ações ilegais da parte de poderes públicos criminosos”.
30 Anos de Dedicação Não-Partidária ao Direito à Moradia
O ciclo da conferência proporcionou uma oportunidade para compartilhar experiências, impulsionar os aprendizados das lutas dos anos anteriores e refletir, introspectivamente, de modo a não repetir os erros do passado. A conferência foi aberta com os participantes reconhecendo o trabalho da instituição: falando no dia 7 de fevereiro, Maria da Penha elogiou o apoio do NUTH, dizendo: “É um trabalho de formiguinha muito difícil, mas conseguimos algumas vitórias em parte graças à ajuda do NUTH“. Orlando Santos Júnior, do Observatório das Metrópoles e do IPPUR-UFRJ, chamou o NUTH de “uma conquista da sociedade“, e o Defensor Público Geral Rodrigo Pacheco enfatizou a importância da construção de uma linha de ação com cooperação e participação, assim como fez o ex-Defensor Público Alexandre Mendes, que observou que “o NUTH se construiu de forma aberta com participação efetiva, não inventada, e a qualidade da sua atuação depende desta participação e autonomia“. Regina Bienenstein, do Núcleo de Estudos e Projetos Habitacionais e Urbanos da Universidade Federal Fluminense (NEPHU-UFF), insistiu neste ponto, na sua fala em 14 de fevereiro, dizendo: “O corpo de profissionais do NUTH defende os direitos dos moradores independente de quais são as ordens do poder que estão mandando acima”.
Fortalecendo a Relação entre o NUTH e as Favelas
Moradores de favelas, muitos dos quais se reuniram nas conferências do megaevento que ameaçou as comunidades da Vila Autódromo, Canal do Anil, Rio das Pedras, Barrinha e Arroio Pavuna, na Zona Oeste do Rio, destacaram a importância de estabelecer e manter uma relação sólida entre o NUTH e as comunidades e a necessidade de fortalecer a presença local dos defensores. “É fundamental que o defensor tenha um diálogo dentro das comunidades, porque só assim ele vai descobrir as necessidades daquele local”, disse Maria da Penha. “Faz uma diferença imensa quando um defensor tem compromisso, está presente e faz uma reunião mostrando para nós que temos direito àquele território, porque nós das comunidades, muitas vezes não temos tempo de saber direto qual é o nosso direito.” Jacqueline Costa, moradora da favela da Barrinha e membro do Conselho Popular, acrescentou que, “antes, os defensores não iam muito às comunidades, agora estão muito mais presentes, vêm até à comunidade para conhecer melhor e ver com os próprios olhos os problemas que enfrentamos”.
Jacqueline também observou, contudo, que os moradores poderiam ajudar ainda mais o NUTH, participando e ajudando a organizar reuniões. De fato, para Giselle, historicamente, os movimentos de resistência mais bem sucedidos têm sido aqueles iniciados e liderados pelos próprios moradores da comunidade, apoiados com ferramentas do NUTH. Maria Zélia Carneiro Dazzi, da Associação de Moradores e Pescadores da Vila Arroio Pavuna, é a prova disso, disse Giselle: “Ela foi na frente, marcou as reuniões, e buscou recursos do NUTH para mostrar seu direito de ficar”. Para conseguir vitórias, “o trabalho tem que ser integrado no cotidiano, o diálogo tem que ser articulado cotidianamente”, disse Regina. Esse foi o caso da Vila Autódromo, onde a comunidade conseguiu reunir vários grupos e construir uma forte rede. Assim, o NUTH tem que manter o intercâmbio com as lideranças de cada comunidade, e com organizações como o Conselho Popular e a Pastoral de Favelas.
O Papel Agregador do NUTH: Apoio Técnico e uma Porta Aberta para a Esfera Política
Segundo Giselle, a força e o poder do NUTH vêm do seu papel agregador: o NUTH dá às comunidades a oportunidade de trabalhar com aliados legais e técnicos (por exemplo, engenheiros, geógrafos, fotógrafos) que são necessários para criar uma base sólida e legítima para defender casos. O NUTH é também um interveniente chave na advocacia política: “É preciso saber seus direitos para poder lutar, mas não é suficiente diante de um estado que está agindo na ilegalidade”, diz Giselle. “Às vezes, um documento, um título de posse ou de permanência, pode valer muito pouco diante da ação de políticos e gestores que, ao contrário de garantirem o interesse público, se coloquem contra o povo, contra o reconhecimento de direito, por ter preconceito social e interesses maiores. Então, é importante ter ações de oposição, de contestação. O NUTH consegue abrir canais de discussão e negociação para comunidades com o poder público, lhes permite entrar no espaço político, e também ajuda a legitimar as suas vozes.’’
Questionando e Reinventando
As conferências também proporcionaram espaço para discutir episódios menos lisonjeiros na história do NUTH. Foi uma oportunidade para recordar os erros cometidos, incluindo os efeitos negativos da influência política. Várias lideranças evocaram desafios que tinham surgido e sido superados com o NUTH, incluindo defensores públicos “que não estavam na linha”, segundo Fátima Tardim, arquiteta e especialista em planejamento urbano. Para Inalva Brito, antiga moradora da Vila Autódromo, removida durante o processo de remoção da favela, “teve um defensor que nos negava a entrada na casa da defensoria… Muitas pessoas da comunidade olhavam os defensores como pessoas que [elas] não podiam se aproximar, porque se vestiam e falavam de maneira diferente. A quebra deste distanciamento foi muito importante para nós. Agora os defensores vão para as comunidades e dialogam, e são como nós”. Regina observou também que, em certo momento, “uns defensores estavam servindo de articuladores tentando convencer os moradores a aceitar as propostas da prefeitura: este não deve ser o papel do NUTH!“. Muitos dos debates dos grupos de discussão centraram-se em questões de governança dentro do órgão público independente e na questão da nomeação de defensores.
Outras reflexões centraram-se nas limitações internas do NUTH. Giselle observou que “este lugar acaba também sendo um lugar de poder. A maior parte da assessoria técnica são de universitários com nível superior, majoritariamente branco, majoritariamente de classe média, se não de classe alta… Mas é importante ter em mente a luta política maior. Não é uma ação judicial que vai mudar esse cenário político desigual em termos de poder”. Poliana Monteiro, autora de pesquisas sobre a relação entre violência de gênero e remoções, levantou a questão da representação de gênero, lembrando que o direito à cidade permanece desigual e que a questão do que significa ser mulher na cidade deve ser levada em conta na tomada de decisões do órgão.
Os participantes do evento também apontaram que a falta de recursos econômicos e humanos no NUTH pode estar impedindo o organismo de cumprir sua missão. Alguns moradores de favelas observaram que o NUTH está muitas vezes sobrecarregado de trabalho, enquanto outros pediram que o trabalho do NUTH fosse estendido a outros municípios do estado.
Essas e outras questões estão no centro dos debates que tiveram lugar no final de cada dia de conferência, onde todos os participantes foram convidados a propor ideias para fortalecer o NUTH na luta pelo direito à moradia. Os dois últimos eventos da conferência, adiados devido às precauções com o coronavírus, permitirão aos participantes aprofundar suas ideias para melhorar o NUTH, culminando com a apresentação de propostas em grupos no encerramento da conferência.