Esta é a nossa mais recente matéria sobre o novo coronavírus e seus impactos sobre as favelas.
“É isso que está acontecendo. Se você não cria um plano para as periferias do país inteiro, é optar por deixar o pobre morrer à própria sorte.” — Gilson Rodrigues
Á medida que casos confirmados de Covid-19 aparecem em favelas pelo Brasil, moradores estão demandando medidas imediatas e específicas para assegurar o seu direito de se isolar em meio à iminente paralisia econômica. Apesar da minimização da crise por Jair Bolsonaro (ele se referiu à Covid-19 como uma “gripezinha” e culpou tanto a mídia como os governadores por criarem “histeria”), profissionais de saúde pública estão certos da eficácia e da necessidade do isolamento social.
A aderência mais radical às medidas de isolamento social significa uma taxa de infecção mais vagarosa, assegurando que a doença não sobrecarregue a capacidade de atendimento do sistema de saúde, um resultado que ficou globalmente conhecido como “achatar a curva”. Moradores de favelas, contudo, tanto por causa da densidade dos bairros como por causa da informalidade econômica, com frequência não são capazes de exercer o seu direito de se isolar e proteger suas comunidades.
Isolamento Social Permanece Inacessível para Muitos Moradores de Favelas
Desde as primeiras recomendações do governador do Rio de Janeiro Wilson Witzel para a população ficar em casa, ativistas e moradores de favelas começaram a levantar suas vozes, destacando uma preocupação crucial: muitos trabalhadores não têm o luxo de trabalhar em casa. “As soluções apresentadas para muitos não serve para todos”, ressalta em uma postagem no Facebook o líder comunitário Itamar Silva, do Morro Santa Marta, Zona Sul.
De fato, essas medidas são um privilégio de classe, protegendo apenas a parcela da população que pode bancar a implementação do trabalho remoto. Esta opção não é viável para aqueles que não têm acesso a um computador ou à internet, sem mencionar que a maioria dos moradores de favela trabalham em serviços operacionais, que só podem ser exercidos presencialmente. Em uma carta aberta, a coalizão nacional #CoronaNasPeriferias, um grupo de comunicadores das periferias e favelas brasileiras, afirmam que: “Isso [isolamento] não é permitido à nossa realidade! A periferia é a empregada doméstica, o porteiro, o motorista de app, o entregador, o trabalhador informal que precisa estar no busão e no metrô vendendo seus produtos para levar renda pra dentro de casa ou o comerciante local que não pode suspender suas atividades”.
Esses trabalhadores enfrentam o dilema: continuar trabalhar ou parar de comer. Esse é o caso para 86% de moradores de favelas. Eles declararam que teriam dificuldades de comprar comida em um mês, caso tivessem que ficar em casa sem renda, de acordo com uma sondagem conduzida pelo Data Favela, grupo de pesquisa. Para as mães nas favelas, essa taxa aumenta para 92%.
Experiências de outros países já mostraram que a quarentena pode durar mais tempo. Wuhan, na China, coração do surto epidêmico, recentemente suspendeu os bloqueios, após mais de dois meses. A Itália, país com a taxa mais alta de mortes por Covid-19, passou por quatro semanas com fortes medidas de isolamento social sem um término à vista ainda; e muitos países latino-americanos já estão impondo medidas de quarentena severas, renovadas por diversas semanas a cada vez.
Quarentena Seletiva: Moradores de Favela Estão Mais Expostos
Muitos trabalhadores desprotegidos, portanto, continuam a trabalhar por necessidade, deixando suas casas e se expondo ao vírus. As medidas iniciais de contenção no Rio de Janeiro não impediram o vírus de entrar nas favelas. Essas comunidades, comumente densas, agora enfrentam uma batalha a mais ao enfrentamento da pandemia comparada à outras áreas da cidade. Uma vez que as condições locais oferecem um perigoso terreno fértil para a propagação do vírus, que se torna ainda pior devido ao inconstante acesso à água e à falta de saneamento básico.
Trabalhadores de áreas periféricas continuam a atravessar a cidade, correndo o risco de infecção no transporte público e no deslocamento para outras áreas em que trabalham, normalmente em regiões mais abastadas da cidade. “Os primeiros casos no Rio ocorreram de pessoas que estavam circulando no exterior, que são, normalmente, as pessoas com mais poder aquisitivo. Agora, há pessoas que trabalham nessas casas na Zona Sul e na Barra. Babás, empregadas, diaristas, motoristas que vem de regiões mais pobres e que vão levar o vírus para suas casas“, alertou o infectologista Edimilson Migowski em uma entrevista para o G1 Globo.
Nos primeiros dias da epidemia, um caso emblemático mostrou esta realidade: uma empregada doméstica no Rio de Janeiro morreu após ter contraído Covid-19, possivelmente de sua patroa. A empregadora dela se auto-isolou em seu apartamento de luxo no Leblon depois de retornar de uma viagem à Itália, sem avisar à empregada ou a dispensá-la do trabalho. De modo similar, uma das primeiras suspeitas de morte por coronavírus em São Paulo foi de um motorista de Uber, de 25 anos.
Conforme as escolas foram sendo fechadas por todo o estado, muitos pais nas favelas tiveram pouca escolha a não ser deixar seus filhos aos cuidados dos avós, a maioria dos quais estão diretamente no grupo de risco para a doença. Isso é ainda mais frequente em 20% dos lares nas favelas chefiados por mães solteiras.
Além do Risco de Infecção, há a Queda Acentuada na Renda de Trabalhadores Informais
Ao passo que as medidas de isolamento vão sendo intensificadas, muitos anteveem um golpe nas finanças domésticas. Esse é o caso de 84% dos moradores das favelas. Eles acreditam que sua renda vai sofrer uma queda durante a crise. As favelas são particularmente vulneráveis à paralisação da cidade, uma vez que a maioria dos moradores de favelas trabalham na economia informal. Uma pesquisa recente do Data Favela mostra que 68,75% dos trabalhadores de favelas são considerados informais (autônomos, freelancers, ou sem qualquer tipo de contrato com seus empregadores), em comparação ao índice nacional de 41,3%, de acordo com a avaliação mais recente feita pelo IBGE.
Praias, praças e ônibus vazios deixaram os vendedores ambulantes e camelôs sem clientes. Empregadores não estão mais ligando em busca de serviços por dia. Com isso, muitos ficaram em uma situação precária. “Por mais que isso soe alarmista, esse quadro pode indicar uma situação de convulsão social num futuro próximo”, afirmou Renato Meirelles, fundador do Instituto Locomotiva, que produz o Data Favela.
Evitando Risco Duplo: A Busca das Favelas por Soluções Imediatas
Ativistas de favelas apontaram para a necessidade de medidas de contenção economicamente viáveis e muitos têm se mobilizado para implementar soluções de emergência locais, para atender às demandas de suas comunidades. Esse foi o caso de um grupo de jovens das periferias que são filhos de trabalhadoras domésticas e diaristas. Eles redigiram um manifesto pela dispensa remunerada pelas vidas de suas mães (essencialmente, uma licença remunerada). O grupo apontou que suas mães enfrentam a escolha impossível de continuar trabalhando como empregadas domésticas para famílias abastadas na Zona Sul ou se protegerem, perdendo suas remunerações.
O Brasil tem mais de 6 milhões de trabalhadoras domésticas e diaristas, a maioria delas sem contrato. Portanto, desprotegidas, o que as torna dependentes do altruísmo e da generosidade de empregadores privados, algo remanescente da desigualdade no Brasil, enraizada em sua história como o maior país escravocrata. Muitos ativistas estão pedindo solidariedade. É o caso de William Reis, coordenador do projeto sociocultural AfroReggae, que afirmou à revista Veja Rio: “É tempo de união do Estado. O momento é de quem tem o privilégio de ter em casa uma empregada doméstica colocar em prática a retórica ‘ela é quase da família’ e cuidar para que essas mulheres que cuidam de seus filhos não tenham sua saúde afetada”.
Organizações locais também divulgam chamadas por doações em dinheiro, produtos de higiene e alimentos para responder às necessidades urgentes das comunidades. Eles começaram as distribuições imediatamente conforme a chegada das doações. Moradores também ativaram redes locais de solidariedade para se apoiarem uns aos outros. Vizinhos se ofereceram para fazer compras para os idosos, dividirem água corrente e circularam informações sobre saúde e prevenção.
Mobilização de Cidadãos por Respostas Políticas
A escala da crise, no entanto, requer medidas estruturais, e muitas redes de cidadãos têm se unido para clamar por políticas direcionadas aos trabalhadores mais precarizados. No dia 20 de março, apenas alguns dias após as medidas de isolamento social terem sido adotadas em diversos estados brasileiros, incluindo o Rio de Janeiro, um grupo de mais de cem organizações da sociedade civil lançou uma campanha para demandar uma renda básica emergencial de até R$1500 por família para trabalhadores informais. Em apenas quatro dias, mais de 430 mil pessoas aderiram ao movimento por essa política que atende em grande parte trabalhadores moradores de favelas. Quando Paulo Guedes, o ministro da Economia, anunciou um pagamento de R$200 para apenas 38 milhões de trabalhadores, economistas, além de lideranças e influenciadores de favelas com visibilidade na internet se manifestaram. Entre eles, estava Nathália Rodrigues, a YouTuber e educadora sobre economia de baixa renda, popularmente conhecida como Nath Finanças, que tuitou: “É MUITO POUCO. Não paga nem o aluguel”.
A mobilização deu frutos. O governo, sob pressão, cedeu e aprovou o auxílio de R$600 por pessoa ou R$1200 por família (ou este mesmo valor no caso de mães solteiras), dias depois do Congresso ter aprovado a medida. O auxílio emergencial irá se aplicar a cerca de 100 milhões de trabalhadores informais sem assistência e de baixa renda, bem como a desempregados por um período de mais de três meses. Agora, o governo lançou um website e o aplicativo (para celulares) para que a população que precisa do auxílio, possa se registrar no programa.
Embora a renda básica emergencial possa representar uma grande vitória, a medida não se difere dos esforços que vêm sendo adotados em outros lugares. Governos de diversos países lançaram pacotes de estímulo sem precedentes para mitigar os impactos econômicos da pandemia e se recuperar rapidamente. Nos Estados Unidos, a administração de Trump aprovou $250 bilhões de dólares em pagamentos diretos, com valores começando em US$1200 para pessoas e famílias de baixa e média renda. Chile, Argentina, Canadá, Índia, Peru, Portugal e muitos outros também estão criando programas de transferência de dinheiro para aqueles que perderam suas rendas e para que os trabalhadores possam de fato ficar em casa.
Erros Presidenciais e Interferência
Além de tomar medidas necessárias apenas no último minuto, como a aprovação do auxílio emergencial para pagamentos da renda básica, as ações do Presidente Bolsonaro têm falhado ou, pior, obstruído diretamente tentativas de proteger as populações vulneráveis.
Bolsonaro emitiu um decreto que incluía um artigo permitindo às empresas suspenderem os salários dos funcionários sem os demitir, por um período de até quatro meses. A medida teve uma repercussão imediata entre partidos da oposição e a sociedade civil, e o artigo foi retirado do decreto em em poucas horas.
Embora governadores pelo Brasil agiram rapidamente, alguns com propostas para adiar pagamentos de serviços públicos e muitos deles agindo em apoio às medidas de renda básica, aqueles que optaram por fechar serviços não essenciais e limitar a circulação, viram seus esforços sabotados pelo governo federal tanto com políticas descoordenadas como com uma retórica anti-científica.
Seguindo um pronunciamento televisivo no qual o presidente questionou as medidas de contenção, lideranças de favelas reportaram uma retomada da circulação das pessoas nas ruas. O governo até mesmo tentou lançar uma campanha de comunicação anti-isolamento social intitulada “O Brasil Não Pode Parar”, incluindo conteúdo em vídeo defendendo a reabertura do comércio, retratando e visando, em sua maioria, negros, bem como os segmentos da população de trabalhadores informais e de baixa renda. Um clamor generalizado e uma ação judicial do Supremo Tribunal Federal fizeram com que a campanha fosse retirada de veiculação. Desde então, o governo reformulou a chamada sob o nome “Ninguém Fica Para Trás”.
Para muitos ativistas, isso equivale a um extermínio em massa. “É isso que está acontecendo. Se você não cria um plano para as periferias do país inteiro, é optar por deixar o pobre morrer à própria sorte”, disse Gilson Rodrigues, líder comunitário em Paraisópolis, São Paulo, em entrevista para a BBC News Brasil.
Protegendo o Essencial, os Vulneráveis
Enquanto soluções vão sendo tomadas para assegurar que a maioria da população fique em casa, outros terão de continuar a cruzar a cidade, andar pelas ruas, interagir com centenas de pessoas todos os dias e trabalhar para garantir a quarentena do restante da população. São os empregados de serviços essenciais, caixas de supermercados, garis, porteiros, seguranças, trabalhadores de delivery, diaristas e farmacêuticos. Para Gizele Martins, uma jornalista do Complexo da Maré, nós devemos nos lembrar dessas pessoas, hoje e ao fim da crise. Em uma matéria para o Brasil de Fato, ela ressalta: “Olhe agora a cidade, veja que sem o favelado ela não funciona, pois somos nós que fazemos a economia funcionar com a nossa mão de obra. Sem nós, não tem cidade. Então, por favor, governantes e sociedade, nos incluam nas políticas públicas, na atenção básica, nos projetos de lei, na informação, no saneamento básico”.
A crise da Covid-19 retirou esses exércitos de trabalhadores das sombras e os tornou mais visíveis do que nunca. À medida que a fome começa aparecer, o governo federal está esgotando o tempo para implementar proteção física e apoio financeiro às populações mais vulneráveis da nação e aos trabalhadores mais cruciais.