Coronavírus no Dia a Dia das Favelas, Parte 6: Vila Aliança se Mobiliza pelo Isolamento Social

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Essa matéria oriunda da Vila Aliança, é a sexta de uma série sobre o impacto da pandemia do coronavírus no dia a dia das favelas, em parceria com o Centro Behner Stiefel de Estudos Brasileiros da Universidade Estadual de San Diego.

Sou Waldemir Correa, mobilizador cultural e idealizador do Núcleo Sociocultural Caixa de Surpresa, na favela Vila Aliança, em Bangu, Zona Oeste do Rio de Janeiro. Atualmente, estamos vivenciando um momento único em nossa favela com o avanço da pandemia do novo coronavírus. No início, nossa comunidade, e acredito que todas as outras, não estava percebendo a gravidade da pandemia.

Com a continuidade das notícias chegando via rádio, televisão e todos os outros meios de comunicação, cada vez mais a realidade da pandemia da Covid-19 foi se tornando parte do cotidiano. Os bares, campos de futebol e praças, espaços de socialização e encontros, eram os lugares em que mais se falava deste novo vírus. A situação foi ficando mais preocupante, pois além de nem a comunidade científica ter ainda a real visão sobre a situação que estamos atravessando no Brasil e no mundo, na segunda semana de março as informações que chegavam para nós eram muitas vezes desencontradas

A partir daí, vivemos um pânico generalizado, que também não ajudou em nada na prevenção. Foi aí que, alguns mobilizadores comunitários, passaram a compartilhar momentos de reflexão sobre a necessidade de mais cuidados com as crianças e idosos. A euforia e o medo tomou conta das famílias, pois elas se encontram desprovidas de conhecimentos sobre a Covid-19 e de condições financeiras, que a questão exigia para uma boa e correta prevenção.

Mobilização Comunitária Devido às Chuvas e ao Coronavírus

Nossa favela Vila Aliança, antes da pandemia, já vivia uma grande batalha para reerguer moradias que foram destruídas por conta das chuvas das semanas anteriores: as “águas de março”. Por conta da chuva, não! Por conta da total irresponsabilidade do Estado com relação ao saneamento básico, à infraestrutura e aos equipamentos públicos na favela. Nós, mobilizadores comunitários, que já estávamos trabalhando juntos para minimizar as questões das enchentes, percebemos que deveríamos estar ainda mais unidos para enfrentar a pandemia. Especialmente diante da falta de ação do poder público e da vulnerabilidade das favelas.

A iniciativa para ajudar os moradores se deu pela união dos grupos da Vila Aliança: o Núcleo Sociocultural Caixa de Surpresa, o grupo de Barbeiros e os times de futebol. Unidos conseguimos recolher doações e auxiliar os moradores de Vila Aliança e de favelas próximas como a Favela do Muquiço.

Para enfrentar a pandemia unidos fomos aos bares, campos de futebol e praças, onde a população comentava e conversava sobre o assunto para passarmos informações. Agora, com mais propriedade e sabendo as atitudes que deveríamos tomar para nos proteger desta grande batalha pela vida, a todo momento deixávamos claro para a comunidade que a luta era de todos por todos.

Acredito ter sido a partir deste momento que tantos perceberam a gravidade da situação e, passaram a fazer parte de mais esta luta para evitar a contaminação de suas famílias. Houve a compreensão de que as famílias quando são as protagonistas da ação, e não coadjuvantes, seus integrantes apropriam-se dos deveres e fazeres com muito mais prazer e responsabilidade. Neste momento, houve uma grande corrente de solidariedade. A mobilização passou a ser não apenas daqueles que já eram reconhecidos como mobilizadores, e sim de toda a favela.

Por estarmos bem distante do Centro do Rio, a ausência de políticas públicas sempre foi o maior problema enfrentado em nosso cotidiano. Mais uma vez, foi a favela que se uniu e buscou fazer o melhor por ela mesma. Com escolas fechadas, as crianças estavam mais à vontade na favela. Futebol, ping-pong, roda de leituras, atividades recreativas em grupo seria a resposta para as crianças. Com os bares e o baile ainda funcionando na comunidade nas primeiras semanas nossas crianças e jovens ainda estavam expostos, levando as famílias a questionar os paradigmas que envolve morar em favela.

Mobilização Comunitária Dá Resultado

Este incômodo das famílias nos abriu um leque de possibilidades para discutirmos uma série de questões, que envolve o crescer e criar uma criança dentro de uma favela, onde os poderes constituídos não se fazem presentes com políticas públicas de inclusão e cuidado. Em 29 de março, acumulamos algumas semanas de empenho publicitário de esclarecimentos sobre a pandemia. Agora, já não temos mais os bares abertos e nem os bailes funcionando. Os campos de futebol estão vazios. Idosos, jovens e crianças não jogam e brincam mais. Com isto, diminuiu-se de forma significativa a possibilidade de proliferação do coronavírus.

Os campos de futebol na Vila Aliança são os espaços de sociabilidade, de encontros de times e de gerações. Há times de futebol que já existem há mais de 30 anos. Sempre após as partidas, os grupos faziam confraternizações para conversar, rir, escutar música. O futebol na Vila Aliança e os campos são um elo cultural de grande significado dentro da comunidade. Cada time agrega músicos, cozinheiros, dançarinos, uma pluralidade de cultura no entorno. Tenho como termômetro o diferencial entre antes e depois da nossa mobilização de prevenção à pandemia de coronavírus pelo campos de futebol vazios. Agora, estamos nos protegendo e protegendo o próximo. Com isso, não há mais esses encontros e confraternizações no fim de semana.

A solidariedade entre as famílias ficou bem evidenciada quanto ao cuidado com as crianças e idosos. O Centro Municipal Saúde Waldir Franco, que temos como referência em nossa comunidade com seus profissionais engajados na luta pela prevenção, ampliaram a atuação na divulgação de informações sobre a Covid-19 e a vacinação de nossos idosos. Boa parte de seus funcionários moram na comunidade. Isso facilitou uma melhor interlocução de prevenção entre o posto de saúde e a Vila Aliança. Foi gratificante perceber mesmo em um momento triste, delicado e preocupante que, algumas famílias, entenderam o papel da sua participação como sendo fundamental para transformação do cotidiano dentro da comunidade, e que realmente suas ações irão protegê-las ainda mais.

A Visível Negligência do Estado

Não posso me furtar em relatar minha decepção com as políticas públicas e seus gestores. Crescendo e vivendo em uma favela, vivenciamos momentos e situações totalmente adversas ao que se possa chamar de um crescimento sadio. Crianças e jovens são entregues à própria sorte sem espaços de convivência. Acabam tendo diversas vezes seu crescimento interrompido de forma precoce por envolvimento no tráfico de drogas ou pelo aparelho repressor do Estado: as forças de “segurança”. Estamos assustados, com medo de tudo que ainda possa acontecer, mas também temos como legado uma história de luta que nos pertence neste momento tão difícil, que estamos atravessando. 

Seguimos ainda tentando minimizar as adversidades trazidas pelas chuvas da primeira semana de março, somada a pandemia do coronavírus. Não temos como resolver os problemas na totalidade, mas os grupos continuam se solidarizando e tentando apoiar as famílias. Nosso grupo mobilizador já não quer atuar mais em alguma situação trágica que possa nos atingir, mas sim trabalhar na prevenção, buscando soluções e tendo como norte o cuidado com nossas crianças. A preocupação com a higiene e o cuidado com nossos rios e ruas vão continuar sendo alvo de ações, pois nossas famílias de favela perceberam que é nós por nós, um por todos e todos por um.

Esta é a nossa história de superação e cumplicidade dentro de uma favela do Rio de Janeiro, que não vive este problema do coronavírus apenas, mas sim vive também mais esta questão da pandemia da Covid-19. Mas, que já passou, e passa várias outras situações de vulnerabilidade e riscos.

Waldemir Correa é articulador comunitário na Vila Aliança, favela de Bangu. É idealizador do Núcleo Sociocultural Caixa de Surpresa, fotógrafo, educador e comunicador popular. E é, antes de tudo, um Indignado Social!


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